Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009Palavras Enviadas
Foi Tudo Um Sonho - José Miranda Filho
"Enaltece as subidas da vida e esquece as descidas"
Pedro jamais imaginou que isso iria acontecer. Nunca passou pela sua cabeça tamanha tragédia. Ele chegou assim que o sol se pôs e a noite se aproximava. Já passava das 20 horas e o dia ainda estava claro.
- Esse horário de verão acaba confundindo a gente, dizia!..... não sei porque inventaram! Copiaram dos europeus. Dizem alguns técnicos que é necessário para a economia de eletricidade, já que o setor passa por grande dificuldade de geração por falta de investimento do governo, enquanto outros discordam, não oferecendo, porém, qualquer solução plausível; apenas discordam. Pedro era apenas um brasileiro semi-analfabeto, no meio de milhões, que não aceitam levar desaforos para casa. Era rude de natureza, coisa que aprendeu desde o tempo de criança nas caatingas do nordeste. Passou fome, por isso não aprendeu a sorrir e manifestar-se sobre coisa alguma.
- A gente só ouve que o Instituto Tal fez uma pesquisa disso e daquilo... eu nunca fui parado na rua para dar palpite ou opinar sobre nenhum assunto. Dizia sempre aos amigos, quando ficava sabendo o resultado de pesquisas de opinião sobre eleições.
- E olha que eu ando pelas ruas, repetia. O horário de verão é deveras inconseqüente para a hora de deitar e levantar. A hora de acordar é ainda escura, e a hora de deitar ainda é clara. Agora mesmo ainda é dia e já passa das vinte horas.
Nesta época de verão as chuvas em forma de tempestades são violentas e perigosas. Elas trazem sofrimento àqueles moradores que vivem às margens ribeirinhas de córregos e lagos. É o caso do Pedro da Carroça, Pedro Ferreira da Silva Porto, esse o seu verdadeiro nome, quando aqui desembarcou de um ônibus vindo de Pernambuco, em janeiro de 1950. Assim que chegou deu sorte de conseguir emprego de auxiliar de pedreiro (meia cuié), como dizem na gíria. Permaneceu lá por 10 anos. Seu salário não era suficiente para suprir as necessidades da família composta por mulher e quatro filhos, ainda menores. Nada sobrava. Perdeu o emprego quando começou fazer exigências para aumento de salário, insuflado por companheiros do Sindicato da Construção Civil. Desde então só penou! Pastou! Emprego nem pensar! Daí em diante, sem eira e nem beira começou fazer parte da parcela dos excluídos da sociedade. Seu sonho desmoronou! Foi morar na favela, único lugar em que pode acomodar a mulher e os filhos. Pedro não tinha endereço...A rua aonde ele morava não tinha nome. O barraco de Pedro não tinha número. Ele não existia. Não tinha referência. Não tinha conta em banco....não tinha conta de água, de luz, de telefone...aliás a luz elétrica dele e dos vizinhos chegava aos barracos através de gambiarra que os moradores da favela costumam fazer. É perigoso, mas não há alternativa. Todos precisam da luz. "Faça-se a luz e a luz se fez, assim disse Deus na formação do mundo". Alguns moradores da Favela do Abrigado não conseguem nem ter o básico dentro de casa: arroz, feijão, carne... quanto mais pagar conta de luz. Pedro servia apenas para figurar nas estatísticas dos mais pobres.
Quando Pedro, ainda jovem na pequena cidade do interior de Pernambuco, Cabrobó, tinha alguma preferência por partidos políticos de esquerda, mormente o PCB, apesar de saber que a esquerda no Brasil só existe quando seus líderes estão presos, momento em que fazem planos de união e dizem que ao saírem vão se aliar e formar uma grande partido de esquerda. Balela! Quando ganham a liberdade cada um vai para seu canto e forma seu próprio bloco. Pedro não imaginava que tudo isso fosse acontecer! Ele morava no décimo barraco da Rua sem nome, na Favela dos Abrigados. Esse era o nome do bairro, se é que poderia chamar aquilo de bairro. O endereço servia apenas de orientação para seus vizinhos e amigos não confundirem um barraco com o outro. Isso não provava sua cidadania porque não tinha cadastro na Prefeitura. A rua não existia nos cadastros dos órgãos públicos. Seu barraco tinha um quarto onde dormiam seus quatro filhos, mais ele e a mulher, cozinha pequena e um banheiro também de dimensões minúsculas. Era tudo o que tinha como bem patrimonial. A construção do barraco foi possível graças à ajuda humanitária de seus vizinhos. Cada um trouxe um pedaço de madeira compensado, às vezes de origem clandestina, remanescentes de obras dos Poderes Públicos, algumas delas surrupiadas na calada da noite - roubar do governo não é crime, dizia ele. Aliás o governo rouba a gente todo dia e ninguém faz nada!
E tudo isso era motivo para seu mau humor. Vivia triste e infeliz da vida. Queria apenas ser um cidadão, mesmo carregando sua carroça de papelão, que catava pelas ruas de São Paulo, pesada e desconfortável. Desejava apenas ter o suficiente para comer três vezes ao dia como prometera o Presidente da República durante a campanha presidencial.
Não tinha emprego fixo e nem renda familiar. Vivia de bicos que fazia aqui e acolá, quando conseguia. Quando não arranjava alguma coisa para fazer, como pintura, serviço de pedreiro ou jardinagem, se virava catando papelão e latinhas de refrigerantes e cervejas pelas ruas. Sua vida, assim como a de tantos outros brasileiros, era dramática, um desafio à dignidade humana. Ele fintava todos os percalços, desafiava as dificuldades e vencia todas as incertezas da vida com dignidade e coragem, atributos que nunca lhe faltaram.
Naquela noite, ao chegar em casa, após atravessar a ponte de madeira que liga seu barraco à rua, tropeçou num pedaço de madeira exposto e quase caiu no córrego que circunda a favela e sobre o qual estão erigidas dezenas de palafitas. Não fosse a pronta ação de um vizinho, fatalmente teria caído naquelas águas podres e poluídas.
Ao chegar ao barraco os filhos estavam a lhe esperar juntamente com a mulher Elvira, grávida do quinto filho. Não trazia nada além de um frango que havia ganhado ao ajudar descarregar um caminhão num frigorífico. Ao menos o jantar estava garantido.
Naquela noite foi deitar contemplando o brilho resplandecente das estrelas através das frestas do barraco. Dormiu feliz. Sonhou. O clarão da lua incandescia seu barraco. De repente, viu-se sentado à mesa farta de comida ao lado da mulher e dos filhos, numa noite de natal. Dois castiçais de 3 velas cada um fazia parte da decoração da mesa. Suas luzes eram fortes e incessantes.
- Que ceia! Que noite! Que fartura! Balbuciava feliz! O sono havia lhe dominado totalmente. O cansaço de tanto puxar a carroça foi seu inimigo crucial. As velas acesas que via sobre a mesa, eram na verdade as chamas do fogo insano que consumiu o barraco e junto com ele toda a família.
Quando acordou, viu-se deitado numa cama, rodeado de enfermeiras que lhes apalpavam o corpo queimado e dolorido. Perguntou pela mulher e filhos. Ninguém lhe respondeu. Também não lhe disseram o motivo porque estava ali naquele hospital.
Assim, Pedro, sob efeito dos calmantes, voltou a dormir.
São Caetano do Sul, São Paulo - Brasil (Natal de 2006)
- Esse horário de verão acaba confundindo a gente, dizia!..... não sei porque inventaram! Copiaram dos europeus. Dizem alguns técnicos que é necessário para a economia de eletricidade, já que o setor passa por grande dificuldade de geração por falta de investimento do governo, enquanto outros discordam, não oferecendo, porém, qualquer solução plausível; apenas discordam. Pedro era apenas um brasileiro semi-analfabeto, no meio de milhões, que não aceitam levar desaforos para casa. Era rude de natureza, coisa que aprendeu desde o tempo de criança nas caatingas do nordeste. Passou fome, por isso não aprendeu a sorrir e manifestar-se sobre coisa alguma.
- A gente só ouve que o Instituto Tal fez uma pesquisa disso e daquilo... eu nunca fui parado na rua para dar palpite ou opinar sobre nenhum assunto. Dizia sempre aos amigos, quando ficava sabendo o resultado de pesquisas de opinião sobre eleições.
- E olha que eu ando pelas ruas, repetia. O horário de verão é deveras inconseqüente para a hora de deitar e levantar. A hora de acordar é ainda escura, e a hora de deitar ainda é clara. Agora mesmo ainda é dia e já passa das vinte horas.
Nesta época de verão as chuvas em forma de tempestades são violentas e perigosas. Elas trazem sofrimento àqueles moradores que vivem às margens ribeirinhas de córregos e lagos. É o caso do Pedro da Carroça, Pedro Ferreira da Silva Porto, esse o seu verdadeiro nome, quando aqui desembarcou de um ônibus vindo de Pernambuco, em janeiro de 1950. Assim que chegou deu sorte de conseguir emprego de auxiliar de pedreiro (meia cuié), como dizem na gíria. Permaneceu lá por 10 anos. Seu salário não era suficiente para suprir as necessidades da família composta por mulher e quatro filhos, ainda menores. Nada sobrava. Perdeu o emprego quando começou fazer exigências para aumento de salário, insuflado por companheiros do Sindicato da Construção Civil. Desde então só penou! Pastou! Emprego nem pensar! Daí em diante, sem eira e nem beira começou fazer parte da parcela dos excluídos da sociedade. Seu sonho desmoronou! Foi morar na favela, único lugar em que pode acomodar a mulher e os filhos. Pedro não tinha endereço...A rua aonde ele morava não tinha nome. O barraco de Pedro não tinha número. Ele não existia. Não tinha referência. Não tinha conta em banco....não tinha conta de água, de luz, de telefone...aliás a luz elétrica dele e dos vizinhos chegava aos barracos através de gambiarra que os moradores da favela costumam fazer. É perigoso, mas não há alternativa. Todos precisam da luz. "Faça-se a luz e a luz se fez, assim disse Deus na formação do mundo". Alguns moradores da Favela do Abrigado não conseguem nem ter o básico dentro de casa: arroz, feijão, carne... quanto mais pagar conta de luz. Pedro servia apenas para figurar nas estatísticas dos mais pobres.
Quando Pedro, ainda jovem na pequena cidade do interior de Pernambuco, Cabrobó, tinha alguma preferência por partidos políticos de esquerda, mormente o PCB, apesar de saber que a esquerda no Brasil só existe quando seus líderes estão presos, momento em que fazem planos de união e dizem que ao saírem vão se aliar e formar uma grande partido de esquerda. Balela! Quando ganham a liberdade cada um vai para seu canto e forma seu próprio bloco. Pedro não imaginava que tudo isso fosse acontecer! Ele morava no décimo barraco da Rua sem nome, na Favela dos Abrigados. Esse era o nome do bairro, se é que poderia chamar aquilo de bairro. O endereço servia apenas de orientação para seus vizinhos e amigos não confundirem um barraco com o outro. Isso não provava sua cidadania porque não tinha cadastro na Prefeitura. A rua não existia nos cadastros dos órgãos públicos. Seu barraco tinha um quarto onde dormiam seus quatro filhos, mais ele e a mulher, cozinha pequena e um banheiro também de dimensões minúsculas. Era tudo o que tinha como bem patrimonial. A construção do barraco foi possível graças à ajuda humanitária de seus vizinhos. Cada um trouxe um pedaço de madeira compensado, às vezes de origem clandestina, remanescentes de obras dos Poderes Públicos, algumas delas surrupiadas na calada da noite - roubar do governo não é crime, dizia ele. Aliás o governo rouba a gente todo dia e ninguém faz nada!
E tudo isso era motivo para seu mau humor. Vivia triste e infeliz da vida. Queria apenas ser um cidadão, mesmo carregando sua carroça de papelão, que catava pelas ruas de São Paulo, pesada e desconfortável. Desejava apenas ter o suficiente para comer três vezes ao dia como prometera o Presidente da República durante a campanha presidencial.
Não tinha emprego fixo e nem renda familiar. Vivia de bicos que fazia aqui e acolá, quando conseguia. Quando não arranjava alguma coisa para fazer, como pintura, serviço de pedreiro ou jardinagem, se virava catando papelão e latinhas de refrigerantes e cervejas pelas ruas. Sua vida, assim como a de tantos outros brasileiros, era dramática, um desafio à dignidade humana. Ele fintava todos os percalços, desafiava as dificuldades e vencia todas as incertezas da vida com dignidade e coragem, atributos que nunca lhe faltaram.
Naquela noite, ao chegar em casa, após atravessar a ponte de madeira que liga seu barraco à rua, tropeçou num pedaço de madeira exposto e quase caiu no córrego que circunda a favela e sobre o qual estão erigidas dezenas de palafitas. Não fosse a pronta ação de um vizinho, fatalmente teria caído naquelas águas podres e poluídas.
Ao chegar ao barraco os filhos estavam a lhe esperar juntamente com a mulher Elvira, grávida do quinto filho. Não trazia nada além de um frango que havia ganhado ao ajudar descarregar um caminhão num frigorífico. Ao menos o jantar estava garantido.
Naquela noite foi deitar contemplando o brilho resplandecente das estrelas através das frestas do barraco. Dormiu feliz. Sonhou. O clarão da lua incandescia seu barraco. De repente, viu-se sentado à mesa farta de comida ao lado da mulher e dos filhos, numa noite de natal. Dois castiçais de 3 velas cada um fazia parte da decoração da mesa. Suas luzes eram fortes e incessantes.
- Que ceia! Que noite! Que fartura! Balbuciava feliz! O sono havia lhe dominado totalmente. O cansaço de tanto puxar a carroça foi seu inimigo crucial. As velas acesas que via sobre a mesa, eram na verdade as chamas do fogo insano que consumiu o barraco e junto com ele toda a família.
Quando acordou, viu-se deitado numa cama, rodeado de enfermeiras que lhes apalpavam o corpo queimado e dolorido. Perguntou pela mulher e filhos. Ninguém lhe respondeu. Também não lhe disseram o motivo porque estava ali naquele hospital.
Assim, Pedro, sob efeito dos calmantes, voltou a dormir.
São Caetano do Sul, São Paulo - Brasil (Natal de 2006)
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