Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Ensaio - Ronald Augusto

Aqui Há Dragões (do latim HIC SVNT DRACONES), é uma frase usada para designar territórios desconhecidos ou perigosos em mapas medievais. Tal frase foi encontrada apenas no Globo de Lenox e, recentemente descoberta, numa representação do Novo Mundo feita num ovo de avestruz.
Felizmente passou

Se os bons escritores apelam à relevância da crítica, os maus escritores a fazem necessária. Bons livros tornam possível e louvável a crítica que reconhece e traz à superfície as qualidades de tais obras. Mas os livros ruins – ainda mais quando tidos e havidos por obras sérias – afirmam o gesto indispensável da crítica que procura revelar esse blefe. Portanto, é justo que sejamos gratos – e críticos com relação – aos livros ruins e àqueles que, seja por boas ou más intenções, tentam nos passar semelhante conversa. Isto posto, passemos ao comentário propriamente dito.

Entre as três leituras significativas, deste ano de 2013, que gostaria de destacar – coerente com o parágrafo acima e atendendo à solicitação do Edson Cruz, editor do site de literatura e arte http://www.musarara.com.br –, confesso que apenas uma foi efetivamente surpreendente, ou seja, prazerosa, e, por isso, começo por ela. Trata-se do livro Las montañas del oro do poeta argentino Leopoldo Lugones, um dos mestres de Jorge Luis Borges. A obra foi publicada em 1897, mesmo ano de publicação do poema Un coup de dés de Mallarmé. Lugones inicia seu percurso poético com Las montañas del oro. O conjunto é cheio de excelentes poemas em prosa, mas muitos deles conformados à métrica. Como um poeta ligado à escola simbolista, Lugones gosta das formas híbridas, assim, ao invés de fazer uma espécie de transição do verso medido para o livre, experimentando no meio do caminho o poema em prosa, que é de ritmo mais distenso, ele dá à prosa o vertebrado do verso metrificado, de onde resulta uma bela tensão. Além disso, Leopoldo Lugones é muito bom no campo visual, tem imagens poderosas. Por divertimento, gosto de definir Lugones como um baita simbolista francês que, por alguma razão, resolveu escrever seus poemas em espanhol; talvez seja por isso que em vários momentos sua linguagem acaba por neutralizar a aspereza constitutiva do seu idioma.

A segunda leitura, que na verdade ainda não está finalizada (falta pouco), é a Metafísica de Aristóteles. Um clássico. Isto significa, simples assim, que deve ser lido, ponto. Um clássico cuja leitura vale o cansaço de cursar filosofia aos cinquent’anos da minha idade. Só mesmo um filósofo tão desanuviado – et pour cause, grego – e que opera com a perplexidade a partir do senso comum, poderia conceber o apetite pelo conhecimento do seguinte modo: “...devemos partir do que mal-e-mal é cognoscível, mas cognoscível para nós, e procurar chegar ao cognoscível absoluto, por via como dissemos, daquelas mesmas coisas de que temos conhecimento”. Anoto que dou ênfase na passagem citada ao aspecto prospectivo desse movimento, isto é, interessa o que nos é mal-e-mal cognoscível. Agora, quanto à pretensão ao “cognoscível absoluto”, isto fica pra bem mais tarde.

A última leitura não chegou a ser um prazer, mas uma enorme frustração, quer dizer, foi de “tirar o fôlego”, mas ao revés, em escala negativa. Reli Toda Poesia de Paulo Leminski e saí desanimado dela. E tal sensação se produziu a partir da seguinte intuição: quando lia os poemas (as tiradas) de Paulo Leminski era como se eu estivesse lendo poemas de poetas da minha e da geração subsequente tal é a facilidade com que essa poesia se oferece à imitação. Afinal, quem joga com quem? Parece haver algo de mórbido ou de fantasmagórico nisso, porque – admitindo que o ar esteja efetivamente viciado – tudo leva a crer que Leminski é que posa como o diluidor deles. Uma originalidade tão pavimentada quanto exausta. Paulo Leminski sobrevive (mal e banalmente) em seus imitadores retardatários. Com isso não isento Leminski, em outras palavras, o retardamento poético não deve ser imputado tão só aos seguidores e admiradores, mas ele é como que uma transformação dos predicados da poesia do poeta de Curitiba. Enfim, já escrevi longamente sobre esse best seller de 2013 e também fui apedrejado por isso. Não houve réplica crítica, como de hábito, mas tão só cusparada reativa de fãs devotos do poeta judoca. Tudo bem, felizmente passou.

A todos, meus votos de excelentes leituras em 2014!

Ensaio - Ronald Augusto

Hans Anderson Brendekilde ~ A Wooded Path In Autumn
Cleci Silveira, Recriando Personalidade e Emoção

Contrariamente ao que acontece com a maioria dos artistas da palavra cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma flagrante tendência à acomodação, há outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os representantes de tal linhagem preservam, a contragosto do habitual, incorruptíveis sua vitalidade e juventude.

Enquanto os primeiros, de ordinário, perdem o entusiasmo a partir do momento em que chegam às portas da “impudente idade do bom senso”, os segundos se insurgem contra a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente. E desde o irredutivelmente pessoal de suas preferências estéticas estabelecem, por assim dizer, um desejo de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos. Enfim, eles conservam intactos dentro de si o jovem artista e sua ininterrupta curiosidade.

Pois é nesse rol que gostaria de ver incluído o nome de Cleci Silveira. Já que com a publicação desse conjunto intitulado Poemas de aprendiz, a autora reverte a nossa expectativa estabelecendo um desvio, uma área de escape dentro do seu itinerário textual. Isto é, a consagrada prosadora (autora de, entre outros, A trama do silêncio, O tocador de saz e o sultão, e Além da porta) estreia agora como poeta. Essa constatação coincide com a opinião de Luiz Antonio de Assis Brasil sobre a escritora, para o romancista trata-se “de uma autora que surpreende a cada obra, e surpreende para muito melhor”. Com efeito, Cleci não se acomoda; ao invés de ceder à redundância (ou seja, fazer o que sabe) nos oferecendo, se fora o caso, mais um belo livro de prosa, ela decide conquistar para si o direito ao risco planificado de escrever e publicar um volume de poemas. Interrompe, portanto, o ciclo da redundância virtuosa (a admirável prosadora) com uma informação nova (a poeta in progress).

O interessante é que esse novo lance textual que experimenta, se dispondo ao desafio, não significa uma contradição, já que, a rigor, pode ser interpretado como a afirmação de uma escritora que se quer em movimento. A poeta Cleci Silveira surge para provocar a instabilidade; em outras palavras, ela afirma o valor da liberdade artística. O livro em apreço ratifica a ideia de que o processo compositivo do escritor envolve dois momentos cujas fronteiras não são assim tão nítidas; ao mesmo tempo esses momentos não obedecem a um traçado linear ou de causa e efeito, eles são relativos e relacionais. Ou seja, todo experimento literário (e artístico) implica uma dialética de “repetir para aprender” e “aprender para criar”. Neste sentido, quando Cleci Silveira resolve chamar seu livro de Poemas de aprendiz, me parece que podemos ler nele essa tensão inventiva – sem a qual não pode haver arte – que marcou o apetite da autora nessa viagem ao (seu) desconhecido que é a poesia.

Dizem alguns escritores que a literatura não precisa de revolução, mas sim de palavras. A revolução que interessa se dá por dentro. Pode ser. Em princípio não há problema nenhum em tentar fazer uma revolução para o outro, para fora. Cleci fez também a sua revolução, ou antes, a sua segunda, só que agora se embrenhando na poesia. Explico-me, segundo a tese irônica do poeta concreto Décio Pignatari, uma revolução completa em literatura pressupõe duas meias revoluções, isto é, uma a se cumprir na prosa e outra na poesia. Embora o crítico não pretenda apostar todas as suas fichas na pertinência das formas híbridas dentro da economia estética contemporânea, o que é razoável discernir de sua proposição, em fim de contas, é que não é possível a um poeta produzir poesia de importância se este se recusa à convivência com a prosa. E, de outra parte, o mesmo vale para o prosador no tocante à poesia.

Ainda no capítulo das teses (todas elas refutáveis), um amigo meu, o escritor Fábio Brüggemann, defende uma que diz o seguinte: só se pode ser bom poeta até os 25 anos, porque depois toda a rebeldia da linguagem a que o jovem se propõe a imprimir em seus versos se transforma, com o tempo, em vício ou em fórmula. E do contrário, só é possível ser um bom prosador depois de velho, principalmente para quem se aprofundou nos bosques da ficção e, além da experiência com a arte da escrita, acumulou a experiência com a existência. Neste caso, se levarmos a sério o quadro acima proposto, Cleci Silveira, mais uma vez reverte a expectativa. Contra natura ela investe suas forças na poesia restaurando no outono a primavera da linguagem. De outra parte, no momento exato da colheita dos louros advindos da experiência de vida, Cleci põe de lado, transitoriamente, a prosa e os prazeres da demora inerentes ao gênero para se dedicar à rapidez e à elipse da poesia.

Não é um despropósito usar a metáfora da “primavera da linguagem” para definir a tarefa poética. A poesia é a linguagem de partida de todos os demais discursos verbais. Cleci reconhece isso ao convocar em “Primeiro poema” o poder desse afazer que evoca a música de
certa valsa triste
dum setembro ido
no canteiro úmido,
assim, Poemas de aprendiz se abre ao leitor como um álbum onde a memória é revivida na tensa tranquilidade do presente. A nostalgia passa pelo crivo da consciência de linguagem. Afinal, não há garantia de que o leitor será seduzido pelos recursos poéticos que lhe são oferecidos poema após poema. Cleci Silveira sabe que a comunhão poética ou esse singular ato comunicativo está sempre aberto ao impreciso; trata-se de uma aventura, ou como se lê no poema “Voltar”:
no céu
procuro um interlocutor com quem repartir palavras
Mas esse “céu” – e me perdoe o leitor por lhe atormentar com minha provisória tresleitura –, esse “céu”, referido no excerto acima, pode ser o da linguagem. Interlocução e diálogo (conclusivos ou não) só são possíveis no interior da linguagem.

Alguém já disse que poesia não é enunciação; a rigor não é nem comunicação. O poeta e místico San Juan de la Cruz a define como uma “música calada”. Em poesia os ritmos e os arranjos sonoros relegam os significados dicionários e o bom senso a uma zona secundária. O ritmo e a música verbal fazem a poesia persuasiva e não informativa. Mas isso só alcança um sentido forte e valioso devido ao desejo de dois tipos de mentes poéticas: uma apta a inventar poemas e outra disposta a crer neles. O poeta fingidor precisa de um leitor igual. Esse leitor se alegra por sentir que a poesia pode comunicar-se antes que seja compreendida. Talvez o poema “Vendaval” fale sem falar, entre outras coisas, algo a propósito disso, julgue o leitor:
Amanheço, aos poucos, quando há vento
O ar apressado deixa exausta minha lucidez
Só mais tarde, os olhos bem abertos, a mente alerta
Tento escrever alguns versos
Que ainda trazem o desalento da noite
Tentar “escrever alguns versos” me remete à tópica do poeta ensimesmado que considera tanto os fracassos, quanto as possibilidades expressivas do seu meio. Esse tema também foi cantado de modo rigoroso por Carlos Drummond de Andrade, e no livro José (1942) pode-se ler o poema “O Lutador”, cujos primeiros versos dizem: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã...”, e mesmo assim o poeta volta a lutar mal rompe a manhã. No cerne desse embate mais uma vez nos deparamos com os dois pólos que justificam a arte da poesia, isto é, o “repetir para aprender” e o “aprender para criar”. Esse trabalho, ou melhor, essa viagem sempre recomeçada a cada texto (sistema que se exaure e se renova a cada gesto poeticamente crucial) é a antiga novidade e sua duradoura efemeridade que, de ordinário, nos comovem. Entre as capas de Poemas de aprendiz Cleci Silveira descobre o saudoso e o corrosivo desse ofício do verso: a varanda ensolarada e o cheiro de mofo; o prosaico namoro no portão e a luz mediterrânea, homérica. Enfim, compõe poemas feitos à semelhança do desejo do leitor sensível e ao mesmo tempo afeitos à tradição, e que recriam, para além do lirismo funcionário público, o vivido e o imaginado. Além do mais, os versos de Cleci, graças à sua porção prosadora, são sempre graciosamente narrativos, não distinguem entre cantar e contar, e seguem vizinhos aos versos do português Jorge de Sena, que dizem: “Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito./ Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,/ quando fico triste por serem palavras já ditas/ estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos”. Cleci Silveira expressa o mesmo, mas de maneira diferente, isto é, inventa a sua própria metáfora interpretativa, ouçamo-la:
são apenas dedos fugitivos
a dar vida às teclas de um piano
que, de tão velho, o carregaram cupins
Acho oportuno fechar o prefácio com o famoso lembrete do poeta T. S. Eliot a propósito da relação entre poesia e emoção, pois a observação me parece caber à maravilha para esse feliz aprendizado poético que Cleci Silveira resolveu dividir conosco publicando Poemas de aprendiz, escreve assim o mestre do modernismo: “a poesia não é um perder-se na emoção, mas um escapar da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade”, mas Eliot acrescenta em seguida e rapidamente: “porém, de fato, só aqueles que têm personalidade e emoção sabem o que significa querer escapar dessas coisas”. Com efeito, personalidade e emoção são valores e figurações com respeito às quais a fineza da linguagem contida em Poemas de aprendiz não descura em nenhum momento. Cleci Silveira escapa com arte de ambas.

Ensaio - Ronald Augusto

Escola de Atenas ~ Raffaello Sanzio
A obscura poesia de Heráclito e alguns poetas

Meu propósito, nesse breve comentário , é, a partir de algumas referências avançadas por Edward Hussey no ensaio “Heráclito” (em Primórdios da Filosofia Grega), a propósito da forma do pensamento heraclitiano, chamar a atenção para a presença de aspectos da linguagem de Heráclito no trabalho poético-crítico de três autores fundamentais da tradição moderna e contemporânea da poesia, a saber, T. S. Eliot, Octavio Paz e Haroldo de Campos. Desde logo aviso ao leitor que o texto é incompleto e, em alguns momentos, não esconde seu caráter de esboço ou de rascunho.

De saída é curioso notar, marginalmente, que embora Parmênides – também um pré-socrático como Heráclito – tenha materializado suas teses filosóficas em versos, isto é, tenha penetrado, pelo menos aparentemente, mais no terreno da poesia do que o próprio Heráclito (pois, ao que parece, Heráclito escreveu exclusivamente em prosa), no entanto, foi justamente a linguagem heraclitiana, ao contrário do que se poderia supor, que repercutiu de forma mais consequente na imagética dos poetas. Uma lição que se extrai disso é a de que o domínio da métrica (um dos recursos do fazer poético), por si só, não faz de ninguém um poeta. Os hexâmetros homéricos com que Parmênides, na Via da Verdade, expõe sua tese de que só se pode pensar no que é ou no que existe, não têm, a rigor, função significante, servem apenas de molde ou de fôrma ao seu pensamento; em certa medida pode-se afirmar que o metro em Parmênides resulta menos em ganho do que em perda. Na Poética há uma passagem em que Aristóteles, a propósito de questão similar (embora sejam outros os envolvidos), diz o seguinte: “nada há de comum, exceto a métrica, entre Homero e Empédocles; e por isso com justiça se chama de poeta o primeiro e de filósofo o segundo”.

Em outras palavras: pela via de uma função específica de linguagem, seja em prosa, seja em verso, isto é, a função imagética, o texto filosófico de Heráclito contém mais poesia do que o simulacro de poesia que Parmênides nos legou. Este seria mais filósofo do que aquele, segundo a recepção da tradição poética.

No texto de Hussey podemos verificar uma série de sucintos apontamentos sobre a forma ou sobre os traços compositivos e textuais por meio dos quais Heráclito constrói seu pensamento filosófico. Esses traços têm muitos pontos em comum com o discurso da poesia. Por exemplo, a menção de Hussey às “sentenças aforísticas sem [aparente] ligação formal”, nas quais o comentarista identifica um “estilo único”, e Hussey vai além, cito: “A variegada prosa de Heráclito, artística e cuidadosamente estilizada, vai de sentenças factuais em linguagem comum a enunciados oraculares com efeitos poéticos especiais em vocabulário, ritmo e arranjo de palavras. Muitas sentenças jogam com paradoxos ou se aventuram de modo provocador no limiar da autocontradição”. A percepção de que o discurso de Heráclito evolui através de “sentenças aforísticas sem ligação” tem relação análoga ao princípio da parataxe que rege a poesia. A parataxe estrutura o discurso de tal maneira que os enunciados formam sequências justapostas de frases, sem que seja preciso o uso de conjunções coordenativas, temos uma precipitação para a analogia, a arte, a forma, a síntese, enfim, a relação entre as partes se dá de modo mais impreciso. De outra parte, a hipotaxe organiza o discurso com um pendor para os aspectos lógicos, a ciência, o “conteúdo”, a análise.

Essa característica paratática da linguagem heraclitiana talvez esteja por trás da seguinte afirmação de Hussey que, através dela, refuta a pecha de “obscuro” com que os gregos posteriores se referiam a Heráclito, diz o comentarista: “Certamente Heráclito nem sempre buscava a ordem expositiva e a clareza como se as costuma almejar”. Podemos considerar a aparente obscuridade de Heráclito como uma intencionalidade, uma determinação, pois, de acordo com Hussey, o filósofo “explora todos os recursos da língua grega em seu esforço de representar as coisas como são”. Parece-me que a disposição de Heráclito para explorar ao máximo os recursos do seu idioma materno tem razoável relação com a noção carrolliana segundo a qual, no que toca à poesia, “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”.

É também com esse apetite que Heráclito se serve da noção de logos numa faixa de significado bastante flexível. Tanto que em alguns momentos logos pode ser interpretado como o discurso mesmo que Heráclito usa para relatar aos seus contemporâneos o entendimento de que há um princípio comum ou uma ordem comum subjacente à diversidade das coisas. A noção de logos significa também a razão ou a estrutura íntima das coisas e esse estado de coisas deve concordar com o relato (o texto poético-filosófico que ele enuncia) que procura apresentar cada constituinte segundo sua natureza e revelando-o tal como é. Pois bem, para o poeta estadunidense Ezra Pound, literatura é a linguagem carregada de significado. Pound diz que há três formas de carregar a linguagem: por meio da melopeia, da fanopeia e, finalmente, da logopeia. A melopeia responde pelos aspectos musicais e rítmicos do poema; a fanopeia cuida de representação imagética e/ou metafórica do texto; e a logopeia, segundo o próprio Pound, é “a dança do intelecto entre as palavras”. A logopeia é o discurso que para, ao mesmo tempo, sobre si mesmo e sobre a coisa. A coisa, tal como é nomeada, revela a própria dança da logopeia (pensamento): o movimento da razão estruturante.

O primeiro poeta a aparecer aqui, dos três já mencionados no início desse texto e que denunciam em suas obras a contribuição heraclitiana, é T. S. Eliot (1888-1965). Eliot publica em 1943 o longo poema “Quatro Quartetos” que tem como epígrafes dois fragmentos de Heráclito, a saber, o Fr. 2 “Embora a razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento”; e o Fr. 60 “O caminho que sobe e o caminho que desce são um único e mesmo”. As epígrafes em conjunto formam o logos, a logopeia do poema de Eliot. Índices do pensamento de Heráclito (a unidade dos contrários) e de seu estilo oracular afloram recriados (relativos desvios da norma) em várias passagens dos Quartetos, por exemplo:
No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne
(...)
Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isto fixidez,
Pois passado e futuro aí se entrelaçam. Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda
(...)
Não haveria dança, e tudo é apenas dança
(...)

O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não apenas o repouso do violino, enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio
(...)

Em meu princípio está meu fim
(...)

O tempo da cópula entre homem e mulher
E o das bestas. Pés para cima, pés para baixo.
Comendo e bebendo. Bosta e morte.
(...)

O rio flui dentro de nós, o mar nos cerca por todos os lados
(...)
T. S. Eliot lida com grande liberdade com as questões heraclitianas, já que ele responde como poeta ao pensamento essencialmente poético de Heráclito. Quando uso o qualificativo “poético” tenho em mente essa ideia de Aristóteles: “A poesia é mais fina e mais filosófica do que a história; porque a poesia expressa o universal, e a história somente o detalhe”. Há diversos elementos no poema “Quatro Quartetos” onde essas complexas interações com a filosofia de Heráclito se revelam à flor da linguagem de Eliot, mas que isto fique reservado, à parte, como insumo para uma pesquisa mais detida a ser realizada no futuro.

Já no caso de Octavio Paz, a herança do discurso heraclitiano, se não se manifesta expressamente por meio de citações, tem a qualidade de se entrelaçar intimamente ao pensamento crítico e poético do mexicano, é como se verificássemos mais uma confluência do que uma influência de Heráclito. Assim, apesar de um dos seus livros mais conhecidos intitular-se O arco e a lira – menção direta à tese da unidade dos opostos que sustenta que há, subjacente à aparente discordância das coisas, uma estrutura latente que não só as unifica, mas que também as torna uma e mesma coisa –, Octavio Paz, ao longo das mais de 360 páginas do livro, vai se referir à Heráclito apenas duas ou três vezes. Mas, na verdade, Heráclito está inscrito na própria dicção de Paz, a mera referência nominal ao filósofo é secundária. Na abertura de O arco e a lira, o poeta se dispõe a nos apresentar as diferenças entre poesia e poema, o resultado é um parágrafo inteiro que coleciona uma série de enunciados estruturados a partir de oposições, isto é, a poesia é sempre, ao mesmo tempo, algo e seu oposto, vejamos:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual (...) A poesia re¬vela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Ex¬pressão histórica de raças, nações, classes. Nega a his¬tória (...) Filha do acaso; fru¬to do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras (...). Jogo, trabalho (...) diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, pa¬lavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, po¬pular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida (...) ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!
Vejamos as passagens onde Heráclito é mencionado. No trecho a seguir, Octavio Paz constata que a história do Ocidente superestima o aspecto da racionalidade sobre a intuição e a percepção sensível, por isso, segundo o poeta “Mística e poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída”. Paz descreve assim os efeitos desse fato no homem: ele é um desterrado do fluir cósmico e de si mesmo; e finaliza dizendo o seguinte: “(...) ninguém ignora que a metafísica ocidental termina num solipsismo. Para rompê-lo, Hegel regressa até Heráclito”. Nas últimas páginas da obra, Octavio Paz se detém uma pouco mais no mestre obscuro de Éfeso, cito: “Na sentença de Anaximandro – as coisas expiam seus próprios excessos – já está ali em germe toda a visão polêmica do ser de Heráclito: o universo está em tensão, como a corda do arco ou as cordas da lira. O mundo, ‘transformando-se, repousa’. Heráclito, porém, não apenas concebe o ser como devir, mas faz do homem lugar de encontro da guerra cósmica. O homem é polêmico porque todas as forças terrestres e divinas se encontram e lutam em seu interior”. A visão heraclitiana se transfigura em Octavio Paz assumindo tonalidades barroquizantes. O poeta mexicano tem outro livro cujo título é revelador do impacto da tese da unidade dos contrários em sua aventura estética e intelectual, trata-se da obra Conjunções e disjunções. Os conectivos lógicos, conjunção (˄) e disjunção (˅), são instâncias dos clássicos pares de opostos de Heráclito.

Ainda que de maneira bastante pontual, Haroldo de Campos, o poeta concreto, também dialogou com a tradição heraclitiana na poesia. Mas seu interesse se limitou à tarefa de transcriar para a nossa língua alguns fragmentos do livro Sobre a Natureza de Heráclito. O fato de o filósofo ter recebido injustamente o epíteto de “o obscuro”, devido às qualidades poéticas de seus escritos, moveu Haroldo de Campos ao desafio da transcriação desses excertos, já que, para o poeta concreto, a tradução de poesia envolve um esforço de criação na língua de chegada tão intenso e poético quanto o que foi requerido para a realização do texto em sua língua de partida. Mais do que uma sombra esmaecida do texto original, a versão almejada por Haroldo de Campos vai se postar em paralelo em relação àquela numa espécie de espelhismo virtuoso. No limite, o original grego de Heráclito pode ser considerado como uma tradução às avessas da obra transcriada pelo poeta brasileiro, isto é, a transcriação alcança uma autonomia perante o texto original. Pelo menos é o que pretende Haroldo de Campos que, como epígrafe para a sua experiência translatícia, cita a seguinte máxima de Novalis: “O verdadeiro tradutor... Ele deve ser o poeta do poeta”. O conjunto das transcriações, que integra o livro A educação dos cinco sentidos , foi batizado como “Heráclito revisitado”, vejamo-lo:
aión

vidatempo:
um jogo de
criança

(reinando
o Infante
Infância)

ho ánax

o oráculo
em Delfos
não fala
nem cala

                    assigna

hélios

o Sol não desmesura

(ó Eríneas, servas de Dike,
justiçadoras)


hai psychaì / psychês esti logos

almas farejando no Hades

alma-logos
semprexpandir-se



eoûs kaì hespéras

lindes
de aurora
e ocaso                    a Ursa
                    e face à Ursa                    o marco de Zeus coruscante


físis filocríptica

desvelos
do sem-véu
pelo velar-se


ho kállistos kósmos

varredura do acaso      belo
cosmos


caleidocosmos

lixo (luxo) do acaso
                    cosmos


pánta rheî

tudo riocorrente
Espero que com esse apanhado, ainda que lacunar, de realizações parciais de poetas que buscaram uma interlocução não apenas com a significação da filosofia de Heráclito, mas, especialmente, com a materialidade mesma de sua linguagem intrinsecamente poética – já que, inapelavelmente, é através dela, que tal filosofia se plasma e se deixa interpretar –, possamos reconhecer que Heráclito, além de ser “figura de permanente interesse para filósofos” por se tratar de “um pioneiro dos pensamentos filosófico e científico” (Edward Hussey), é também de fundamental importância para a tradição da poesia universal e seus novos rumos ainda a serem traçados.

Ensaio - Ronald Augusto


Os versos fraturados de Orfeu da Conceição

“E uma última palavra: esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país - melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca.”
Vinicius de Moraes

Essas anotações (deixadas à parte e incompletas), relativas aos tópicos verso/métrica e metapoesia, são estudos provisórios com vistas a uma futura aventura de análise que, espero, não demore a acontecer, e nasceram de forma subsidiária de um artigo que escrevi a propósito de outros aspectos da peça Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes. A tragédia carioca foi encenada pela primeira vez em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A obra Orfeu da Conceição é, sob vários aspectos, desbravadora, pois o poeta, se antecipando a muitos autores de teatro, a escreveu para que fosse encenada por um elenco de atores negros – fato até então inédito em nossa dramaturgia. Notável também o esforço de Vinicius de Moraes na recriação do mito grego de Orfeu, transculturando-o, em termos de sincronia, para o Brasil dos anos 40/50, ou seja, a persona de Orfeu é afivelada, agora, sobre um rosto negro e reaparece no cenário de um morro do Rio de Janeiro.
Fiel, a princípio, às fontes mitológicas, Vinicius define um dos assuntos de sua tragédia, isto é, a própria poesia, já na primeira fala de Orfeu, quando a personagem diz: “ORFEU: Toda a música é minha, eu sou Orfeu!”.1 Como o herói trágico é poeta e músico não há como escapar das indicações metalinguísticas e da referência à tarefa criativa (semelhante motivação se encontra em dois filmes de Jean Cocteau, também dedicados ao mito de Orfeu: Orphée, 1950; e Le testament d’Orphée, 1959). E o Orfeu negro, sambista carioca, prossegue na mesma toada: “Tudo o que eu aprendi, da posição/ À harmonia, e que se nada fez/ É porque fez demais, fez poesia”.2 Ainda sobre o quesito do “poema que se dobra sobre si mesmo”, temos esses versos: “ORFEU: Um gosto sem palavras, como só/ A música pode dar…”.3
Os versos de Orfeu da Conceição – os dos diálogos dramáticos – são, no geral, decassilábicos ou decassílabos. Embora nas letras das músicas os metros sejam mais curtos (versos cujas variedades oscilam de 5 a 7, 8 sílabas no máximo), em vários momentos deparamos um decassílabo disfarçado, oculto na quebra de um verso para outro. Todavia, eventualmente vislumbramos a ocorrência de alexandrinos também negaceados através do encadeamento entre os versos. A contaminação semiótica é recíproca: os versos, portadores da narrativa dramática, apesar de a cadência, em momentos-chave, torná-los um pouco rituais, solenes e hieráticos, não deixam de se revelar surpreendentemente distensos, hesitantes e domésticos. Por outro lado, na estrutura secreta das letras dos sambas onde, por inércia, preferimos sobrevalorizar o acento naïf e a ginga, Vinicius consegue incrustar dados e convenções da tecnologia versificatória que pareciam estranhos a essa manifestação de arte popular. Essa transação de signos, essa encruza cambiante de informações estéticas começou a se materializar em Orfeu da Conceição a partir do instante em que – como ele mesmo escreve no prefácio à peça – Vinicius de Moraes sentiu “no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca”.4 Portanto, a propósito do que está escrito acima, note-se, por exemplo, que na primeira música da peça, o samba “Um nome de mulher…”,5 a análise da métrica revela o uso do enjambement na ocultação, primeiro, de um dodecassílabo: “E um homem que se preza/ em prantos se desfaz” (tônicas na 6ª e 10ª sílabas); a seguir ouvimos o(s) verso(s): “E faz o que não quer/ e perde a paz”, que é, com efeito, um decassílabo heroico (tônicas na 6ª e 10ª sílabas) dissimulado no arranjo versificatório da letra.
Na mesma perspectiva de uma metrificação flexível e das fraturas do verso – enjambement/ encadeamento –, é possível observar o esquema, consagrado na tradição do teatro em versos, da passagem e da preservação da estrutura métrica através do diálogo entre as personagens, conforme se observa nesse exemplo onde, na voz de Eurídice, o virtual decassílabo “Mem/bri/a/gar/des/tre/las…”6 é interrompido na sétima sílaba métrica que é átona, mas sendo complementado, em seguida, já na voz de Orfeu com as três sílabas métricas finais “Ah/ne/guin/ha…”. O verso completo, sem o parcelamento métrico entre Eurídice e Orfeu que o executam a duas vozes, à maneira de um jogral, ficaria assim: “Me embriagar de estrelas… Ah, neguinha!”. Vinicius de Moraes ministra a sua cultura poética (esse fine excess associado à poesia) no vaso poroso das formas populares; a aspereza dúctil da fala na educação pela métrica da tradição versificatória clássica. Qualidades díspares de linguagem postas em relação; e onde uma não deve ser sobreposta à outra.
Mais uma nota referente à questão do metapoema em Orfeu da Conceição. ORFEU: “Ah, minha Eurídice/ Meu verso, meu silêncio, minha música”.7 No fragmento: o amor cortês, essencialmente trovadoresco. Orfeu corteja tanto a sua arte quanto Eurídice, ele se refere a uma em termos da outra. Entoa: “minha música”: a incidência etimológica na metáfora.
Ainda sobre a questão da metrificação e de seu nagaceio nos versos de dois sambas: “Eu e o meu amor…”;8 e “Não posso esquecer/ o teu olhar…”.9 Os dois últimos versos do primeiro samba formam, na verdade, um alexandrino (inclusive com a presença da tônica na 6ª sílaba), graças ao recurso do enjambement que o dissimula do seguinte modo: “E foi-se embora/ Para nunca mais voltar…”. Já no segundo samba, também apenas no desfecho da letra, cujos versos todos são, à exceção do último, de extensão mais curta (oscilam de quatro a seis sílabas), vemos a irrupção de um decassílabo heroico, metro, aliás, predominante na estrutura desse drama em versos. Vejamos o verso de dez sílabas (acentuação na sexta e décima sílabas): “Sereno dos meus olhos já correu…”.
Vinicius de Moraes em Orfeu da Conceição enfrenta o desafio da voz dramática cujo verso deve ter outra liga; trata-se quase da “palavra voando”, metáfora por meio da qual Joyce define a letra cantada; é quase isso.Borges, por sua vez, afirma que o verso que se impõe como pronúncia “nos faz lembrar que antes de arte escrita foi uma arte oral: o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”. Um canto que se foi. Entre as três vozes da poesia T. S. Eliot considera a voz dramática – as outras são a épica e a lírica – como a mais desafiadora ao gênio do poeta. Quando o autor de The waste land sublinha a voz dramática, em detrimento da épica e da lírica, ele fala em termos de uma reconquista, como ganho, do teatro em versos, talvez porque as características mais híbridas concentradas em tal forma poética favoreçam a conjugação, sem muitos conflitos, daquelas e, inclusive, de outras vozes.

Notas

1. MORAES, Vinicius de. Orfeu da Conceição (tragédia carioca). Rio de Janeiro: Editora Dois Amigos, 1956. p.: 19

2. Idem ibidem. p. 22

3. Idem ibidem. p. 23

4. Idem ibidem. p. 14

5. Idem ibidem. p. 26

6. Idem ibidem. p. 28

7. Idem ibidem. p. 33

8. Idem ibidem. p. 76

9. Idem ibidem. p. 79

Ensaio - Ronald Augusto


Os versos fraturados de Orfeu da Conceição
“E uma última palavra: esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país - melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca.”
Vinicius de Moraes
Essas anotações (deixadas à parte e incompletas), relativas aos tópicos verso/métrica e metapoesia, são estudos provisórios com vistas a uma futura aventura de análise que, espero, não demore a acontecer, e nasceram de forma subsidiária de um artigo que escrevi a propósito de outros aspectos da peça Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes. A tragédia carioca foi encenada pela primeira vez em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A obra Orfeu da Conceição é, sob vários aspectos, desbravadora, pois o poeta, se antecipando a muitos autores de teatro, a escreveu para que fosse encenada por um elenco de atores negros – fato até então inédito em nossa dramaturgia. Notável também o esforço de Vinicius de Moraes na recriação do mito grego de Orfeu, transculturando-o, em termos de sincronia, para o Brasil dos anos 40/50, ou seja, a persona de Orfeu é afivelada, agora, sobre um rosto negro e reaparece no cenário de um morro do Rio de Janeiro.

Fiel, a princípio, às fontes mitológicas, Vinicius define um dos assuntos de sua tragédia, isto é, a própria poesia, já na primeira fala de Orfeu, quando a personagem diz: “ORFEU: Toda a música é minha, eu sou Orfeu!”.1 Como o herói trágico é poeta e músico não há como escapar das indicações metalinguísticas e da referência à tarefa criativa (semelhante motivação se encontra em dois filmes de Jean Cocteau, também dedicados ao mito de Orfeu: Orphée, 1950; e Le testament d’Orphée, 1959). E o Orfeu negro, sambista carioca, prossegue na mesma toada: “Tudo o que eu aprendi, da posição/ À harmonia, e que se nada fez/ É porque fez demais, fez poesia”.2 Ainda sobre o quesito do “poema que se dobra sobre si mesmo”, temos esses versos: “ORFEU: Um gosto sem palavras, como só/ A música pode dar…”.3

Os versos de Orfeu da Conceição – os dos diálogos dramáticos – são, no geral, decassilábicos ou decassílabos. Embora nas letras das músicas os metros sejam mais curtos (versos cujas variedades oscilam de 5 a 7, 8 sílabas no máximo), em vários momentos deparamos um decassílabo disfarçado, oculto na quebra de um verso para outro. Todavia, eventualmente vislumbramos a ocorrência de alexandrinos também negaceados através do encadeamento entre os versos. A contaminação semiótica é recíproca: os versos, portadores da narrativa dramática, apesar de a cadência, em momentos-chave, torná-los um pouco rituais, solenes e hieráticos, não deixam de se revelar surpreendentemente distensos, hesitantes e domésticos. Por outro lado, na estrutura secreta das letras dos sambas onde, por inércia, preferimos sobrevalorizar o acento naïf e a ginga, Vinicius consegue incrustar dados e convenções da tecnologia versificatória que pareciam estranhos a essa manifestação de arte popular. Essa transação de signos, essa encruza cambiante de informações estéticas começou a se materializar em Orfeu da Conceição a partir do instante em que – como ele mesmo escreve no prefácio à peça – Vinicius de Moraes sentiu “no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca”.4 Portanto, a propósito do que está escrito acima, note-se, por exemplo, que na primeira música da peça, o samba “Um nome de mulher…”,5 a análise da métrica revela o uso do enjambement na ocultação, primeiro, de um dodecassílabo: “E um homem que se preza/ em prantos se desfaz” (tônicas na 6ª e 10ª sílabas); a seguir ouvimos o(s) verso(s): “E faz o que não quer/ e perde a paz”, que é, com efeito, um decassílabo heroico (tônicas na 6ª e 10ª sílabas) dissimulado no arranjo versificatório da letra.

Na mesma perspectiva de uma metrificação flexível e das fraturas do verso – enjambement/ encadeamento –, é possível observar o esquema, consagrado na tradição do teatro em versos, da passagem e da preservação da estrutura métrica através do diálogo entre as personagens, conforme se observa nesse exemplo onde, na voz de Eurídice, o virtual decassílabo “Mem/bri/a/gar/des/tre/las…”6 é interrompido na sétima sílaba métrica que é átona, mas sendo complementado, em seguida, já na voz de Orfeu com as três sílabas métricas finais “Ah/ne/guin/ha…”. O verso completo, sem o parcelamento métrico entre Eurídice e Orfeu que o executam a duas vozes, à maneira de um jogral, ficaria assim: “Me embriagar de estrelas… Ah, neguinha!”. Vinicius de Moraes ministra a sua cultura poética (esse fine excess associado à poesia) no vaso poroso das formas populares; a aspereza dúctil da fala na educação pela métrica da tradição versificatória clássica. Qualidades díspares de linguagem postas em relação; e onde uma não deve ser sobreposta à outra.

Mais uma nota referente à questão do metapoema em Orfeu da Conceição. ORFEU: “Ah, minha Eurídice/ Meu verso, meu silêncio, minha música”.7 No fragmento: o amor cortês, essencialmente trovadoresco. Orfeu corteja tanto a sua arte quanto Eurídice, ele se refere a uma em termos da outra. Entoa: “minha música”: a incidência etimológica na metáfora.

Ainda sobre a questão da metrificação e de seu nagaceio nos versos de dois sambas: “Eu e o meu amor…”;8 e “Não posso esquecer/ o teu olhar…”.9 Os dois últimos versos do primeiro samba formam, na verdade, um alexandrino (inclusive com a presença da tônica na 6ª sílaba), graças ao recurso do enjambement que o dissimula do seguinte modo: “E foi-se embora/ Para nunca mais voltar…”. Já no segundo samba, também apenas no desfecho da letra, cujos versos todos são, à exceção do último, de extensão mais curta (oscilam de quatro a seis sílabas), vemos a irrupção de um decassílabo heroico, metro, aliás, predominante na estrutura desse drama em versos. Vejamos o verso de dez sílabas (acentuação na sexta e décima sílabas): “Sereno dos meus olhos já correu…”.

Vinicius de Moraes em Orfeu da Conceição enfrenta o desafio da voz dramática cujo verso deve ter outra liga; trata-se quase da “palavra voando”, metáfora por meio da qual Joyce define a letra cantada; é quase isso.Borges, por sua vez, afirma que o verso que se impõe como pronúncia “nos faz lembrar que antes de arte escrita foi uma arte oral: o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”. Um canto que se foi. Entre as três vozes da poesia T. S. Eliot considera a voz dramática – as outras são a épica e a lírica – como a mais desafiadora ao gênio do poeta. Quando o autor de The waste land sublinha a voz dramática, em detrimento da épica e da lírica, ele fala em termos de uma reconquista, como ganho, do teatro em versos, talvez porque as características mais híbridas concentradas em tal forma poética favoreçam a conjugação, sem muitos conflitos, daquelas e, inclusive, de outras vozes.

Notas

1. MORAES, Vinicius de. Orfeu da Conceição (tragédia carioca). Rio de Janeiro: Editora Dois Amigos, 1956. p.: 19
2. Idem ibidem. p. 22
3. Idem ibidem. p. 23
4. Idem ibidem. p. 14
5. Idem ibidem. p. 26
6. Idem ibidem. p. 28
7. Idem ibidem. p. 33
8. Idem ibidem. p. 76
9. Idem ibidem. p. 79

Ensaio - Ronald Augusto

Metalanguage #2 - Rosario Giacomazza
Alexandre Brito alheio ao próprio sentido e às portas do Metalíngua

Num poema intitulado “Nova poética” (1949), Manuel Bandeira lançou a teoria do poeta sórdido: “aquele em cuja poesia há a marca suja da vida”. Augusto de Campos, por sua vez, publica em 1953 o Poetamenos, volume-vírus de distúrbio afásico inoculado na corrente sangüínea da linguagem poética do período, caracterizada por certa opulência discursiva e um preciosismo lexical. Herança duvidosa dos poetas filosofantes de 45. De outra parte, alguns princípios estéticos do alto modernismo caíam em descrédito ou se diluíam em lirismo de compadrio.

Assim, como prólogo à poesia do grupo noigandres, o livro de Augusto de Campos, o vietcong concreto por excelência, carrega em seu bojo uma estética da recusa e a visão de que a poesia deveria se constituir em “essências e medulas”. O poetamenos ministraria o mínimo indispensável de “poeticamente correto” exigido pelo repertório do leitor. Na verdade, o poetamenos convida o leitor ao exercício da co-autoria de um texto lacunar.

Muito bem. Agora chegou a minha vez de levantar uma teoria: a do poetamais. Alexandre Brito é convocado a vestir a camisa, e a jogar um jogo cujas regras não são pétreas. O poetamais que identifico em Alexandre Brito começa a aparecer já em alguns poemas do seu O fundo do ar e outros poemas (ed. Ameopoema, 2004), mas ganha em radicalidade nos poemas mais recentes, ainda inéditos, que tive a oportunidade de ler. Poemas perturbados por uma discursividade desviante e desafiadora. A poesia+ de Alexandre Brito não investe, portanto, numa “retomada” do texto discursivo, como tentativa de solucionar a nostalgia do conteúdo. Não canta o retorno a uma “poesia que tem algo a dizer”; não. Sua experiência com a dicção discursiva se dá pelo lado da metalinguagem e de uma certa fantasia escritural centrífuga, com ressonâncias do hipertexto do “overmundo” virtual. Brito afivela o discursivo como máscara, isto é, fala “através de”. Manipula os dados do seu texto paralelamente à tradição do poema longo. Estabelece contrastes, pontos de apoio e de fuga. Olha os limites e as chances dessa algaravia com olhos livres, ou desde um ponto de vista que simpatiza com os significados esquivos sugeridos pelo jogo de equivocábulos.

À diferença do texto da opulência verbal, rio na cheia, que caminharia num crescendo até o desaguadouro da “emoção” do leitor, o poetamais Alexandre Brito, propõe um tom discursivo não-cumulativo, não-sequencial. Por sua qualidade mais sincrônica do que diacrônica, no que respeita ao arranjo do vocabulário e da sintaxe, estes poemas desmesurados são menos verberações do que transverberações. Brito rasga transversalmente e ironicamente o tecido do poema verboso, consagrado assim pelo uso ou pelo cansaço.

Graças à mobilidade fugidia dos seus signos, esta transverberação do poetamais, salta da folha branca e incorpora o gosto e o gozo da fala quase-canto, e estabelece uma forma de linguagem onde os sentidos afloram de chofre, para, logo a seguir, serem revogados sem angústia, talvez, por amor à música, ou ao silêncio: facetas de uma mesma fatura criativa.

A festa vertiginosa de som e sentido que Alexandre Brito, como poetamais, nos oferece, vai ao encontro da teoria do poeta sórdido, de Manuel Bandeira. Mas o que surtirá dessa convergência? Parafraseando o poeta pernambucano: poetamais é aquele em cuja poesia há a rasura suja (luxo/lixo?) da linguagem que se define a partir da dissipação dos seus próprios signos. Arte que “existe pra nada”, como nos propõe Alexandre Brito com desassombro em um dos seus poemas.

Ensaio - Ronald Augusto

The Critic, 1978 - William Ronald

Notas Precárias Sobre Fazer, Saber e Julgar

A atividade crítica, como há pouco escreveu o poeta Marcus Fabiano, mantém, sob certos aspectos, estreita analogia com a tarefa do jurado de qualquer prêmio ou concurso literário (advirto que esse comentário se restringe ao campo da literatura, mas pode-se aventar a hipótese de que o problema seria o mesmo se falássemos do ponto de vista de outra atividade artística). Mas num certo momento seus caminhos, o do crítico e o do jurado, se bifurcam.

O jurado, assim como o crítico, a partir de critérios principalmente estéticos (por agora vamos dizer que deveria ser assim) assume a responsabilidade de apontar dentre aquelas obras apresentadas à competição, as mais bem logradas a partir do que é específico dessa linguagem. Já o crítico, seja por seu próprio apetite, seja por dever de ofício, se dobra sobre a produção do presente e do passado e propõe leituras e análises (eu diria que se dispõe a uma interlocução) a propósito das valências compositivas desses exemplares e avalia, principalmente, os seus resultados artísticos, e, secundariamente, as tensões semânticas sugeridas.

Enquanto a decisão não vem a público, jurado e crítico estão seguros. “Deixemo-los lá, os dois, fazendo o seu trabalho de suma importância para continuação do sistema literário”. Tão logo o resultado, seja da análise, seja do julgamento ou da interpretação se torne conhecido, e esse resultado acaba por separar, sempre, os melhores dos piores, seu recorte passa a ser severamente criticado.

A diferença entre o jurado e o crítico é que este dá a ver publicamente não só as obras literárias bem logradas que teve sob seus olhos. O jurado, por sua vez, faz uma crítica indireta, quase apaziguadora de conflitos, pois oferece (por agora vamos aceitar que é assim) ao leitor modelos do que considera um bom ou excelente trabalho literário ou de arte. No caso dos prêmios e concursos, exceto se algum derrotado/excluído não vem a público para lançar dúvidas sobre a decisão do jurado, nem sabemos quem morreu no caminho. O silêncio entre desdenhoso e vaidoso como que deixa tudo em panos quentes e, aparentemente, todos concordam que a justiça foi feita. “Eu? Não, não mandei nenhum original para esse prêmio. Nem sei quem ganhou”.

Assim, o crítico, ao menos dentro das condições do presente, enfrenta e produz alguns problemas, vejamos: (1) se ele escreve a favor de determinado autor – ou seja, diz bem do seu trabalho, livro, poema, etc – não faz bem porque poucos sabem escrever “a favor” (sem tropeçar no compadrio) hoje em dia. De outra parte, essa ideia de “coletivo de escritores” reduz o “a favor” a um vergonhoso estilo laudatório que preserva mais o sujeito que elogia do que o elogiado, pois no momento seguinte o objeto dos confetes lançados terá de retribuir o gesto na mesma moeda. Escrever “a favor” (e as condições momentâneas apontam para isso) é quase sinônimo de relação corruptora.

E (2) se o crítico escreve contra, ele é um filho da puta (com o perdão da expressão, culto leitor) porque esse “coletivo de escritores”, todos eles conectados graças às redes sociais, esse coletivo de ativistas, forma um campo benfazejo onde se prosperou a ideia – inclusive para que ninguém sofra um surto psicótico – de que não existem mais bons nem maus escritores. O que importa é participar; ser um representante desse coletivo.

Ensaio - Ronald Augusto



O menos vendido e suas partituras

Na abertura de O menos vendido (Nanquin Editorial, 2006), podemos ler um poema - espécie de pórtico - pertencente à família daquelas peças poéticas que discutem a tópica clássica segundo a qual a arte é simbolizada como um monumento resistente à inclemência do tempo e das intempéries. O poema, assim como “uma música [que] não precisa mais que três minutos./ Um haicai, alguns segundos”, é arte que perdura  e se dá  no tempo. Ricardo Silvestrin, como se lê num poema do seu livro Palavra mágica (1994), mais do que moderno, está no nervo do seu tempo e desde “a nave do novo” de sua viagem textual eterna, inscreve na caverna o vir-a-ser da sua linguagem. E é por esta razão que Silvestrin, mesmo sem dar as costas à dimensão espacial conquistada para a poesia a partir de Un Coup de Dés, de Mallarmé (1897), jamais se esquece de que a poesia ainda é uma arte temporal; ritmo para uma partitura vocal, ou, outra vez, como a música, um som e uma pausa; a sílaba tônica e a sílaba átona. A terra pulsando sob os pés, a voz que voa.


Este poema também representa a outra face da “moeda” que se estampa na capa do livro. Com efeito  e não se deve desprezar, mesmo, a sugestão de efígie: ao poeta o que é do poeta , o artigo / o /, ou o “zero” em cujo centro lemos o poema que dá título ao livro, rodopia diante do leitor fazendo-o pensar, talvez, o seguinte: se é verdadeiro que um poema de verdade, poema bom, pode atravessar séculos e séculos sem perder seu tônus de beleza, por outro lado, pode-se constatar que “às vezes passa um século [ou mais]/ e nenhum fica pronto”, ou nenhum se nos entesoura na memória. O preço pago, portanto, à dureza sempiterna dos grandes poemas, são os longos trechos de tempo em que temos de suportar uma grande massa de obras literárias desprovidas do menor toque de classe. Mas, para a nossa alegria, de quando em quando, exsurgem, do fundo insondável dos infernos da invenção, obras como O menos vendido.

No poema seguinte de “Manchas”, que integra a primeira seção-livro do conjunto de O menos vendido, temos a imagem do leitor como um executante da partitura-poema. Fruindo a chance de ficar de boca fechada, o intérprete dessa “música calada” não obedece a “Nenhuma outra lei/ além da leitura”. A dança das palavras se desenvolve na cabeça do leitor por meio de uma coreografia resumida de gestos, não-figurativa: “Nada soa/ além do silêncio”. Mas o leitor-executante  antípoda do apreciador da prosa de entretenimento sempre submetido à hipnose romanesca  não fica inteiramente alheio, pois na economia da leitura criativa e crítica exigida pela poesia de Ricardo Silvestrin este silêncio com que o leitor tem de se haver, mostra-se ativo, intratável. Portanto, cabe aqui, lembrar e ler o contra-acento, a pausa, esse nada que soa, como um “contratempo”, isto é, podemos fazê-lo participar das acepções de obstáculo, imprevisto, etc., além de “forma rítmica em que o som é articulado sobre um tempo fraco, átono”. Ou seja, lendo às cegas, fora do tempo ou no contrapé, abandonado apenas à lei da leitura, lúcido salvo que fabuloso, o leitor colhe no ar ou num “alugar” a chance de ficar calado enquanto percebe a cada virar de página que “Vão-se os papéis,/ ficam os textos.”

Ficam. Mas, aonde? O poema está sempre num outro lugar: “ponte pênsil do pensamento” ligando o desejo àquilo que não se acha à mão. Assim como o poeta, também o leitor de O menos vendido se rejubila de andar “fora do ponto”. Nenhum dos dois está pronto. Pois, como nos ensina Roman Jakobson, “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável” da poesia. Portanto, continua o lingüista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. Veja-se este excerto do poema da página 35: “e diante de algo tão vago/ passo a me pintar/ num desenho abstrato/ aos poucos/ dilui-se a figura/ traços que lembram/ quem sou ou o que fui/ agora uma mancha/ branca sobre o branco”.

Enquanto isso, a dessarrumação e a desmesura do mundo servem tão-só de tema ou de signo à fatura do poema: “Algumas palavras/ e tudo se transforma em leveza.” (“Desgramas”, pág. 34). O mundo (do poeta) é apenas povoado de “famílias de palavras”  em que pese, às vezes, ele se achar a muitas palavras de distância. A instabilidade do tecido de fundo do real, esse tablado móvel, não permite que o sentido caia duas vezes no mesmo lugar. Em que bases, então, se dá a experiência simbólica do homem sobre a superfície dissolvente do mundo? Não se espere de Silvestrin uma resposta de enciclopedista a esta questão tão remota quanto kitsch. Sem muitos circunlóquios o poeta nos propõe isso: “a ação [sobre o mundo] é o raio/ o sentido, o trovão/ que às vezes chega anos depois” (pág. 53). Mas, se e quando o sentido chegar, não nos encontrará, isto é, não seremos mais os mesmos, mesmo. Servirá a outro: “estou aqui/ por um tempo/ uma hora/ vou embora/ deixo escrito/ gravado/ algum pensamento/ que seja mais forte/ que a carne/ o sangue/ o osso/ que viva/ no corpo/ de outro”. O poema como estrutura viva ou ultima verba, não dura, em fim de contas, o tempo do monumental granito, nem do monólito; dura o tempo do corpo e seus tendões; o intervalo de suas espiras que constituem idéias.

Volto mais uma vez à metáfora do poema como partitura e de cujo silêncio o leitor-executante obtém a sua irredutível logopéia. Essa metáfora também é cara a Joan Brossa, para o poeta catalão os versos compõem “uma partitura” e “não são mais/ que um conjunto de signos” para a decifração do leitor colaborador. Do ponto de vista de Silvestrin, o silêncio que é sentido, vale dizer, significado ou quase-signo, é o melhor amigo do homem. Ouçamo-lo: “e o silêncio/ é o companheiro/ do homem/ seu fiel confidente/ escuta suas dores/ seus projetos/ é para ele/ que o homem/ fala/ e fala/ tudo o que sente/ o silêncio cala/ e consente” (pág. 63). Na palavra imantada de pausa, silêncio, onde podemos apreciar “os traços fonológicos da pessoa”, Ricardo Silvestrin destaca o humano das entranhas da humanimaldade. Volição e volatilidade do pensamento. Falar sem fabular é a coisa mais tediosa que pode acontecer ao homem, este animal que produz e consome símbolos. Ricardo Silvestrin desentranha o homem do poeta sem nenhuma veleidade moralizante: “preciso de água, luz, pátio, casa, família/ e também de símbolo, coisa que a planta/ e o cachorro/ não sabem/ que precisam” (pág. 57).

E é a partir desta perspectiva da celebração ou da “cerebração” (Alexandre Brito dixit) do pensamento-arte, “o que nasce da cabeça do homem”, que Silvestrin plasma o jornal íntimo de “A poesia de cada dia”, última parte de O menos vendido. Talvez seja esse o momento mais “ex, Peri, mental” do livro. Um poema para cada dia ganho/perdido. Cada poema a consagrar o dia que se dissipa na corrente do presente irredimível. Silvestrin usa a dosagem necessária de antipoesia. Lancinantes anotações à margem do instante precário. Um olhar de flâneur para as coisas belas e feras que se encontram entre ele e o mundo: shows, livros, praia cheia de argentinos, filmes, um lapso como desempregado, um programa de TV, etc. Uma cortina de fumaça (ou de bambu?) diarístico-verbal oscila entre o poeta e o entorno espetacularizado. Num andamento de prosa, Ricardo Silvestrin nos “passa a sua conversa”. Seus filosofemas capturados “na trilha trivial do cotidiano”, como refere Antonio Carlos Secchin no prólogo de O menos vendido. Mas, aqui, em “A poesia de cada dia”, não se trata, a rigor, da fala do poeta ou de suas metáforas: “Que poeta? É só um escritor”, mas sim das notas do escritor, ou, melhor, das cogitações de um ego scriptor, na tenção quase obsedante de transformar a coisa em palavra, mas ao mesmo tempo consciente de que o que ele representa e nomeia não se ajusta à perfeição à bitola do representado e do nomeado. Coisas e palavras falam de lugares divergentes, sua relação é duradoura porque “ambas só conseguem viver na intransigência”. Assim, nesse deambular pelas minudências de um epos do fútil e do útil, onde “tudo é motivo de celebração”, a linguagem continua sendo a viagem. Recordação na tranqüilidade daquilo que, por um momento, intranqüilizou Ricardo Silvestrin com sua maravilha ou sua injúria.

Ensaio - Denise Freitas e Ronald Augusto

Ilustração enviada pelo autor

Desde o título, Tambores pra n’zinga[1], até o que, feito um farfalhar de sentidos, se desprende dos poemas enfeixados entre suas capas – poemas que, às vezes, “dizem” mais o rumor de um discurso do que uma música em devir – nos tornamos mais ou menos cientes do que o livro de fato comunica? Não. Pois o que se dá e o que não se dá pelas forças das relações estabelecidas, o que não cabe durante nem após a expedição de conquista da leitura, enfim, mesmo ao afortunado intérprete a quem os sentidos de Tambores pra n’zinga se presentificassem na figura do compreensível, o que a linguagem de Nina Rizzi comunica, felizmente, é muito pouco. Em poesia a coisa que interessa não diz respeito à comunicação, o que vale a pena nesse jogo jamais é enunciado.

Mas tudo isso representa uma parcela dessa interpretação que se precipita agora mais para as senhas requeridas ao apetite do impreciso. A propósito disso, a pluralização dos advérbios quando e quase e do pronome indefinido tudo, que servem para intitular as três seções em que se divide o volume, intensifica essa percepção de Roman Jakobson – na abordagem do fenômeno poético – segundo a qual “a ambiguidade se constitui em característica intrínseca, inalienável”[2] da poesia. “Quandos”, “Tudos” e “Quases”: tradições e poéticas em anamorfose, e também tempos e espaços.

Por outro lado, o que nos revelaria a busca pelo preciso em Tambores pra n’zinga, a busca pelo signatum (o aspecto inteligível do signo) que diz os seus nomes? Antes cabe lembrar que o conteúdo (plástico e maleável como o desenho de uma ideia) é uma função da forma, essa linguagem de poucos instantes em situação de poema. EmTambores pra n’zinga o leitor usufrui de ritmos vários. Já nos títulos dos poemas a apresentação de rondas, árias, cantigas, baladas, pastorais, solos, adágios, sambas, jongos, maracatus, formam algumas das referências musicais presentes na obra. Fundamentais para qualquer ritmo (o que imediatamente os inscreve dentro das fronteiras da poesia), alternância de batidas, permuta entre acentos fortes e fracos, momentos de tensão e suavidade, capricho e descaso são levados a efeito por Nina Rizzi em sua recente publicação. Muito bem, a persona de Tambores pra n’zinga se autoproclama “mediterrâneo-africana”. Seus poemas que alternam e alteram (a sonoridade diz respeito ao verbal) essas formas musicais inventam um feminino mais metonímico que metafórico, mais revolto que revoltado; e a cobertura do livro, comoparatexto, iconiza à maravilha tal propósito.

Dentre outras características a destacar encontra-se a consciência da oscilação, inerente mesmo ao próprio som e que se estende para o texto. A autora sabe que pouca coisa sobra de espanto em oposições e contradições, pois há bastante tempo elas denotam peculiaridades indistintas da condição humana, assim, sabe também que não as poderia negar; mas as dispõe sem novidade, quase as buscando numa ideia de passado suficientemente conhecido e até mesmo repetido: “transbordam em mim reminiscências:/ águas que me secam, redundâncias de me sentir (...)”[3]. Nina reconhece, ainda, os limites da multiplicidade contida na acepção da controvérsia, e o faz quando salienta “(...) ninguém chega a ser dois nessas andanças”[4].

Entretanto, certo estranhamento discursivo, a inutilidade fruível da materialidade textual e os escapes intertextuais levam Nina Rizzi a versos desobedientes, a um, por assim dizer, “sentido último” do que quer que seja. Alguns excertos: “no peito, aquela coisa de moer cana”[5]; “sou grande, todo o largo./ imensa pra qualquer canto”[6]; “o alicate revela o ar cansado, hostil”[7]; “só um gosto malamaiado, doce/ das coisas primitivas”[8]. Sem pretender antecipar o trabalho do leitor, Nina Rizzi opera nos poemas suas próprias explicações sobre o que acabou de sugerir, só que para isso serve-se de uma incompatibilidade entre as metáforas; nem a primeira sentença se resolve, nem a segunda, pois a explicação presta-se mais à divergência do que à composiçãoharmoniosa do sentido, a primeira estrofe do poema “composição cor de wiskhi à zero hora” caracteriza essa situação, “há dias em que ela se derrama sobre mim/ como se estivéssemos grudadas, uma sombra na água ou pedras nos rins(...)”[9].

Depois da falsa certeza do auxílio, a licença. Num dos poemas a autora assevera “(...) é outubro e eu danço pra mim”[10]. A aparência do descarte, ou da dispensa do público e, por conseguinte, do leitor e de suas expectativas, contraria o lugar-cristalino (aparentemente alargado pelas publicações de poesias cada vez mais inconsistentes, para dizer o mínimo) da poesia como extensão daqueles velhos conhecidos de todos, os sentimentos. Apesar de carregar boa dose de intimismo, não o faz de maneira passional ou cedendo aos humores irrefletidos, esses que são parte da causa da arte ter sido circunscrita na esfera contemplativa e emocional do prazer, e afastada da reflexão. Aqui, furtamos de Paul Valéry a afirmação de que “a obra de arte me dá ideias, ensinamentos, não prazer”[11].

Todos esses traços construtivos que, em fim de contas, fazem menção tanto aoficto quanto ao histrio (fingidor, ator de mimos), pois simulam e jogam com a representação e o representado, se projetam, na dicção de Nina Rizzi, sobre a convenção do hister-o (do gr. hustéra,as “útero”), delimitando-lhe nova faixa de leitura. Isto é, graças à consciência de formas e de linguagem, Tambores pra n’zinga consegue acrescentar uma importante disrupção nessa restritiva “poética do feminismo” que, em muitos casos, só tem servido para sustentar uma espécie de apologia histérica da literatura de viés meramente reativo à naturalização da misoginia no interior dos cânones.

[1] RIZZI, Nina. tambores pra n’zinga. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012.
[2] JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, s/d. p. 128.
[3] RIZZI, Nina. Op. cit., p. 45.
[4] Id. Ibid., p. 74.
[5] Id. Ibid., p. 60.
[6] Id. Ibid., p. 55.
[7] Id. Ibid., p. 88.
[8] Id. Ibid., p. 91.
[9] Id. ibid, p. 48.
[10] Id. ibid, p. 56.
[11] CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p: 77.

Ensaio - Ronald Augusto

José Weis e o ideal de rejeição de Lenhador de samambaias


Num ensaio muito interessante dedicado ao poema dramático de Mallarmé L’après-midi d’un Fauno (1865-1876) e as sucessivas versões a que foi submetido desde sua primeira recusa para ser encenado, Décio Pignatari aventa a hipótese de que o poeta simbolista concebeu essa aventura criativa como uma “antiestocástica do poema”. Pignatari define assim o processo estocástico: “uma aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida, a partir dos dados de um código conhecido”. Outro exemplo fornecido pelo crítico seria o do progressivo ajuste de foco de uma imagem, o movimento de “um desfoque máximo para um foco otimizado.” (1)

Mallarmé respondeu a cada recusa ao poema (cuja recepção crítica censurava como peça obscura e ininteligível) dando-lhe um tratamento sempre mais e mais distante de uma configuração apropriada a um texto encenável. Por uma série de supressões sintáticas e lexicais o poema foi perdendo comunicabilidade dramática e ganhando em elipse e concentração ao nível da melopeia; em suma e, talvez, paradoxalmente, silêncios e lacunas expressivas foram introduzidos em sua linguagem. A cada revisão Mallarmé dava menos eloquência gesticulatória ao poema.

Se evoco a experiência de linguagem do grande simbolista é porque me parece que a escrita poética de José Weis guarda alguma relação com essa lição compositiva que só tem em vista o sucesso estético do poema, mesmo que para isso seja necessário enfrentar o seu fracasso referencial. Sei que José Weis não é um poeta de linhagem mallarmaica, pelo contrário, seu apetite discursivo (que bebe naturalmente da cachaça dos modernistas) é mais pela mundanidade do que pelo abismo da página estéril e branca. Seus poemas se situam numa “zona de interseção entre/ uma autocrítica e sua compaixão”. Para Mallarmé não importa tanto a autocrítica que, para ele, seria decorrência da própria linguagem e sua permanente condição de crise; o poema mallarmaico é crítico e sem compaixão e quem fala através dele não é o poeta, mas a linguagem ela mesma.

Quem fala nos poemas de José Weis? Ele mesmo, mas através de máscaras. Sua compaixão autocrítica passa por filtros irônicos de dicções aprendidas no contato sensível com a tradição, pois “Árdua é a vida de um Fauno/ sem a poesia de Mallarmé/ sem a música de Debussy/ e nem uma ninfa sequer...”. Mas a alusão a essas aparentes carências não vem à tona do verso de Weis sem a marca do fingimento, seus versos avançam em imagens e ritmos coloquiais que se fazem acompanhar da marcação de um ridendo, senha de uma contida metalinguagem a assinalar que suas palavras não devem ser levadas tão a sério.

Afastei-me um pouco do sentido inicial dessa resenha, qual seja, reconhecer no conjunto de poemas Lenhador de samambaias uma aplicada arte de recusas, o que, aliás, já está expresso no poema “Intuição”, o terceiro do livro, que diz: “No caso da recusa/ ser a própria musa/ todo bardo elege,/ com sábia devoção/ seu ideal de rejeição”. Esse traço do percurso poético de José Weis é admirável, isto é, sua escolha por não tornar mais adiposo o acervo imenso dos livros fáceis que se publicam a torto e a direito, porque resolveu concentrar seu esforço reduzindo os seus conjuntos de poemas ao que interessa. Esse escrúpulo de publicar a qualquer custo faz com que a poética de José Weis encontre também o domínio da ética; o esperado livro de José Weis não chegou tarde, não. Chegou íntegro, sem nódoa de barganha com a facilidade ou com o espalhafatoso, afinal, quando assediada, edulcorada e “Encurralada, a palavra escapa/ desaba a pretensão do poeta”.

Com efeito, junto com a admiração de muitos dos seus iguais por sua poesia, a raridade com que essa poesia mesma aparecia ao longo desses anos, talvez causasse, por outro lado, um secreto incômodo. Todos nós sabíamos da existência e da qualidade dessa poesia, entretanto, frente à sua correlata escassez – seu corajoso silêncio vizinho à esterilidade? – quem sabe quantas vezes não nos tenhamos feito a pergunta: mas por que diabos o Zezinho nos oferece tão pouca quantidade dela?

Vinte e cinco anos de estrada e agora José Weis publica Lenhador de samambaias, um livro magro, pouco mais que uma plaquete. Quase trinta anos se dando tanto em troca de tão pouco. O livro tem 68 páginas, incluídas as correspondentes à apresentação de Sidnei Schneider, ao sumário e à epígrafe extraída de Miguel de Cervantes (onde o ego scriptor de José Weis espera conquistar através do trabalho com a linguagem a graça de ser poeta que o céu não lhe quis outorgar). Parece até que o poeta publicou a contragosto ou, com generoso orgulho, se deixou publicar. Para uma estreia de um poeta cinquentenário o “sinal de menos” com que Lenhador de samambaias se honora – se o colocarmos em relação com o perdulário das publicações que o cercam – confirma para mim a imagem de que José Weis conquistou para si a alegria de nos oferecer um livro que vale por todos os dos seus pares mais ansiosos.

(1) CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980, p: 107.

Poesia - Ronald Augusto

Negativo de L’Origine du Monde, de Gustave Courbet.

o pornógrafo alusivo

cli-
vagens voraginosas
o olho-verga do fotógrafo

ver de vergasta contra vergonhas
involucradas consigo mesmas
(maestrinas masturbatórias)
mais saradas do que saradinhas (como
consta na carta de caminha)

pornografemas ronronar e gozo
e logo o malogro do gozo
senos tronchados (octavio
paz dixit)
contra-plongè
o ômega da boca
num delinear de felatio

racimos de velos
arabesco em velossístole de
medusa ruiva          mas
o inopinado pente que revem
é mais embaixo

dor cheia de dedos          ardil
priápicoapetitoso
tamborilar linguodental

carnação em pasta      polpa de nata
(o pescoço de alabastro de leda
enquanto zeus doloso
pescoço grosso de cisne-signo a empala)
bestialógico de musas pálidas
capitosas

(22.10.2010)

Ensaio - Ronald Augusto


Junco persegue metáforas e achados sem lograr poemas

Por transparência a capa do conjunto de poemas Junco (“junco” também é metonímia de embarcação, no mesmo sentido em que o são “lenho” e “madeiro”) funde e justapõe as imagens do cachorro e do tronco mortos; aquele em decomposição à margem da rodovia e este, fungível, à beira da praia. A tentativa, ou a determinação da decomposição sígnica por meio da autorreflexividade redundante, maníaca e insistente, quer do serialismo verbal visado no desenho sintático dos poemas, quer do colecionismo obsedante na sequência de fotografias que embalsamam e estetizam as carcaças animal e vegetal — graças ao registro cotidiano de suas ocorrências —, pode nos servir de ponto de apoio para a compreensão liminar do recente livro de Nuno Ramos.

Junco, à primeira vista, resta cindido entre o não-verbal e o verbal. “Cindido”, como assim? Se a media escolhida é o objeto livro, então não há (ou não deveria haver) hesitação com relação ao verbal. Essa situação, que não precisa ser necessariamente dilemática ou neutralizadora de consequências estéticas mais relevantes, pode ser que se relacione com a vocação ambidestra de Nuno Ramos: escritor e artista visual. Mas não é o que acontece. A datação dos poemas, a revelação em nota sobre os catorze anos de elaboração (com largas interrupções) do conjunto, a observação desinteressada sobre os muitos leitores conquistados em fase anterior à publicação da obra, enfim, essas informações adicionais tendem mais a incutir simpatia e afeto ao “processo de criação” do que nos solicitar uma atenção efetivamente crítica e isenta ao volume que, infelizmente, se abre agora à nossa leitura expondo algo de sua intimidade indecorosa.

Não obstante as objeções à possível impertinência do meu ponto de vista, não posso deixar de assinalar aqui (ou de pôr as coisas em relação, melhor dizendo) que as séries de fotos entremeadas aos blocos de poemas se mantêm mais firmes do que eles (os poemas, que, de resto, justificam a aparição do livro). Isto me faz supor um leve tremor, já que, nessa relação se esperaria do verbal algum protagonismo — mas, se enxergo as coisas mais ou menos bem, Nuno Ramos parece não se preocupar com tal hierarquização e nisso está correto. De qualquer sorte, a certa altura, cheguei mesmo a considerar os poemas como grandes legendas pretensiosas, arranjadas e diagramadas nas páginas para fazer falar, a contrapelo da escassez informacional contida nas imagens, aquilo de que elas não podem falar de modo nenhum.

No entanto, ao contrário do apetite discursivo, por exemplo, de um curador de arte que se mobiliza — sem prescindir de certa dose de razão — em explicações à intraduzibilidade constitutiva da obra de arte não-verbal, os poemas de Nuno Ramos, versões legíveis, mas não inteligíveis do não-verbal, não conseguem vencer a margem de intransitividade em que se consomem a si mesmos. A interrupção intransitiva, ou o fracasso semântico, não é corolário de uma determinação, é antes uma sorte de escolho que está a caminho de algo e que obsta a linha e a linguagem. Só nesse ponto acho consequente estabelecer relações entre o autor de Junco e João Cabral de Melo Neto e seu, por exemplo, Cão sem plumas (1949-50). Com efeito, os poemas do artista são exemplos dessa poesia intransitiva que Cabral põe em questão. Que as linguagens se aproximem em um cotejo disjuntivo e não por meio de negaceios lenientes levados a efeito visando limar a rispidez necessária que vem à tona quando textos são postos em relação.

Embora seja possível sondar alguns índices de contato e de contrastes entre os dois poetas, acho difícil, para o caso em tela, não lançar mão da conhecida advertência: “guardadas as devidas proporções...”. Flora Süssekind, por exemplo, pretende avizinhar a poesia de Ramos de certos estilemas cabralinos, mas para isso cunha uma metáfora que a bem da verdade interpõe entre ambos um intervalo quase que intransponível, já que, segundo a crítica, a linguagem de Junco faz um movimento “largamente expansivo” de assédio a Uma faca só lâmina (1955) — ou a Cão sem plumas —, conjunto evocado pela analista para proceder às correlações. Ora, esse aceno “largamente expansivo” de Nuno Ramos ao poeta João Cabral só cabe mesmo nesse advérbio e nesse qualificativo mercê do gesto mais comiserado do que generoso (na esperança de ser pertinaz) de Süssekind. A parábola de aproximação é tão ampla que, não raro, vemos Nuno Ramos sair da órbita do seu modelo. O objetivo de Flora Süssekind não deve ter sido operar uma despropositada subversão de um marco poético de nossa tradição, confrontando-o com um poeta em progresso. Invocar a referência meramente nominal, a saber, relógio, bala e lâmina, senhas sem peso (dispositivos-clichês próprios para a colagem) de que se servem os poemas dispersivos de Ramos, ou ainda, as carcaças de cachorros mortos, troncos-lenhos, despojos de árvores cuspidos e lixados pelas ondas na areia da praia; enfim, jogar estes fragmentos sobre a mesa a título de menção a um golpe de citações, me parece muito pouco e forçado, além de denunciar uma desmedida boa vontade da crítica para com os esforços poéticos do consagrado artista. O que teria tudo isso a ver com o rio-cão-sem-plumas, essa metáfora sinestésica cambiante — cujo ritmo prepara a narrativa-rio do livro O Rio (1953) publicado a seguir e onde Cabral, em parceria com o leitor, se propõe a compor “una prosa” —, essa estrutura verbal que já não é surrealismo, mas que ainda não chega à agudeza prolixa da lâmina mais pernambucana que matemática do poeta de Escola das facas?

Junco (os poemas de, e não as imagens) é ligeiro em sua pretensão vagamente litúrgica no arranjo da linguagem, samba do branco doido nostálgico do oráculo de Delfos, diz, assim, Nuno Ramos: “Perder é uma argila”; “Perder é o selo de uma carta...”; “Irmãos da matéria/ no curso de volta/ à confraria/ cinza/ de antigos corpos.”; “Ama, disse meu olho/ os dois íntimos contrários/ areia e mar”; “O chão é a grande pergunta...”; “Um lugar não é um ganido...”; “Um lugar não é uma ave...”; “Não há trigo/ mas sal, escamas...”; “O que de mim se ouve/ em voz e canto não é sopro...”. “Nunca houve/ vácuo, nunca um/ nada vago”. Na perspectiva de tramar os fios informacionais de um aos fios do outro, não se pode com isso glamourizar o contemporâneo, nem muito menos dessacralizar o clássico a qualquer custo. Podemos, sim, reconhecer que a fruição estética exerce seu poder e se projeta sobre as aparentes disjunções entre o atual e o antigo, e torna tal oposição se não irrelevante pelo menos secundária. O leitor hedônico extrairá, talvez, uma grande satisfação desse diálogo, pois o que justifica a leitura — as transas e os transes de um texto —, não é a sua antiguidade ou novidade, mas o prazer que ele pode proporcionar a quem tiver apetite para experimentá-lo na fatura de múltiplas relações.

Os poemas de Junco são a imitatio piorada de certas constantes da arte contemporânea que é de matriz metafórico-objetual, isto é, lida com possibilidades imaginativas e associativas livres no intuito de presentificar ou reificar uma imagem-pensamento em um particular espaço-evento onde objetos se relacionam e acabam por simplesmente materializar um símile mental na forma do trocadilho transitável. Por essa razão, a arte contemporânea se constitui como discurso cenográfico antes de tudo; cenografia performativa para uma justaposição de coisas e objetos: tautologias, coleções de nulidades resgatadas ao inferno biográfico do artista. A metaforização enquanto diluição perdulária, cacoete charmoso: “Longo e longo desenrolar de imagens, como se o poeta tentasse recriar a coisa dando-lhe mais e mais nomes, num processo mágico fetichizante” (Mario Faustino dixit). Nuno Ramos projeta a metáfora ornamental sobre a metáfora interpretativa. Exemplos: “cadáver de uma árvore boiando”; “Ruga/ de um urubu na espuma”; “nuvem de camurça”; “asas de areia quente”; “pentes de terra, livros de cedro”; “noites de giz”; “os alicates das mandíbulas”; “coração de pedra, coração de musgo”; “a cartilha do sopro”; “a cusparada/ da chuva”; “meu sopro é de areia/ meu rim é de areia”.

João Cabral de Melo Neto em seu Cão sem plumas faz, por seu turno, um jogo de plano e contraplano entre metáfora e anáfora. O poema, embora calcado ferreamente sobre a analógica da similitude, nos impõe a sua cadência, sua figura rítmica, mais pela reiteração da conjunção adverbial comparativa “como” do que pelo inesperado das comparações. O andamento anafórico dos versos traduz o sentido em cadência. Quando não o vislumbramos ouvimos o rio espesso: “imagem de cão ou mendigo”. Um excerto: “Aquele rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala./ Como um cão vivo/ dentro de um bolso./ Como um cão vivo/ debaixo dos lençóis,/ debaixo da camisa,/ da pele.”.

Caberia acomodar Junco na prateleira dos livros de “artista em férias”? Foi mais ou menos com uma blague análoga que Manuel Bandeira deprimiu a poesia de Oswald de Andrade. O poeta de Libertinagem, vestindo, por seu turno, a máscara do antropófago iconoclasta, se referiu aos poemas do companheiro modernista como produtos de “um romancista em férias”. Por favor, não pretendo, aqui, deprimir ninguém. Mas se a analogia vale para o renomado artista Nuno Ramos, podemos refinar a diatribe, porquanto a consecução desses poemas de “artista em férias” já incorpora uma rotina parcialmente reconhecida. Desde Cujo (1993) até Junco (2011), Ramos publicou mais quatro títulos. Talvez não seja adequado tratá-lo como um poeta bracejando comprimido no intervalo das férias do artista visual. Como se dizia, em um tempo não muito distante, Nuno Ramos se afigura um multi-instrumentista.

Por outro lado, sem pretender ser pessimista ou estraga-prazeres, se já é complicado, como uma vez argumentou o craque de futebol Ademir da Guia, “manter, em qualquer profissão, sempre o nível mais alto que se consegue alcançar” — e o jogador não livra nem Pelé, nem Picasso dessa lei —, que dirá o sujeito que se desdobra em duas ou mais expertises. Em algum momento, nesse processo de prestidigitação e de desequilíbrio dinâmico, a embarcação fará água. No caso de Junco, os poemas indicam a parcela murcha do compósito. O aspecto menos entusiasmante. Seus poemas: êmulos, carcaças sub-baudelairianas. E meu senso de injustiça me obriga a registrar, para efeito de comparação, o poema também anafórico “Boi morto” de Manuel Bandeira, poema “espantosamente boi”, que é presentificado por meio de uma música reiterativa, levada — quando enunciada — ao limite do fade out para o branco do silêncio e da página. Não é meu desejo, com essas anotações marginais, apresentar Nuno Ramos como um poeta ruim; não. Só intento com isso afirmar que ele está longe de ser um bom poeta. Melhor que Mariana Ianelli e Age de Carvalho, o rapaz é. Não é muito, mas de algum lugar se deve começar.

Não é novidade para ninguém que um poema, em sua construção, incorpora achados, efeitos fônicos, trocadilhos, diatribes de sentido e som, enfim, esses elementos que Roman Jakobson chama de “equações verbais”. Um poema pressupõe esses insumos ou escapes, mas não se esgota neles. Junco é um livro que congela, lista uma série desses recursos que, no entanto, não resultam em poema relevante. Nuno Ramos persegue metáforas e achados sem lograr poemas. Tem em mãos algumas dessas equações, mas não poemas.

Ensaio - Ronald Augusto

Charles Baudelaire, L’Amour du mensonge - acrylic on canvas
by Lu Xinjian
Poema em Foco

Nascimento da escrita; nascimento do poema. Pesquisa semântica a partir da rasura, a imprecisão da escrita de punho. Corolário: deriva semântica. Leitor de lápis em punho que rubrica à margem do texto. A transposição do fônico para o háptico. Imagem que se materializa pela palavra. Pontos átonos, fortes e fracos. Un coup de dedos. O texto artístico não deixa transparecer em sua economia genésica toda a gama de vacilações, de lituras, ou até mesmo, de escarificações envolvidas no desentranhamento do neográfico no interior das convenções do discurso literário. Dado por embalsamado — como escreve João Cabral de Melo Neto num poema —, isto é, quando acaba num livro, aquilo que era febril e fabril resta apagado de uma vez por todas, vira música calada. O projeto Poema em foco nos lança sobre a superfície da materialidade textual onde deparamos esse esforço heurístico e quase que físico do escritor no corpo a corpo com a linguagem, na tentativa de reencenar a pulsão tanto indicial quanto icônica do verbal; essa “estranha esgrima”, metáfora escolhida por Baudelaire para representar o artesanato, a oficina irritada e irritante do escritor tatuando a folha incólume: Je vais m’exercer seul à ma fatasque escrime. Plongée. O gesto fotográfico simula o industrioso e ocioso trabalho de escrita de cada autor no encalço do melhor efeito de fundo-forma. Rosácea de pontos de vista. Fotogramas em close reading na superfície abrasiva dos anagramas. As fotografias não mostram mãos escrevendo. Mostram mãos pensando.

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog