Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Tradição é Tradição

Anne Marie Margot realmente não se adaptara ao espírito daquela academia de ginástica: as conversas banais, as revistas fúteis que as pessoas liam enquanto se exercitavam, a mania das alunas se pesarem a todo instante, os olhares ensandecidos que os alunos lançavam enquanto ela fazia exercícios de glúteos, eram detalhes que não passavam desapercebidamente ante a sua visão crítica do ambiente… Só não se matriculara em outra academia porque aquela era a mais próxima da sua casa, e ela achava que o tipo de pessoas das outras academias deveria ser o mesmo…

A única pessoa que os diáfanos olhos de Anne Marie Margot admiravam, era um sujeito que sempre trajava uma camiseta de uma marca de artigos esportivos da década de setenta que já não existe mais… “Eu me lembro desta grife, onde será que ele arrumou esta camiseta???”… era o que ela pensava enquanto o observava lendo um tomo tão pesado como um halter… ambos faziam bicicleta ergométrica. – “Desculpe-me por interromper sua leitura, mas esta marca que você está usando já não existe há muito tempo… onde você conseguiu???”

- “Meu pai morava no interior, em São Luís do Paraitinga e uma vez ele vinha subindo a Taubaté-Ubatuba (*) em uma “Rural” e encontrou um caminhão capotado, sem os ocupantes, com um monte de camisetas sobre o asfalto, ele recolheu o material esportivo... que foi a única herança que ele me deixou…”

“E o que é que você está lendo???”

“Finnegans Wake, saiu agora em versão portuguesa, foi um cara do Rio Grande do Sul que fez a tradução, você sabia que só a França, Japão e o Brasil é que são os países que traduziram toda a obra de James Joyce???”

- “Há não diga… dele eu só li Dublinenses…” e assim começou uma conversa animada…

No dia seguinte, sábado, estavam os dois na Academia HIPERFITNESS, quando uma frequentadora pediu para mudar o canal da TV posicionada defronte as esteiras… “É que a Sheilinha, minha sobrinha vai aparecer cantando no programa do Raul Gil!!!” – disse a tal frequentadora.

Pela primeira vez naquela academia, a TV não mais sintonizou a MTV… Ambos faziam esteira… ela observava atentamente o programa e de repente ficou envergonhada ao imaginar que aquele intelectual por quem já estava apaixonada, percebesse seu interesse pelos shows dos calouros de auditório... mas percebeu que ele também acompanhava a TV e disse:

“Você gosta do Raul Gil ???”

- “Claro que gosto, inclusive quando eu era criança eu cantei no programa dele…”

- “Eu também acompanho desde criancinha… lembro inclusive, faz muito tempo, de um menino de sombreiro vermelho, em lágrimas, cantando “Galopeira”. (**)

- “Mas eu cantei “Galopeira”, e meu chapéu era vermelho… Então você lembra??? … Era eu!!!”

- “É claro que lembro, eu cresci na esperança de ver de novo aquele garoto… e agora o encontrei…”

Em pouquíssimo tempo estavam namorando, abandonaram a HIPERFITNESS e há cinco anos fundaram uma academia de ginástica, chamada OS ACADÊMICOS, um lugar onde se ouve a BBC de Londres executando música clássica (ao invés do rock bate estaca), onde a balança informa o peso da pessoa por categoria (mosca, pena, médio, médio ligeiro, meio-pesado, etc. ) ao invés de mostrar numéricamente os quilos... onde o frasco que é usado para borrifar alcoól nos colchonetes contém gin inglês (o que faz com que os alunos possam tomar um traguinho entre os exercícios e que os colchonetes fiquem sempre perfumados) e que a TV só exibe pérolas do cinema brasileiro (chanchadas da Atlântica , Cinema Marginal , etc.)… Contrariando as previsões dos famosos especialistas, o empreendimento foi um sucesso.

Pela primeira vez o aparelho de de televisão da prodigiosa academia não irá mais mostrar um obra de Carlos Manga ou de Rogério Sganzerla... é que sábado que vem, estará sintonizado no programa de Raul Gil, pois o filho de Anne Maria Margot participará do quadro de calouros mirins para executar (usando o mesmo sombreiro vermelho) aquela canção que seu pai cantara muitos anos antes…


(*) Rodovia Osvaldo Cruz ( SP-125 ).
(**) “Galopeira” (Maurício Cardoso Ocampo – versão: Pedro Bento).

Conto - José Miranda Filho

by Barcelos na Net
Encontro de Amigos - Parte 28

Robson Silvério, secretário particular do Doutor Jackson Stevenson era um nordestino amazonense, nascido em Barcelos, pequena cidade à margem do Rio Negro,de grande importância histórica, cultural e econômica do Estado. Quando menino, Robson costumava banhar-se nas águas escuras do Rio Negro, juntamente com os colegas do Colégio Rio Branco. Após as aulas, notadamente aquelas que terminavam mais cedo, eles, em grupo de nunca menos do que cinco colegas, iam banhar-se naquelas águas serenas e límpidas até o entardecer.

Robson, ainda aos dez anos de idade, órfão da mãe foi com o pai para o Rio de Janeiro, em conseqüência de um acidente rodoviário que seu pai sofrera. Caminhoneiro de profissão, seu pai, Raimundo Silvério era um homem corpulento, cheio de vida e bastante atento à educação do filho. Quando sua mãe morreu, ele prometeu que cuidaria do menino e o faria, com a graça de Deus, um grande homem. No Rio de Janeiro, após ter sofrido o acidente, seu Raimundo encontrou guarida na casa dos Stevenson, onde fora trabalhar de motorista para o Doutor Jackosn. Robson cresceu naquele ambiente singular e rígido, amparado pelo amor e pela dedicação. Estudou direito, sempre com a ajuda da família. Formou-se. Fez os primeiros estudos pós-graduados no Rio de Janeiro, no Colégio Rio Branco. Quando o Doutor Jackson era titular do escritório de advocacia Jackson e Simonsen, Advogados Associados, Robson trabalhava como empregado, encarregado da área trabalhista. Em 1959, após ser aprovado no concurso do Itamaraty e ser nomeado embaixador no Paraguai, Doutor Jackson o levou como secretário particular, em homenagem ao seu pai, mas principalmente pelo grau de cultura que Robson possuía. Era, realmente, um jovem culto e de grande conhecimento do Direito Trabalhista Internacional. Em Dublin, no tempo em que Doutor Jackson permaneceu como embaixador, era ele que cuidava de toda correspondência, bem como dos compromissos do embaixador.

Após a morte daquele que em vida fora seu segundo pai, Robson resolveu abrir um escritório de advocacia em São Paulo, onde atualmente presta serviços para as grandes empresas multinacionais no ramo tributário e direito civil internacional, além de consultorias para o mercosul.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Zapeando O Controle Remoto Em Uma Sexta-Feira De Carnaval

Segundo o dito popular, a mente feminina é composta de uma caixa na qual estão misturados vários assuntos: família, sexo, trabalho, novelas, manutenção da casa, vestuário, etc... enquanto que a mente masculina é um conjunto de compartimentos, um para o futebol, outro para a família, outro para o sexo, e assim por diante, inclusive um que é vazio... é neste que o cérebro masculino está sintonizado quando muda repentinamente (“zapeia”) o controle remoto da televisão...

Naquele sexta-feira de carnaval, Josias Germano estava zapeando em frente a seu aparelho de tevê enquanto sua fiel escudeira Marília Olávia, dormia sob a brisa de um silencioso ventilador numa escaldante noite tropical...

O nosso protagonista deparou-se com vários desfiles das escola de samba e enquanto mudava de canal ficou pensando que tais desfiles foram instituídos durante a ditadura do Estado Novo, inspirados em desfiles militares, como forma de introduzir um caráter militarizante no inconsciente coletivo do pobre povo de Pindorama... é claro que Josias Germano não era tolo a ponto de crer que o samba era fruto do Estado Novo, como alguns pseudo-historiadores querem nos fazer acreditar (*)...

Josias Germano bebia cerveja puro malte e comia frios sortidos... aprendera esta lição lendo Antônio Maria:

“No Carnaval prometi a mim mesmo que não sairia de casa. Fiz uma reserva de frios e cervejas (...) Na terça feira de manhã tive que refazer o estoque de cervejas na geladeira. Também os frios, que não se acabaram, mas empalideceram(**).

Então o nosso protagonista resolveu mudar de canal mais uma vez, não aguentava mais aquela coisa de carnaval, “antigamente fazia algum sentido, mas a coisa começou a ficar muito igual... muito globeleza... antes eu me interessava pelos desfiles do Salgueiro, da Portela, da Mangueira, do Vai-Vai... agora não tenho paciência... com a Copa do Mundo está acontecendo a mesma coisa... antigamente eu ficava esperando sair as tabelinhas da copa, fazia simulações, prognósticos... era uma alegria a Copa do Mundo... depois a coisa foi se pasteurizando, ganhando importância e chatice... agora está uma babaquice que não tem tamanho... até na cor dos uniformes resolverm intervir... imagine num Brasil X Itália, os canarinhos terão que jogar com o calção branco e os italianos com o calção azul, ou seja totalmente descaracterizados (***)...

Por uma incrível coincidência,. Quando ele mudou de canal apareceu um programa sobre a História de Todas as Copas, mais precisamente sobre a Copa de 1990, então ele instantâneamente mudou de canal “se fosse uma outra Copa eu até poderia assistir, mas esta jamais”... o Brasil sendo eliminado pela Argentina, a mediocridade de Lazaroni, a seleção da era Collor de Melo...

Porém na mudança de canal apareceu uma luta de UFC... “se fosse uma boa luta de boxe, eu assistiria com prazer... mas esta coisa não dá pra assistir.. é por isso que o boxe americano está decadente... por causa desta bobagem de UFC... os atuais campeões de pesos pesados (nas várias associações) são dois irmãos ucranianos... nas olimpíadas de Londres o boxe olímpico americano fez o maior palelão... tudo culpa desta onda de UFC”

Então passou por inúmeros programas: alienígenas do passado, caminhoneiros percorrendo geleiras canadenses, surfistas fazendo programa de culinária, etc.. até descobrir que numa tevê alternativa estava passando “Der Leone Have Sept Cabeças” que Glauber Rocha filmou no Congo em 1970...

Josias Germano então lembrou-se das teorias do filósofo Vilém Flussler, a respeito da pré-história, história e pós-história...a primeira era foi dominada pela imagem... a segunda pela escrita... a terceira (que se iniciou no final do século XIX com a invenção da fotografia) está sendo dominada pela imagem codificada por meios técnológicos (fotografia, cinema, internet), ou seja, não pelas puras imagens icônicas do passado, mas pelas imagens transcritas pos meios submetidos a ciência, porém sem o aparato lógico da linguagem escrita...

“Esta linguagem estará fadada a se desligar das amarras da racionalidade...não mais a linguagem lógica, mas a linguagem do inconsciente... a linguagem do futuro... feita somente de imagens puras, sem roteiros, diálogos, etc...”

O filme estava na metade, ele reviu até o final... então ele zapeou novamente... de novo uma imagem de carnaval... “Quem pula é cabrito!!!” pensou enquanto desligava a tevê...



(*) Esta história de samba ser fruto do Estado Novo getulista é uma enorme asneira... só como exemplo, confrontando a saga de Getúlio com a biografia do maior sambista de todos os tempos iremos ver que ”Com que Roupa?” de Noel Rosa foi composta em 1929, uma ano antes da Revolução de 30 e que o Sambista da Vila compôs suas 259 canções antes da instalação da ditadura getulista em 1937...

(**) A crônica da qual tirei esta citação foi escrita em 13/02/1964, precisamente a 50 anos antes deste mini-conto que foi escrito em 13/02/2014

(***) Pela nova regra da obtusa instituição, uma seleção não poderá jogar com peças da mesma cor da camisa do adversário... isto somado a recente determinação na alternância entre o claro e o escura de calções e meiões (já incorporada no futebol brasileiro), vai descaracterizar totalmente os jogos da competição.

Conto - José Miranda Filho

Paul Vogeler ~ Resurrection, 2011
Encontro de Amigos - Parte 27

Dublin, Irlanda, Outubro de 1984

Meu caro Fred.

Escrevo-te esta carta para dizer-te que estou bem de saúde junto com Josefina que tem sido uma companheira pertinente e te manda um beijo.

Neste momento, do quarto do apartamento ao lado do Parque Fênix, que tu tanto conheces e que juntos, diariamente, percorríamos seu vasto jardim, sinto-me triste e depressivo. Não por faltar-me qualquer bem material, mas o espiritual: o amor, o convívio dos amigos, e do Brasil.

Não sei quando estarei de volta. Esperarei melhor oportunidade para regressar. Sei que uns tantos amigos e companheiros já empreenderam a viagem de volta. A Lei da Anistia ainda é obscura para o meu caso. Uma coisa é ser refém de si próprio, outra é subjugar o poder de quem manda. Sinto-me ainda refém do medo, do passado e do futuro que me espera aí, que não sei como será. Apesar de viver razoavelmente bem aqui em Dublin, ter autorização de locomover-me para qualquer lugar do país, sinto-me um tanto prisioneiro de meus ideais, pois como sabes, não era isso que almejávamos e nem pretendíamos um dia acontecer. Tudo foi por acaso, veio de repente, sem critérios e quaisquer escrúpulos e sem qualquer motivo. Simples vaidade de um grupo de generais radicados na ideologia tacanha do formalismo imperial. Confio na justiça, na ordem e na luta corajosa do povo brasileiro para a restauração da lei e da democracia, que em breve libertará esta Pátria do jugo daqueles que a dominaram injusta e covardemente. O jugo lusitano de antanho já se expurgou definitivamente do seio da nossa Pátria. Não existem mais razões, por mais idealistas que sejam, capazes de impedir o avanço democrático do País.

Na solidão das noites que me parecem longas, ao lado de Josefina que me conforta e supera minhas ansiedades, sinto o burburinho dos transeuntes que passeiam pelos caminhos tortuosos do parque, ignorando totalmente o problema de milhares de pessoas que como eu, absorve-os e recolhe-os no intimo da alma. Eles não têm nada a ver com isso, não é verdade? Entretanto, amigo, a vida foi nos dada para ser vivida, não para lastimá-la. Se assim fosse, Deus não a nos teria dado. Fico feliz que estejas bem ao lado de Joelma e das crianças, se ainda posso assim chamá-las. Também me conforta o fato de saber que meus filhos Edward e Alex, continuam com suas atividades em plena ascensão, e estão bem de saúde e de finanças. Esperançoso de muito em breve dar-te o meu abraço pessoalmente, despeço-me, desejando a ti e aos teus os mais sinceros votos de estima e apreço.

Teu amigo de sempre e para sempre.

Jack.


Esta carta, dentre tantas outras correspondências encontradas na biblioteca do Doutor Jackson, foi endereçada ao amigo Frederico Moreira da Silva, ex-Ministro de Relações Exteriores do Brasil nos idos de 1969, enquanto aguardava melhor oportunidade de regressar ao Brasil, beneficiado pela Lei da Anistia. Alguns meses após ele desembarcava em São Paulo, junto com a esposa e seu fiel escudeiro, Robson Silvério, secretário particular e homem de sua estrita confiança.

Conto - Eduardo Miranda

Reading Woman ~ Pieter Janssens Elinga
Lia, a Leitora

Ela lia. Lia lia livros, revistas, gibis, panfletos, bulas… lia de tudo. E em suas leituras, todas muito concienciosas, filtrava bem os assuntos que lhe interessavam e retia… retia como ninguém o que lia, mas não lia nada em computadores. Tinha uma aversão herdade de seu pai por aparelhos televisivos. Por extensão, mantinha-se afastado de computadores também… pura convição!

Por ler tanto, naturalmente era uma estranha. Não que fosse estranha necessariamente, mas para os padrões dos outros seres humanos – sim, era um ser humano. Não se encaixava nos padrões dos outros da mesma espécie… e quando chacoteavam-lhe, descarregava a classificação biológica do ser humano da vida, numa abordagem sistemática-científica, dizendo que sim, era humana, pois pertencia ao domínio eukaryota, ao reino animalia, subreino eumetazoa, divisão chordata, subdivisão vertebrata, classe mammalia, subclasse theria, infraclasse eutheria, ordem primates, subordem haplorrhini, infraordem simiiformes, superfamília hominoidea, família hominidae, subfamília homininae, gênero homo, espécie homo sapiens, subespécie homo sapiens sapiens… enquanto os outros, reles seres, ao invés de tomarem o rumo da chordata, desviavam-se pela divisão anthropoda, conhecida pela mosca de fruta, ou antes ainda, tomavam o rumo do reino plantae e se enveredavam pela divisão da magnoliophyta, a das ervilhas!

Momentos assim eram extremos, é verdade, e raramente aconteciam. Seu dia-a-dia era tranquilo, sem muito contato humano – a não ser no trabalho. Bibliotecária, perguntavam-lhe sobre livros, Lia respondia sobre livros. Outras perguntas, tais como “ Olá, como vai?”, “Você já almoçou?”, ou “Como foi o seu final de semana?”, com o tempo deixaram de ser indagadas pelos colegas e usuários da biblioteca, pois logo perceberam que, entre gaguejos e olhares dissimulados, Lia não conseguia responder sem se constranger até os dentes!

Lia ia para o trabalho à pé. Mesmo caminhando, Lia lia. Tropeçava eventualmente aqui ou ali, mas via de regra conhecia bem as cinco quadras que separavam seu quarto alugado e a biblioteca. Quando almoçava, Lia almoçava lendo. Sempre ia ao banheiro com um livro, e quando não estava atendendo alguém, lia.

Certo dia, pega de surpresa pelo final de um livro enquanto caminhava, desesperou-se em não ter o que ler e parou na banca de jornal. Comprou o jornal do dia, onde entre tantas baboseiras, na seção de tecnologia anunciavam o fim do livro impresso. A reportagem preconizava que estávamos a um passo do livro eletrônico perfeito! Entre vários modelos – uns com telas de LCD, outros com tintas eletrônicas que não emitem luz, outros ainda que simulavam as viradas de páginas como nos livros de verdade – o artigo dizia que seria uma questão de meses para que o livro finalmente morresse!

Lia, que na sua curiosidade e amor pelos livros já os experimentara em todas as suas formas e fases: as pinturas rupestres, o codex, os manuscritos dos monges copistas, os primeiros registros em papel, as primeiras cópias impressa por Gutenberg... mas agora teria que sucumbir à tecnologia digital?!? Não! Nada poderia lhe impressionar mais!

Lia que lia, matou-se.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração do autor
O Almoço e Suas Considerações

Josias Germano resolveu almoçar no centro de São Paulo, uma vez que pela tarde tinha uma reunião na R. Barão de Itapetininga... como estava um calor insuportável, ele optou por comer salada e sushi em um restaurante na R. Direita... geralmente o nosso protagonista não gostava de culinária japonesa em restaurante por quilo, mas naquele local a comida era bastante honesta, embora não fosse genial...

Josias Germano se dirigiu à R. Direita, no quarteirão entre o Largo do Patriarca e a R. Quintino Bocaiúva e não encontrou o restaurante... achou então que a casa ficasse na R. da Quitanda, mas também não era lá... então voltou à R. Direita e rememorando mais profundamente a arquitetura do restaurante descobriu que ele tinha se transformado em uma loja de sandálias... conversando com a atendente descobriu que tal comércio havia sido inaugurado há apenas uma semana...

O jeito foi ir ao velho e tradicional Restaurante Itamaraty, na R. José Bonifácio defronte ao Largo de São Francisco... ao entrar o capitão (*) abriu a porta para ele, que se lembrou que seu avô ia lá diariamente, e então ficou fazendo contas para tentar adivinhar se aquele funcionário havia algum dia aberto a porta para seu avô...

Sentou-se na mesma mesa, chamou o garçon pelo nome e escolheu primeiro a tradicional empadinha, depois um rosbife com salada de batatas, para beber água com gás...

No intervalo entre a empada (tão tradicional que só tem de azeitona) e o prato principal, Josias Germano então pensou em outros restaurantes que fecharam no centro, bem mais tradicionais que o referido quilinho-japonês... se lembrou da leiteria Americana onde sua tia-avó Quepitas o levara para comer sundays & banana-splits em meados da década de setenta… leiteria que também servia cerveja, como naquela memorável noite em meados da década de noventa, em que foram comemorar a abertura da exposição de arte que o nosso protagonista realizou com Sávio Cacciaccinni, Sancho Ruiz Maldini, Alfeu Doaragna, Juliana Dilgorzi e Miraldo Xavier, naquela passagem após o viaduto do Chá sob a R. Xavier de Toledo (que hoje se encontra fechada)... naquela noite o famoso artista Maurício Nogueira Lima foi na “avernissagem” (*) e depois rumou com eles para tomar umas cervejas na Leiteria Americana...

Josias Germano acredita que a presença daquele ilustre pintor em sua “avernissagem” é um dos troféus que irão aparecer em sua biografia (se esta for um dia escrita, é claro)...

O nosso protagonista se lembrou então nos painel de Nogueira Lima no Largo de São Bento e nas pinturas do artista amigo nas escadas da Estação São Bento do Metrô... pensou então no painel de Tomie Othake na R. Xavier de Toledo e voltou a suas recordações aos restaurantes que já não existem mais...

Lembrou do Lírico que ficava na R, Líbero Badaró, do Carlino que começou na R. São João, mas que depois foi para a R. Vieira de Carvalho... pensou no Gigetto que começou na R. Nestor Pestana, mas que Josias conhecera na R. Avanhandava, e por sinal já não funcionava mais lá (dizem que vai reabrir)...

Ele então pensou em locais em que nunca estivera, mas que sempre sonhou conhecer... lugares que ele iria se existisse a máquina do tempo... lugares como a Cervejaria Franciscano na R. Líbero Badaró onde Mário de Andrade tomava seus chopps, o Salada Paulista na R. Ipiranga, no Jequiti-bar na R. 24 de Maio, na Salsicharia Dois Porquinhos na Av. São João, no bar do Hotel Esplanada na Praça Ramos da Azevedo, na Choperia Heidelberg (que teve que mudar de nome para Choperia Harmonia) na R. Xavier de Toledo, no Nick Bar (***) na R. Major Diogo (vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia)...

Ficou imaginando que com a invenção da máquina do tempo, a indústria do turismo iria abocanhar este filão de mercado: “Ouça Dick Farney tocando no Bar Simpatia na R. Xavier de Toledo no final da década de 40”, “Conheça os bares da Vila Isabel que Noel Rosa freqüentava” seria o anúncio de uma agência de turismo no tempo... então ele imaginou Noel Rosa horrorizado com o enorme fluxo de pessoas com roupas estranhas que começaram a aparecer nos botecos que ele tanto gostava e então o sambista da Vila iria comentar com seus parceiros de samba:

“- Este pessoal que começou a aparecer é muito estranho... vamos fugir para os bares do Estácio...”

Josias Germano abençoou então a (ainda) inexistência da máquina do tempo “ - Imagine a muvuca que seria a Semana de Arte Moderna com hordas de intelectuais oriundos das décadas futuras aborrecendo os modernistas.”

No caminho entre o Largo de São Francisco e a R. Barão de Itapetininga ele se lembrou de uma matéria que lera sobre o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no qual este afirmara que a partir de 1500 D.C. acabara o mundo para os índios de Pindorama... mas que apesar disto, muitos séculos depois ainda sobraram algumas aldeias indígenas... e que com a classe burguesa está acontecendo o mesmo... que seu mundo está acabando... que durante muito tempo ainda existirão bons restaurantes e lugares bonitos, mas que seriam lugares totalmente isolados, sem qualquer vínculo com o entorno degradado pela histeria consumista....

O nosso protagonista pensou, pensou e pensou... tudo isto em uma fração de segundos... e concluiu que pessoas como ele já não tinham lugar nesta cidade infestada de crakeiros, nóinhas, emboabas, moderninhos, mauricinhos e patricinhas... que lugares como o Itamaraty irão permanecer por muitos anos, mas serão com as atuais aldeias indígenas... algo totalmente alheio e anacrônico... e então começou a comer o rosbife...

Após o almoço, chegando na esquina da Praça do Patriarca com a R. Líbero Badaró virou à esquerda em direção a um sebo que fica no meio do quarteirão... e lá comprou um livro editado em 1935 pela Companhia Editora Nacional: “O Selvagem: Curso de língua Tupi viva ou Nheengatú” - Bibliotheca Pedagógica Brasileira – Série V “Brasiliana” Vol . LII – escrito pelo Gen. José Vieira Couto de Magalhães.

Então rumou para a R. Barão de Itapetininga, onde outrora funcionaram a Confeitaria Vienense e a Confeitaria Seleta...



(*) Capitão é o nome que damos àquele porteiros com quepe e jaqueta (podem usar luvas brancas também) que abrem as portas para a gente nos restaurantes e hotéis...

(**) O termo “avernissagem” foi criado pelo músico e filósofo Sidney Molina, que é um neologismo com as palavras vernissage e aterrisagem.

(***) O nome Nick Bar vem da tradução da peça “The Time of Our Life” de William Saroyam quem em terras pindorâmicas passou a se chamar “Nick Bar... Álcool, Brinquedos e Ambições” e foi encenada em 1949 no TBC.... posteriormente Garoto e José Vasconcelos iriam compor “Nick Bar”, sucesso na voz e piano de Dick Farney.

Conto - José Miranda Filho

Fitinhas do Senhor do Bonfim
Encontro de Amigos - Parte 26

Esticado na cama, após ter ingerido duas caipirinhas e alguns copos de chope, João Pinto imaginava-se chegando em Salvador, precisamente em Carrapichel, sua terra natal, para a realização do sonho que tanto desejara, casar–se com Marinalda, a mesma que tinha a cicatriz no rosto e que todos os seus amigos o induziam a chamá-la de Onça, o que ele sempre fazia para não desapontá-los, mas, não gostava. Finalmente, na manhã do dia 23 de agosto de 1975 ele embarcou no ônibus da empresa Senhor do Bonfim ao encontro de sua amada. Não queria saber se ela tinha ou não qualquer cicatriz, não queria saber se ela era ou não onça, se era ou não bonita, mas apenas queria saber que ela havia conquistado seu coração, havia transformado a sua vida, havia indicado o caminho que deveria seguir, já que ele nunca acreditou em nada. Era ateu. Nunca acreditou em Deus, até que um dia ela persuadiu-lhe a acompanhar à Igreja de Cristo Redentor, para uma noite de orações.

A principio foi difícil sua participação aos sábados à noite, já que era tido como um boêmio e esses dias eram consagrados aos amigos, à balada e à farra. Nada como um grande amor para mudar a vida e os costumes das pessoas! Nada como estar apaixonado para sentir-se curado dos preconceitos insidiosos que o amor condena. E assim foi João Pinto, depois de meses participando dos cultos da Igreja de Cristo Redentor. Tornou-se evangélico. Parou de beber. Partiu! Despediu-se dos amigos e foi em busca do verdadeiro amor.

Viveu a vida.....

Amou o seu amor e por ela foi amado, enquanto pôde e viveu. O passado jamais lhe interessou, apenas servia de exemplo quando desejava realizar alguma coisa e sentia dificuldade na execução. Aí ficava horas e horas matutando, pensando no que fazer, como fazer... fora disso, jamais invocou o passado, pois sempre soube que o presente é o melhor momento para se viver, enquanto o futuro a Deus pertence. Só ele tem o direito de saber e nos orientar. E, assim foi em busca do seu amor...

Anos mais tarde soubemos que havia sofrido um problema vascular e pelo qual ficara inválido, vindo a falecer meses depois. Deixou viúva Dona Marinalda, e um filho.

Conto - Eduardo Miranda

 Edvard Munch, The Death Bed, 1895
Tantos anos na profissão e eu ainda me apanhava de surpresa, emocionado com certos casos. Esse rapaz, por exemplo, vítima de um AVC. Novo ainda, em coma induzido já há sete dias, todo entubado… não sei o que havia nele que me despertava uma tristeza imensa. Talvez por aparentar mais ou menos a minha idade, ou por se parecer com alguém que eu conhecia, embora não me lembrasse quem.

Todos os dias o hospital recebia gente à beira da morte. Fazia parte da rotina. Médicos, enfermeiros e até mesmo as recepcionistas, acabavam se acostumando a gente ensanguentada, corpos dilacerados, pessoas beirando a tênue fronteira entre a vida e a morte, mas acho que particularmente nós, enfermeiros, éramos os que mais nos expunhamos, e consequentemente, os primeiros a sentir o que costumo chamar de “processo de desumanização”, que é uma incapacidade involuntária de sentir compaixão ou solariedade, e o paciente passa a não ser mais do que um mero produto do trabalho. Por favor, não me entandam mal! Ainda somos todos profissionais de saúde, comprometidos em salvar vidas… mas depois de um tempo deixamos de sentir, só isso.

Mas com este rapaz era diferente… por mais que me esforçasse não conseguia me lembrar da sua entrada, não me lembrava de fazer-lhe curativos ou de ministrar-lhe medicamentos… nada. Sentia apenas uma forte presença, uma força, ele agarrando-se a toda e cada esperança que lhe restava… mas não entendia o por que desse apego.

* * *

Já perdi a noção de quanto tempo estou sentado a seu lado, mas tenho a impressão de sempre ter estado aqui. Vejo pessoas chegando e saindo, muita gente, e todos me são familiares, de alguma maneira.

De repente senti seu corpo cair-se, deixar-se, naquela cama em que deitado já estava. Foi como uma renúncia, uma desistência, uma entrega... E foi neste exato momento que também senti todo seu cansaço, seu desânimo... toda aquela entrega, aquela desistência, aquela renúncia, tudo estava em mim! Só então fui capaz de entender todo aquele apego...

Levantei-me da cadeira e me afastei, devagar, do corpo inerte e rodeado de parentes e amigos. Se pudesse pedir algo antes de partir, seria a oportunidade de dizer alguma coisa, poucas palavras, para conforto de todos. Como não foi possível, espero que o discreto sorriso que deixei em meus lábios dê o recado.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustrações do autor


Procurando Um Livro

Josias Germano abriu aquela gaveta esperando encontrar o seu velho exemplar de “Com Vocês Antônio Maria” uma coletânea de crônicas do famoso compositor e jornalista pernambucano editada em 1994 pela Editora Paz e Terra... o motivo da busca era encontrar uma citação sobre a poesia de uma mulher dormindo, a beleza daquele corpo descansando em uma posição aconchegante...

Em vez de encontrar o tão esperado livro, ele achou seu velho álbum de fotografias das viagens que executara na década de noventa: sempre só, percorria de trem e de mochila as mais diversas cidades européias... se lembrou quando para economizar dormira em um depósito de toalhas no Hostal Vetusta em Madrid, se lembrou que quando chegou nesta cidade (a primeira que visitou no velho continente) passou três dias a base de gin, cerveja e porções de polvo, o que lhe rendeu uma tremenda infecção intestinal, lembrou-se da vernissage da exposição de Hélio Oiticica na Fundação Tapiás, em Barcelona, onde viu o cineasta Júlio Bressane deslocado, porém não teve coragem de ir lá conversar com ele (fato que se arrepende até hoje), se lembrou também da viagem de navio entre Le Havre (França) e Rosslare (Irlanda) quando para não ter que pagar cem doletas pela cabine individual, dormiu no chão da embarcação após encharcar-se de cerveja guinness e uísque irlandês, se lembrou de quando quase apanhou de quatro hooligans em Amsterdã (*), lembrou-se da emoção ao ver as obras de Agustin Lesage no Museu de Arte Brut em Lausanne no dia de seu aniversário, da seção de gravuras na British Library, em Londres, quando segurou em mãos obras de William Blake e Louis Wain, se lembrou das enormes colagens de Matisse no museu George Pompidou... vendo aquele álbum se lembrou também que só gostava de ser fotografado em movimento, por isso pedia para as pessoas tirassem fotos dele sempre andando... ele enquadrava a fotografia, passava a máquina para as mãos das pessoas que se dispunham a ajudá-lo e pedia: “quando eu estiver naquele ponto dispare a foto!”... achava que isto daria uma dinâmica das suas fotos de viagem... ele sempre caminhando....


Depois pensou que aquela época de errâncias amorosas foi marcada pelas viagens solitárias, das quais os ícones eram as fotos caminhando solitário... eram viagens na base de “manhãs e tardes em museus e noites e mais noites em bares”... pensou que muito mais tarde descobriu aquela lição óbvia que afirma que as pessoas sempre buscam fora algo que na verdade está junto a elas... então pensou nas viagens atuais com sua cara metade Marília Olávia: hotéis cheirosos ao invés dos muquifos azedos em que se hospedara, carros alugados ao invés de trens sacolejantes, vinhos e pratos elaborados ao invés de destilados, cerveja e de vez em quando alguma comida, e muito mais importante que isso: alguém com que possamos conversar, reparar juntos nos mais diversos tipos humanos, dividir impressões sobre uma paisagem, comentar o sabor de um prato, tentar adivinhar seus ingredientes, trocar impressões a respeito de alguma obra de arte, ...

Josias Germano largou o álbum e caminhou até o seu quarto... então observou sua esposa enrodilhada em um cobertor respirando suavemente...

Então finalmente ele se lembrou da frase de Antônio Maria:

“Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da mulher que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor, no ar do quarto.”




(*) Josias Germano tomava uma cerveja em um bar em Amsterdã quando quatro hooligans sentaram ao seu redor puxando conversa de forma nada amistosa.... ele para cortar o assunto disse:
- I don't Speak english.
- Where do you come from?
- I come from to Brazil.
- Show me your passport - responderam eles.
- I don't need show my passport because my country have four Worlds Cups (este diálogo ocorreu logo após a Copa dos Estados Unidos em 1994).
Os quatro hooligans, que se diziam belgas, ficaram em silêncio, depois bateram palmas pausadamente... o nosso protagonista achou que já era a hora de ir embora, mas antes precisava terminar sua cerveja... também pegava mal sair correndo, então segurou o copo com uma mão e a garrafa com a outra e não largou até esvaziar a garrafa... sua intenção era estar com estes objetos a mão para atirá-los na cara do primeiro hooligan que viesse para cima dele... ele sabia que poderia ser espancado e que se isso ocorresse era melhor que o rosto do primeiro agressor ficasse sériamente desfigurado... os quatro mastodontes perceberam sua estratégia e gritaram para que ele soltasse o copo e a garrafa... Josias Germano olhou no fundo dos olhos do líder e reparou nos seus dentes quebrados e imundos enquanto este vociferava com a saliva escorrendo pelos cantos da boca... porém continuou segurando o copo e a garrafa até terminá-la com toda a calma do mundo... depois levantou-se e disse em bom português:

- Tchau bando de otários!!!

Conto - José Miranda Filho

Pintura a óleo / madeira compensada, 1959 ~ Portinari

Encontro de Amigos - Parte 25

São Caetano do Sul, 18 de setembro de 1974. Chovia muito naquele sábado de primavera. O dia amanhecera triste e molenga. Toninho, como normalmente fazia aos sábados pela manhã, dirigiu-se ao armazém do seu amigo Jacó para conversar sobre política e futebol, notadamente sobre o PMDB partido do qual era filiado e do Corinthians, time de futebol do qual os dois eram fiéis torcedores. Tomar uma caipirinha, ou então pegar uma carona no Mercury do Jacó e dirigir-se ao Clube Aramaçan, em São Bernardo do Campo, também era costume aos sábados. Assim que chegou Dona Izabel, mãe de Jacó, foi logo lhe dizendo:

- Dona Rosita faleceu. O Jacó foi pra lá. Nem esperou que ele a cumprimentasse e desse-lhe o beijo no rosto, gesto que ela sempre exigia dos amigos do filho.

- O que aconteceu? Perguntou Toninho.

- Não sabemos ainda. Ela amanheceu morta, disse Dona Izabel.

- Então eu vou pra lá. Se o João Pinto aparecer por aqui, a senhora, por favor, avise a ele que estamos no hospital. E, incontinente, Toninho rumou para o hospital onde o corpo estava sendo velado. Chegou lá todo molhado porque havia esquecido o guarda-chuva em casa.

O corpo ainda não estava lavado, a funerária atrasara-se por uns minutos devido à falta de água no hospital. Não tinha como dar banho no cadáver. Esperou alguns instantes do lado de fora junto com outros amigos, inclusive Jacó, que o convidou para tomar um café.

- Você sabe o que aconteceu? Perguntou Toninho.

- Até o momento o que eu sei é que ela ontem à noite não havia passado bem e a levaram para o hospital, e lá ficou, coitada. O laudo médico indica insuficiência respiratória.

- Mas ela nunca se queixou de nada, disse Toninho.

- É... mas nem sempre a gente morre do que sente, replicou Jacó, virando-se para o outro lado e apontando em direção à rua para alguém que vinha chegando.

- É o João Pinto, disse Toninho. Chama ele pra cá.

João Pinto aproximou-se do grupo, cumprimentou um a um apertando-lhes as mãos e foi postar-se ao lado de Jacó, que neste momento já se achava do lado de fora. João Pinto não tomou café. Não lhe ofereceram e nem ele pediu. Voltaram todos ao velório, onde sob a mesa lapidar jazia o corpo inerte.

O féretro foi acompanhado por parentes e amigos até o campo santo. À frente do féretro, carregando o esquife, estavam Toninho, eu, Jacó e João Pinto, amigos da família. E também, Josué, Miguel, Valdemar e Carlos, filhos da extinta.

À noite, após a realização das exéquias, dirigimo-nos a um barzinho na esquina da Rua João Pessoa com Santa Catarina para tomar um chope e descarregar as tensões do dia. Enquanto bebericavamos um gole de cerveja, discutíamos o motivo que havia levado Dona Rosita à morte, já que no dia anterior, sexta-feira, havíamos todos almoçados em sua casa, coisa que fazíamos sempre todas as semanas, cuja refeição ela mesma preparava e sentia-se feliz em nos servir.

Para nós foi uma grande perda! Não sabíamos que rumo tomar de agora em diante, já que Dona Rosita era por todos considerada a mãe ausente, a nossa mãe de São Paulo. Foi difícil esquecer sua imagem e seu amor. Ela estará sempre presente em nossa memória.

Conto - Eduardo Miranda


Jeremia Não Escrevia

Jeremia não escrevia. Jeremia pouco lia e nada escrevia. Isso durante onze meses e 3 semanas do ano. Sabe-se lá o que acontecia com Jeremia que em épocas natalinas, mais precisamente na semana que antecedia o natal, se dava a escrever, compulsivamente! Embora possa parecer bom, para Jeremia era um tormento! Jeremia escrevia para por para fora... por para fora todo aquele sentimento que, de repente, brotava em seu peito, e que ele chamava de sentimento anti-natalino, que era o oposto do espírito de natal.

Quando criança, Jeremia perguntara ao pai porque não se chamava Jeremias, e o pai respondeu “Pruque tu é um só”.

Assim era o natal de Jeremia: onde as pessoas sentiam amor, Jeremia sentia ódio, onde as pessoas sentiam compaixão, Jeremia sentia desdém, onde as pessoas sentiam solidariedade, Jeremia sentia indiferença. Mas quem conhecia Jeremia sabia que ele era uma pessoa boa. Por onze mêses e três semanas do ano, Jeremia era um exemplo de amigo, colega, vizinho. Mas quando chegava aquela semana, Jeremia se transformava... ficava desesperançado, amargo, frio, indiferente, e enquanto as pessoas se confraternizavam, Jeremia se isolava. Se isolava e escrevia Jeremia. Compulsivamente.

De pequeno Jeremia não entendia muito das coisas. Um dia perguntou para mãe se o seu Manuel da padaria havia lhe batido. A mãe estranhou e disse que não, por quê? Jeremia disse que depois que seu Manuel chegou e entrou no quarto com mãe, mãe não parou de gritar. Naquele dia Jeremia aprendeu que voltar da escola mais cedo com dor de barriga significava uma surra.

Escrevia Jeremia, Jeremia escrevia. Toda aquela amargura, tristeza, desesperança... tudo ia na escrita de Jeremia, que não via a hora disso tudo acabar. Jeremia escrevia sobre a ganância das pessoas e sua conduta moral, sobre seu caráter, sua falsidade...
(...)
Mas se são de solidariedade os tempos, de compaixão e amor ao próximo, por que não realmente pregamos esses sentimentos? Por que ainda viramos as costas para um pedinte, para depois sentirmos pena? Se não adianta dar esmolas, esmolar também não vai fazê-lo nem mais nem menos miserável, ele provavelmente sabe disso, na própria pele! Mas aquele trocado pode salvar-lhe o dia – seja para um prato de comida, seja para um trago de pinga. Quem aí vai julgar?!? O que incomoda mesmo é a presença... ah, se pudéssemos simplesmente eliminá-los! Sim, a eliminação é possível, mas não como faz a polícia de certos Estados, e sim de maneira humana! E sua arma, camarada, é a consciência – igualmente toda a força e toda a fraqueza do homem. Por isso, enquanto estiver se empaturrando de perú e cerveja, não precisa pensar que tem gente remexendo o lixo e morrendo de fome, não... seria muita hipocrisia, e de hipocrisia a humanidade já está cheia. Quando estiver enchendo o rabo de perú, desejando saúde, paz, prosperidade e harmonia para os seus amados amigos e familiares, não precisa nem se esforçar muito... apenas sinta, de verdade, e carregue esses sentimentos ano afora – eu sei, é difícil, mas garanto que vai lhe doer menos...
Nos textos, Jeremia, que nunca escrevia, punha para fora essas coisas, coisas de pai, mãe e família, que não lembrava direito, pois depois que o pai havia se matado, Jeremia muito jovem, passara o resto da infância e adolescência de orfanato em orfanato... vários. Dos irmãos Jeremia não sabia – só sabia que cada um teve um destino diferente.

Geralmente Jeremia queria ver o natal passar rápido, rasteiro, mas ultimamente a coisa vinha mudando, ano após ano! Jeremia percebia que quando escrevia, punha para fora sentimentos alheios aos outros, mas também percebia que, fora da época natalina, quando não escrevia, sentia sentimentos igualmente não compartilhados... E quando concientizou-se de que isso era mais penoso do que escrever, Jeremia deixou de querer que o natal não chegasse, para desejar que o natal não acabasse. Se ele pudesse, escreveria sem parar, numa espécie de manifesto sobre essa hipocrisia toda que alimenta as pessoas, e o próprio ciclo da vida.

Estranha figura era Jonatã, o pai de Jeremia. Não chorava, não sorria. De nada reclamava, e por ninguém sentia. Diziam que ficara assim por causa de Eleonora, mulher infiel. Não teve coragem de largá-la por causa dos filhos Jacira, Jeremia, Jildete, Joel, Juvenal e Agripina. Talvez não tanto por causa de Agripina, filha bastarda, que mais bastarda ficou quando a mãe morreu dando a luz a ela. Culpa Agripina não tinha, mas na cabeça de Jonatã, a filha bastarda era sua única desculpa.

Embora Jeremia não tenha conseguido conspirar com o universo e fazer com que o natal não acabasse, conseguiu um trato melhor: manter aquela amargura, aquele desprezo, aquele ceticismo, pelo resto do ano dentro dele, e agora só escrevia Jeremia... enlouquecido, Jeremia não comia, não bebia, não falava, não dormia... Ficou conhecido como o louco que escrevia.

Quisera Jeremia que o que escrevia mudasse o que toda gente sentia, mas Jeremia sabia que não passava de utopia, e assim escrevia Jeremia, escrevia, e apenas escrevia...

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Que Samba Bom

Naquela noite de quinta-feira, Josias Germano, cansado de tanto trabalho estacionou seu carro na rua Sampaio Viana e foi a pé buscar sua cara-metade Marília Olávia no hospital onde ela trabalha... o plano era ir para um destes bares sofisticadinhos para fazer um mais que merecido répisauer com cerveja indian pale ale e bruscheta de aliche... porém ao passar na esquina da referida via com a rua Cubatão o nosso protagonista ouviu algo que não acreditou estar ouvindo... era simplesmente o samba “Que Samba Bom” (Arnaldo Passos/Geraldo Pereira) que estava sendo cantado por um grupo de samba em um botecão na esquina em questão... como estava um pouco adiantado ele resolveu entrar e tomar uma cachaça enquanto dava a hora de sua esposa sair da labuta... não costumava tomar cachaça... só tomava pinga antes de comer feijoada ou virado à paulista, no mais das vezes preferia um bom vinho, uma cerveja especial ou os famosos coquetéis clássicos (dry-martini, manhatan, negroni, mint julep, etc.) mas desta vez resolveu tomar uma boa cachaça de alambique...

A arquitetura do bar era como a de qualquer boteco: piso de lajotas cerâmicas, parede forrada de azulejos, mesas de fórmica, geladeira de marca de cerveja, televisão ligada (sem som, é claro), painel com fotos das porções e dos pratos principais, etc... O nosso protagonista notou algo estranho no grupo que tocava este samba clássico... rapidamente descobriu o que era: era um conjunto de cegos... reparou então que diferentemente da música estadunidense com sua tradição de bluesmen cegos (*), na música de Pindorama não existem sambistas cegos famosos...

Após um plantão de doze horas, Marília Olávia adorou na sugestão de irem no botecão ouvir aquele conjunto tão peculiar... Ao chegar instalaram-se em uma mesa perto da roda de samba... os músicos estavam no intervalo e comiam sanduíches e bebiam cerveja em um mesa próxima num clima de plena descontração... os nossos protagonista então pediram cerveja em balde com gelo e carne seca com mandioca...

Quando os sambistas retornaram uma sucessão de sambas clássicos: “Não Tenho Lágrimas” (Max Bulhões e Mílton de Oliveira, sucesso no carnaval de 38), “Leva Meu Samba” (Ataulfo Alves), “Argumento” (Paulinho da Viola), “Com Que Roupa” (Noel Rosa) “Iracema” (Adoniran Barbosa) “Mora na Filosofia” (Arnaldo Passos/Monsueto), “Escurinha” (Arnaldo Passos/Geraldo Pereira) , “Silêncio No Bexiga” (Geraldo Filme), “Poeta de Rua” (Gilson de Souza), “Aos Pés da Santa Cruz” (Lauro Maia), “O Bonde São Januário” (Wilson Batista/Ataulfo Alves), etc...

Em meio àqueles sambas clássicos Josias Germano imaginou que o nome certo para aquele grupo seria “Os Jorges Luíses Borges do Samba”... depois reparou na alegria dos sambistas, especialmente do baterista (**) que parecia estar em transe... então pensou em si mesmo e se envergonhou... no mês passado esteve em Sevilha e após um surto filosófico, resolveu que não iria mais se dedicar ao desenho e a pintura, sua grande paixão... agora vendo aqueles cegos executarem com maestria as canções clássicas do samba percebeu como sua resolução era um tanto quanto ridícula... ele pleno dos cinco sentidos deveria sim lutar, lutar & lutar para que sua arte prevalecesse em meio a mediocridade generalizada... então retirou do bolso sua lapiseira 2,5 mm - grafite 6B e começou a desenhar o grupo de sambistas na toalha de papel....


(*) Blind Lemon Jefferson, Blind Willie Mc Tell, Blind Mississippi Morris, Sonny Terry, Ray Charles, Cortelia Clark, etc.)

(**) A presença de uma bateria em uma roda de samba é objeto de discussão... muitos dizem que ela é absolutamente desnecessária, uma vez que o samba é a junção de vários instrumentos percursivos (pandeiro, tamborim, cuíca, surdo, etc), porém apareceu um tal de Milton Banana e provou que a coisa não é bem assim...

Conto - José Miranda Filho

The Road To Recovery ~ Randall Weidner

Encontro de Amigos - Parte 24

Dona Josefina Stevenson, a mãe de Edward, após o sepultamento do marido, retornou a São Paulo, voltando a residir no imóvel de propriedade da família, no bairro do Morumbi. A casa fora herdada de Miguel Apolônio de Freitas, Barão de Itaguaçu, bisavô de Dona Josefina, cafeicultor e líder político local. Don Miguel Apolônio foi um dos constitucionalistas que em 1932, sob o comando do Coronel Euclides Figueiredo, deflagrou a revolta contra o governo federal, exigindo a constituinte imediata, cujo motivo alegado era o esbanjamento do erário público, a ruinosa Política do Café e a ocupação militar do Estado depois da tentativa de deposição do Coronel João Alberto Lins e Barros, nomeado interventor federal no Estado de São Paulo. Aos 74 anos Dona Josefina dedicava-se a obras assistenciais. Fundou as entidades, Associação dos Menores sem Lar e Abrigo para Moradores de Rua, que dirigia, patrocinava e administrava, juntamente com outras mulheres, também viúvas de embaixadores. As entidades não recebiam subvenção e qualquer ajuda do poder público. Eram subvencionadas por elas mesmas e por algumas empresas particulares que conheciam o empenho e a dedicação dessas destemidas senhoras que iam à luta e se preciso fosse pediriam esmolas nas ruas da cidade, mas não se humilhariam jamais e nem se submeteriam à orientação de qualquer órgão Federal, Estadual ou Municipal, que consideravam corruptos. Dariam satisfação à sociedade, se necessário fosse, se da sociedade viesse algum tipo de ajuda.

Numa manhã de novembro de 2006, no cruzamento da Avenida 9 de Julho com a Rua Europa, quando se dirigia para uma das entidades, Dona Josefina escutou alguém bater no vidro do carro com um objeto, que a princípio lhe pareceu um revólver. Só poderia ser assalto, pensou! Controlando-se para não demonstrar medo, tentou dialogar com o assaltante. O moleque não tinha mais do que 15 anos de idade. Portava um revolver calibre 32 numa das mãos e na outra segurava uma sacola dessas de mercado, provavelmente para colocar o produto do assalto ou cola de sapateiro para cheirar.

Devagarzinho, Dona Josefina abriu o vidro do carro e disse para o meliante:

Meu filho, posso pegar minha bolsa?

Anda logo coroa, senão eu te mato, resmungou o garoto, nervoso.

Quando Dona Josefina virou-se, ouviu-se um estampido seco e estridente. O assaltante assustou-se com o gesto que ela fizera para apanhar a bolsa que estava sob o banco do passageiro, onde ela sempre deixava. O tiro atingiu-lhe a mandíbula e alojou-se no encosto de cabeça do banco do passageiro. Socorrida, foi levada ao Hospital 9 de Julho e operada. Não sofreu conseqüências maiores. Quinze dias depois já estava à frente de suas entidades, como se nada tivesse acontecido. A quem lhe perguntava o que havia ocorrido, a todos, ela dizia:

Isto é coisa de cidade grande. A violência está em todos os lugares. Se as autoridades não criarem emprego para os pais dessas crianças não sabemos aonde vamos parar. A culpa é nossa, da sociedade, que nada faz. Se todos fizessem sua parte não haveria tanta catástrofe nas ruas de São Paulo. Não sei o que é pior: o povo passar fome ou não ter emprego, dizia. Devemos ter vergonha de encarar nossos semelhantes desempregados e com fome, enquanto temos emprego e nada fazemos para ajudá-los. Tenho vergonha de ver alguém pedindo esmolas na rua, enquanto as autoridades nos dizem para negar, mas nada fazem para evitar.

Uma semana depois, o moleque assaltante que se chamava Adão e morava em Francisco Morato com a madrasta, se tornara um dos internos da Associação dos Menores sem Lar. Fora para lá por ordem judicial porque havia assaltado outra vítima, desta vez com morte. Já era um delinqüente perigoso, um homicida. Dona Josefina o recebeu na porta da entidade e travou com ele o seguinte dialogo:

Adão, olhe bem para mim, você se lembra daquele dia em que me apontou um revólver e, sem motivo algum, disparou atingindo-me a mandíbula?

Ele apenas olhava aquela senhora bondosa, e nada respondia. Pensativo, imaginava-se praticando tão absurdo ato de repúdio e horror.

Mas eu te perdôo, dizia ela com um sorriso alegre no rosto.

Adão enrubesceu e desfigurou-se diante de tanta humildade e bondade.

Dona Josefina, por Deus eu peço perdão pelos meus crimes. Quero que Deus me castigue pelos atos que cometi. Agora é que vejo quanta barbaridade pratiquei. Não tenho direito de viver em liberdade, principalmente, neste local sob seus cuidados.

Meu filho, disse Dona Josefina. A vida a Deus pertence. Só ele tem o direito de tirá-la. O importante é que você se arrependa do mal que causou a outrem.

Adão permaneceu na casa por cinco anos, até completar a maioridade e ver-se reabilitado ao convívio social. Era um outro garoto. Transformou-se num moço de brios, educado e cheio de esperanças. Estudava a noite e de dia ajudava nos trabalhos do Lar, sob a supervisão das outras mulheres, a quem carinhosamente as chamava de Tia. Tornou-se um voluntário da associação.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustrações de José Geraldo de Barros Martins


Ponderações Sevilhanas

Ao contrário de sua primeira estadia em Sevilha, quando Josias Germano e sua fiel escudeira Marília Olávia visitaram a cidade em seu período de férias; a segunda passagem pela cidade não se revelava igualmente agradável... em primeiro lugar não estava acompanhado... sua esposa ficara em Pindorama... e em segundo lugar o nosso protagonista não gozava suas mais que merecidas férias... ao invés disto estava na cidade devido ao Congresso Ibero-americano de Mobilidade Urbana...

Apesar de sua palestra “Políticas de Incentivo ao Transporte Público” ter tido boa acolhida na comunidade acadêmica, Josias Germano caminhava cabisbaixo por las calles sevillanas... para ele o seu relativo sucesso como urbanista era a conta a ser paga por sua covardia de não ter insistido em sua vocação de artista plástico... a segurança de um emprego público o mediocrizara irreversívelmente... a princípio acreditou que seus dotes intelectuais o distinguissem de seus colegas de profissão, que o fato de ter lido Joyce, Klebnikov ou Felisberto Hernadez o fizesse alguém especial... que as conversas com seus amigos o mantivessem (ainda que esporadicamente) em um nível espiritual mais elevado... que poderia dar continuidade em sua carreira de artista plástico paralelamente ao trabalho com a cidade grande... chegou até a fazer algumas exposições... mas o tempo foi passando, alguns amigos morreram e dos outros acabou se distanciando... ao mesmo tempo foi galgando postos superiores em seu ambiente profissional e seu tempo livre foi se tornando cada vez mais escasso e os únicos registros de suas antigas e poucas exposições são recortes de jornal guardados em uma pasta encardida...

Agora estava sentado a mesa de um café e desenhava a paisagem enquanto saboreava seu expresso... notou uma mulher que atravessava a rua... era muito parecida com Marília Olávia... talvez fosse alguma parente distante, uma vez que sua fiel escudeira era neta de andaluzes... terminou o desenho, depois pediu uma água com gás e fez mais dois desenhos... agora já tinha uma trilogia... pagou a conta e seguiu caminhando de volta para o hotel.... porém mudou seu percurso... resolveu ir até o Guadalquivir, o rio que corta a cidade, cujo nome vem do árabe al-wādi al-kabīr (grande rio)...

Ficou horas observando o “al-wādi al-kabīr” e pensando na metáfora de Heráclito que diz que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio... a primeira vez em Sevilha descobrira o Alcázar, a Gironda, as ruas movimentadas, o jerez, as anchovas... na segunda vinda, a descoberta de seus medos, de suas covardias... olhou então para seus desenhos... não quis que aquela triologia fosse transportada até Pindorama para ir parar dentro de uma pasta encardida...

Josias Germano deixou as três obras de arte sobre um banco de praça e retornou a seu quarto no hotel... aquele retorno a Sevilha lhe mostrara que sua vida não tinha mais retorno, que jamais seria um artista plástico... que o único retorno possível seria o avião para Pindorama...

Conto - José Miranda Filho

Av. Conde Francisco Matarazzo, 1968 ~ by Evanil Assis
Encontro de Amigos - Parte 23

Pensão da Dona Marta. Madrugada fria e silenciosa. A neblina escura encobria o imóvel isolado do lado esquerdo da Rua Ceará. O prédio estava localizado numa esquina da Praça dos Estados, entre as Ruas Ceará e Bahia. As casas eram, enquanto não demolidas, assobradadas de estilos semelhantes, construídas que foram ao mesmo tempo, no século passado, para os empregados de uma empresa química que havia se instalado no município. As ruas circundantes eram representadas pelos estados brasileiros: Ceará, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Amazonas, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. Não havia o nome do Estado de Tocantins, esse Estado ainda não existia, na época era um pequeno território. Na praça restava de pé apenas a Pensão da Dona Marta, um casarão de estilo romano, que outrora havia servido de residência de um dos diretores da Indústria Química São Caetano. Hoje é apenas uma simples moradia de dez quartos, seis banheiros e várias dependências que se transformou na pensão da Praça dos Estados ou da Rua Ceará, que todos conheciam como a pensão de Dona Marta. Os outros imóveis haviam sido demolidos, impulsionados por uma desapropriação duvidosa e repleta de polêmicas judiciais, para a construção de um Parque Ecológico. De todas as construções existentes, apenas aquele sobrado sobreviveu – por enquanto – amparado por uma liminar judicial sem data para julgamento do mérito. Seu destino, porém, estava traçado: fatalmente ele desapareceria e restaria apenas a história que seria contada por aqueles que por lá viveram e transitaram pelos seus longos corredores de pisos de mármore. Sua construção de estilo romano lembrava mais um pequeno castelo medieval.

Dona Marta, uma senhora simpática, de pele clara, olhos brilhantes e cabelos louros oxigenados, estava sempre atenta àqueles que se aproximavam da entrada da casa, notadamente algum estranho que poderia ser o Oficial de Justiça ou mesmo algum cobrador. A qualquer momento estaria recebendo a notificação para desocupação do imóvel. Já havia combinado com seu advogado que receberia a citação sem qualquer questionamento. Aliás, foi o próprio advogado que lhe orientou não obstruir o trabalho do Oficial. Assim ele teria mais condições de atuar no processo e pleitear uma indenização melhor, mais justa e real, proporcional ao tempo em que ela mantinha a pensão no local. Pediria uma indenização que cobrisse o tempo de permanência, o lucro cessante, as benfeitorias eventualmente realizadas, fundo de comércio, etc. Ela queria ter a certeza que não seria processada à revelia e ver desmoronado o sonho que durante tantos anos acalentou: possuir sua casa própria.

Finalmente, naquela manhã de 16 de novembro, um dia após o aniversário da proclamação da República, Dona Marta foi notificada para desocupar o imóvel no prazo de 48 horas. Ela não era a proprietária, apenas a locatária, mas arrogava-se o direito de pleitear uma indenização pelo tempo de permanência no imóvel, pelas benfeitorias realizadas e principalmente, pelo fundo de comércio, já que sua pensão era legal e tinha registro na Junta Comercial, pagava tributos federais, estaduais e municipais. Coisa que ela sempre resmungou, mas pagava! Afinal não tinha porque não pagar.

No momento em que o Oficial de Justiça pediu-lhe que assinasse no local indicado, seu coração se partiu em dois: um pedaço ficaria ali, o outro partiria com ela, sabe Deus para onde. Em silêncio, rogou ao Deus todo poderoso que iluminasse seu caminho que haveria de percorrer de agora em diante. As lágrimas lhe corriam dos olhos azuis e brilhantes, rolando na face cansada e encarquilhada pelos anos de trabalho e sofrimento, apesar da pouca idade. Dona Marta não tinha mais do que 45 anos, mas já se notava em seu rosto rugoso o desapontamento de alguma coisa que não realizou e teve de deixar para trás. A pensão era tudo que ela tinha na vida. Era seu, meio de vida, sua alegria e tristeza, seu passatempo e sua esperança.

Vencido o prazo para desocupar o imóvel, Dona Marta viu-se à beira de uma depressão. Não conseguia alugar outro imóvel e transferir a pensão. Alguns clientes se foram, outros procuraram outros lugares. Não lhe restou outra saída senão pagar algumas dívidas com a indenização recebida, comprar alguma coisa para si, de que há muito necessitava quitar os carnês do Baú da Felicidade, das casas Bahia, das Lojas Pernambucanas e os honorários do advogado. O que fazer com o resto do dinheiro de tão pouco que sobrou?

De repente uma ideia veio-lhe à cabeça. Com os trocados que lhe restou da indenização, abriu uma pequena conta de poupança na Caixa Econômica e adquiriu cinco títulos do fundo de capitalização do Baú da Felicidade. Arranjou um emprego de garçonete numa lanchonete da cidade e foi recomeçar a vida, afinal tinha apenas quarenta e cinco anos de idade. Era solteira, não dependia de ninguém e também não tinha ninguém que dela dependesse. .

Os títulos de capitalização ofereciam prêmios mensais para quem pagasse em dia. Durante cinco anos seguidos Dona Marta religiosamente, todos os meses cumpria sua obrigação. Dirigia-se à Loja do Baú mais próxima do local onde trabalhava e efetuava o pagamento.

Muito tempo se passou!

Para sua surpresa e alegria, numa tarde de primavera, sol ardente por causa do horário de verão, ao retornar à sua casa cansada e desanimada, notou algo em baixo do tapete da porta. Era um aviso de comparecimento aos Correios, deixado pelo carteiro por não haver encontrado ninguém. Dizia o aviso que ela deveria dirigir-se ao escritório central e tomar ciência do conteúdo do telegrama. No dia seguinte, na hora do almoço, único momento livre de que dispunha, dirigiu-se aos correios, no Vale do Anhangabaú e pegou o telegrama. Leu-o! Não pode conter a alegria quando soube que havia ganhado uma casa no valor de R$ 60.000,00, do Baú da Felicidade.

Não acreditava. Não conseguia ficar de pé. Seus lábios tremiam de alegria. Leu e releu várias vezes até certificar-se de que era verdade. Nos dias seguintes não conseguira dormir aguardando a chamada para comparecer à sede do Baú, para tirar fotografias, conceder entrevistas, aparecer na TV e receber as chaves da tão sonhada casa própria. Afinal, Deus havia ouvido suas preces e realizado seu sonho.

No dia aprazado lá foi Dona Marta. As câmaras posicionadas em diferentes ângulos focalizavam-na em todas as direções. O entrevistador não lhe dava sossego. Solicitava-lhe a todo o momento para repetir a frase: “O Baú é o melhor. Foi o Baú que me deu a casa própria” e “Ninguém deixe de comprar o Carnê do Baú”, etc, etc. E tudo isso ela fazia com tamanha dedicação e boa vontade que lhe apelidaram de “A Vendedora do Baú”.

Foi morar em Sapopemba, bairro, não muito distante do centro, mas alegre e cheio de vida. Compraram-lhe uma casa simples, mas bem confortável. Três quartos, cozinha, banheiro, despensa, área de serviços e um bom quintal, onde poderia criar uma galinha ou plantar algumas verduras e legumes.

Sua vida se transformou ainda mais quando ela começou a frequentar a Igreja “Evangélicos de Cristo”, uma afiliada da Igreja Renascer, aonde todas as sexta feiras à noite ela participava da sessão do descarrego. Aos sábados ia ao baile da terceira idade com uma amiga e vizinha que conhecera. Certa noite, num baile da primavera, conheceu um senhor viúvo de nome Joaquim que a tirou para dançar. Ele tinha aproximadamente 60 anos de idade. Homem bom, honesto, sério, educado e bem intencionado. Ela sempre o via nos bailes, mas ele nunca a havia despertado qualquer interesse até aquela noite. Foi tudo de repente. Conversaram, dançaram, encontraram-se nos próximos bailes e começaram namorar. Dois anos depois se casaram.

Mudaram em seguida para a Capital Federal. Ele era servidor público, já aposentado, mas exercia o cargo de Assistente Parlamentar, no gabinete de um deputado, seu amigo. Optaram por não ter filhos porque ele já tinha dois do casamento anterior. Ela, por motivo de idade, também não queria correr risco com a gravidez aos quase 50 anos. Estava feliz assim e assim teria que ser. Só “Ele”, Deus, como costumava dizer, tem o poder de fazer as pessoas felizes ou infelizes. Moram numa casa simples, cercada de flores e árvores, presentes da natureza, á beira da estrada que leva ao lago Paranoá, aonde todos os fins de semana passeiam de barco sobre suas águas serenas. Nas noites de luar quando as águas do Paranoá devolvem os reflexos das luzes a dezenas de esperançosos crendeiros que permanecem em suas margens elevando preces à procura de algum fenômeno para a cura dos males do amor, ou rogando para que a natureza lhes proporcione a realização de um desejo qualquer, eles simplesmente sorriem e agradecem, lembrando a trajetória da vida.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Verdadeira Estória de Um Roupeiro Chamado Toninho

Toninho Roupeiro sabia que aquela tarde seria a justificação de sua existência: a equipe em que ele trabalhava (na ocupação designada pela segunda parte de seu apelido), o Escrete Esportivo Emboaba (E.E.E.) disputava em Tóquio a tradicional final do mundial interclubes contra o Sportivo Palermocalcio, um clube italiano formado por imigrantes argentinos… Ele tinha certeza da vitória, porém as obcessões do técnico Alejandro Gutman, punham em dúvida do sucesso derradeiro, pois desconfiava daquele uruguaio (*), que dizia constantemente: -”Yo soy un hombre místico … Yo tiengo visiones espirituales de cosas que losotros no miram …”. E não era por menos, pois Alejandro usava um fez (chapéu turco) e ficava falando sozinho no período que antecede os confrontos, nas escadarias dos vestiários… Uma parte da imprensa achava que ele era um engôdo, a outra formada por jornalistas polêmicos, acreditava que ele era um verdadeiro gênio, que abandonara todos os esquemas táticos atuais e ressucitara a formação em diagonal, inventada por Flávio Costa…

O primeiro tempo foi terrível, a equipe italiana jogou na retranca e explorando oportunisticamente os contra-ataques obrigou o goleiro do E.E.E., Peres Donizete a fazer defesas incríveis, sendo que uma delas foi considerada pela crítica esportiva especializada como mais sensacional que o célebre lance em que o arqueiro inglês Gordon Banks pegou uma cabeçada de Pelé, no México em 1970… Antes de entrar no vestiário para o intervalo, Alejandro Gutman cochichou com Toninho Roupeiro: -” Yo tiengo que hacer una bússula mental…”

Aos sete minutos do segundo tempo o árbitro da peleja: Ramón de Sandoval y Rojas (chamado de Jamón Sandoval devido sua predileção por presunto cru), espanhol nascido em Argamansilla de Calatrava, marcou um pênalti duvidoso em cima do italiano Benito Bertoni… goleiro num canto e a bola no outro: no canto da trave!!! Pois é… não entrou…

 A partir daí o técnico do Escrete Esportivo Emboaba, começou a dizer aos berros todo o dicionário de palavrões da língua espanhola; e como o árbitro, cansado se ouvir os vitupérios do técnico emboabino, não ignorava o que ouvia, expulsou-o do gramado… 

O uruguaio passou a assistir o jogo da arquibancada, transmitindo as instruções para Toninho através de um telefone celular… O que ele não imaginava, foi que o roupeiro desconsiderou totalmente as suas orientações e passou a agir por conta própria… -”Chega das palhaçadas deste cara, eu mesmo é que vou dar um jeito na partida…”

 Aos trinta e sete do segundo tempo, o técnico interino, chama Ribamar (o canhotinha de ouro) e disse o seguinte: – “Olha, não passe a bola pra ninguém, viu??? Vá driblando, driblando, até entrar com bola e tudo.”
… 39 min… 40 min… 41 min…42 min… 43 min… 44 min!!! 45 min… descontos: Sportivo Palermocalcio ZERO X Escrete Esportivo Emboaba UM !!! (**)
Ao dar a entrevista coletiva como técnico Campeão Mundial Interclubes, Alejandro Gutman disse: – “Fueram las visiones, fueram las visiones…” mas ele sabia que não houvera visão nenhuma e que o mérito não era dele…

Toninho Roupeiro jamais revelou seu segredo, mas o uruguaio teve que abandonar a profissão (***) pois não suportava os sorrisinhos superiores do roupeiro emboabino…

(*) Parente distante do treinador húngaro Bela Gutman, que trabalhou em uma equipe paulista na década de cinqüenta.
(**) Um obscuro jornalista paraguaio, Gardênio Hernández Garibay, publicou um artigo (no jornal “Periódico del Sport” de San Salvador de Jujuy), em que compara o gol de Ribamar com o final da letra do tango “El Sueño del Pibe” composto em 1943 por Juan Puey e Reinaldo Yiso :
“Faltando un minuto están cero a cero;

 tomo la pelota, sereno en su acción,

gambeteando a todos se enfrentó al arquero 

y con fuerte tiro quebró el marcador.”
(***) Dizem que Alejandro se tornou alfaiate em Taquarembó , porém não há registros de sua passagem pela cidade nos arquivos da prefeitura local .

Conto - José Miranda Filho

Estação Ferroviária de Queimada, BA.
Encontro de Amigos - Parte 22

Um dos irmãos de Toninho, Francisco, o mais velho, encontrado após uma busca incessante, vivia em Queimadas, no interior da Bahia. Era casado e tinha uma filha. Queimadas é um pequeno município às margens do rio Itapicuru, microrregião do Sertão de Canudos, cuja riqueza maior era a extração de sisal. Nesta época Toninho já estava em São Paulo. Havia chegado havia três meses. Sua vinda para São Paulo deveu-se, principalmente, para providenciar o retorno do irmão Chico para Pindobaçu. Corria à boca pequena que a menina que Chico havia deflorado era endiabrada e fazia sexo com todo mundo. Ela era menor, tinha apenas quinze anos de idade.

Chico como era conhecido pelos amigos e familiares, era um menino tímido e muito trabalhador. Aos dezessete anos gerenciava sozinha uma padaria no pequeno município de Pindobaçu, aonde Seu Zuza, seu pai, era um próspero fazendeiro e comerciante.
Chico, não tinha nada com o que se preocupar. Tinha tudo o que queria. Sempre teve uma vida independente. Sempre quis ser livre, solteiro. Tudo estava ao seu alcance, pois ele sempre trabalhou para conquistar esse direito que sempre foi seu, e dele não abria mão por motivo algum, principalmente para se casar.

Pertencia a uma família tradicionalmente católica e bastante conceituada na cidade. Sua mãe era membro das “FILHAS DE MARIA” uma congregação católica formada por mulheres que se abstinham da luxúria, do poder e da arrogância para ensinar os poderes de Deus e prestar ajuda espiritual, financeira e moral àqueles que necessitassem. Seu Pai não queria o casamento, de jeito nenhum. “Nem que a vaca tussa”, como costumava dizer aos amigos e a quem lhe perguntasse a respeito, por achar que a moça não era de família decente.

Essa opinião retrógada que chegou ao conhecimento do pai da moça, fez com que ele abrisse um processo civil e criminal, a cujo desfecho final Chico foi condenado. Para não ser preso teve de fugir para São Paulo, acobertado por um primo que já estivera em terras bandeirantes e conhecia quase toda a cidade, principalmente, São Miguel Paulista, refúgio final.
Permaneceu em São Paulo quase quinze anos. Não conseguia emprego em razão da sua situação na justiça. Não podia expor-se muito à vista e ao conhecimento do público. Era um foragido. Vivia de pequenos bicos, protegido por policiais corruptos que sabiam de seu estatuto judicial e lhe davam cobertura mediante alguma recompensa.

Isso tudo vinha do bolso do pai, que Já não suportava mais tanto gasto. A paciência, a saúde e as finanças foram se escasseando gradativamente até o ponto de atingir o clímax do desespero e da discórdia. Felizmente, poucos meses depois o crime estava prescrito e assim ele pode retornar à sua terra. Toninho tinha vindo buscá-lo orientado pelo advogado.

Chico foi e Toninho ficou.

Em São Paulo Toninho conseguiu seu objetivo: Estudar e ser alguém. Chico não retornou a Pindobaçu, Cidade palco dos acontecimentos, como estava previsto. Preferiu estabelecer-se em Queimadas, aonde, tempos atrás fizera grandes amigos em consequências dos negócios que mantinha na região. Em Queimadas, após alguns meses, estabeleceu-se no ramo de padaria, negócio que dominava e conhecia muito bem. Casou-se, e tempos depois, juntamente com o cunhado fundaram uma empresa de processamento de sisal.

Dez anos após Toninho foi vê-lo. Teve uma impressão não muito boa do seu estado físico e financeiro, naquele sertão seco e quente. Chico imaginava junto a outros empresários, meios de tirar o sustento da família. Não tinha condições de sustentá-la através daquele arcaico sistema de monocultura e produção. Associou-se em cooperativa no âmago da certeza de bons lucros o que não ocorreu.

Toninho sofria muito de ver a ansiedade do irmão, mas nada podia fazer, pois em São Paulo também lutava pela sobrevivência. Voltou de Queimadas, ainda com a esperança de um dia poder ajudá-lo, mas, tudo em vão! Nada pode fazer.
Algum tempo depois, Chico foi acometido por uma doença infecciosa, desconhecida dos médicos locais, talvez transmitida pelo inseto da folha do sisal. Não se soube a origem da doença. O laudo médico acusou apenas parada respiratória. Faleceu deixando viúva e filha.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins baseado em
fotografia de Maria Olívia Serrão Moralez
Passeando Em Lisboa

Josias Germano e Marília Olávia acordaram no terceiro dia de sua estada em Lisboa, preferiram não tomar o café da manhã no hotel e caminharam para um restaurante-boteco na esquina da R. Alexandre Herculano com a R. Mouzinho da Silveira. Lá cada um tomou o seu café acompanhado por deliciosos pastéis de nata... o nosso protagonista salientou para a sua companheira que em Pindorama estes confeitos são chamados de “pastéis de Belém” enquanto que em terras lusitanas pastéis de Belém só podem ser consumidos no bairro de Belém, de modo que todo o resto dos “pastéis de Belém” em Portugal é denominado pastel de nata... Josias Germano continuou a conversa afirmando que o Presidente de Portugal leva uma tremenda vantagem sobre o Presidente do Brasil, pois a sua morada (o Palácio de Belém) está a duas (ou três) quadras da famosa doceria onde os referidos pastéis são produzidos, enquanto que em redor do Palácio da Alvorada só há asfalto, grama, espelhos d'água & emas....

Após o café da manhã a dupla protagonista rumou para o Castelo de São Jorge, reconstrução fake feita por Salazar em uma antiga fortificação... no caminho ruas que lembravam as clássicas ruas mal frequentadas das capitais carioca e baiana...

Josias seguia incomodado com a sua condição de turista, mesmo lembrando da frase “A melhor maneira de não dar uma de turista é não viajar” ou seja que não tinha mais jeito, que deveria bancar o turista e apreciar as terras alheias... depois lembrou-se que com a sobremodernidade o deslocamento espacial mais eficiente (mais pessoas viajando de avião, trens bala, etc.) somado ao crescimento da população mundial, o fluxo de turistas aumentou em todo o planeta: aeroportos caóticos, filas imensas para entrar nos edifícios históricos e a descaracterização do sítio histórico, que de um lugar (com uma função histórica) passara a ser um não-lugar (sem vínculos culturais), uma vez que a afluência contínua de pessoas oriundas de outros locais em visitas superficiais transformava o uso do solo no referido espaço, que antes funcionava como palácio ou fortaleza e agora passava a figurar com centro de visitação, um local de entretenimento... ele então explicou para a sua fiel escudeira que o castelo de São Jorge era uma exceção a regra, pois não havia se tornado um não-lugar em virtude do turismo (como em vários lugares famosos), mas que pelo caminho contrário, tornou-se primeiro um um não-lugar para depois atrair o turismo, uma vez que primeiro veio a reconstrução em estilo medieval (feita por Salazar na década de quarenta) para depois vir a turistada... o prédio originalmente era um alcácer (vila fortificada) na época em que Lisboa era muçulmana (a cidade então chamava-se Al-Ushbuna) e que depois da reconquista cristã em meados do século XII transformou em um castelo em homenagem a São Jorge, castelo este que foi seriamente avariado pelos terremotos ocorridos nos séculos XVI e XVII, caindo em decadência até a referida reconstrução.

Foram almoçar no Nova Ipanema na Av. Libertador, ambos pediram espeto de camarões e lulas, para beber ele pediu uma bagaçeira e uma cerveja e ela um copo de vinho branco alentejano... no almoço a conversa girou em torno de uma assunto recorrente: as pessoas que gostam de acordar cedo nas férias para aproveitar melhor o dia, como se as horas de férias valessem uma boa quantia (tempo é dinheiro) e portanto devessem ser aproveitadas na maior parte do tempo possível...

Josias Germano expôs para Marília Olávia o raciocínio tôsco deste tipo de pessoas: “já que tiramos um mês de férias para cada onze meses de trabalho, cada hora das férias vale onze horas de trabalho, logo um cochilo após o almoço, nas férias, pode significar vinte e duas horas de trabalho, ou seja a metade das horas pagas em um trabalho semanal regular”.

Depois foram para o hotel cochilar, é claro...após acordar e constatar que o cochilo que tiraram valeu bem mais a pena do que meia semana de trabalho... foram caminhar... tomaram o rumo ao bairro do Rato, mais precisamente na praça das Amoreiras, para apreciar a luz ao final do dia... lá se depararam com uma placa azul cobalto com a seguinte mensagem: UM AZUL COBALTO PARA A FELICIDADE... depois com uma placa amarelo limão escrito: UMA AMARELO LIMÃO PARA A GRAÇA... outra placa: UM LARANJA PARA EXERCER A VISÃO DE UM LIMOEIRO AO LONGE...

Eram frases de um poema chamado “Testamento” de Vieira da Silva, a ilustre pintora portuguesa, cujo museu (Fundação Arpad Szenes/Vieira da Silva) situa-se defronte a praça em questão...

Visitaram o museu, afinal Josias Germano afirmara com veemência que Portugal tem dois pintores geniais: Vieira da Silva e Almada Negreiros.. o segundo além de pintor genial também é um escritor genial, uma vez que seu conto “Saltimbancos” antecipa em cinco anos o famoso estilo de escrita que descreve o fluxo de consciência presente no final de “Ulisses” de James Joyce...

Voltaram pois precisavam jantar, porém ao chegar no Largo do Rato foram abordados por um senhor idoso embora ainda forte (lembrava um velho boxer), que trajava terno e gravata azul marinhos, camisa azul-clara. O senhor pediu pára que ambos apreciassem por instantes a Capela do Rato e então disse:

- “Para que serve a religião? Para as pessoas viverem em sociedade... porém existem outros seres, seres fantásticos... que vivem em sociedade em não possuem religião: as abelhas, os cupins e as formigas....”

Conto - José Miranda Filho

Silence Painting

Encontro de Amigos - Parte 21

Toninho depois de ter servido o exército através do Tiro de Guerra 277, em Senhor do Bonfim, foi trabalhar nas minas de Campo Formoso, antes de viajar para São Paulo. Trabalhou nas minas pouco tempo, apenas para adquirir um pouco de conhecimento de contabilidade. Fernandes prometera esperá-lo em São Paulo.

Quando Toninho desembarcou em São Paulo, em março de 1957, Fernandes não o esperava no aeroporto como prometera. Isso o deixou magoado e preocupado. Não sabia a quem procurar. Valeu-se de uma carta que trazia na mala. Toninho foi trabalhar numa loja na Rua Xavier de Toledo, permanecendo lá por dois anos, indo depois para uma indústria automobilística. Daí seguiu uma trajetória de sucesso, até os dias atuais de sua aposentadoria.

Morando um em São Paulo e o outro em São Caetano só se encontravam nos finais de semana para conversar, trocar ideias, tomar um aperitivo, ir ao cinema e matar as saudades da terra natal.

Dez anos depois Toninho casou-se. Fui ao seu casamento. O Juiz de Paz que realizou o enlace morreu atropelado por um motorista bêbado e imprudente. Era um velhinho bondoso e bem querido na comunidade. A festa de casamento estava bastante animada. Lá estavam todos os amigos do noivo, a baianada toda e grande número de colegas da firma. Até João Pinto, um amigo arredio, mas que todos nós o admirava, fez-se presente.

João Pinto era um amigo extraordinário. Gostava de contar piadas, fazer versos e de vez em quando, escrever alguns conceitos da vida que vivia. Eram contos tristes ou alegres, dependendo da quantidade etílica que ele havia ingerido. A vida, como costumava dizer nas coisas que escrevia me deu esse dom. Dizia que tudo o que ele colocava no papel vinha de dentro da alma. Era seu coração que chorava a dor do sentimento, da amargura ou a dor de corno. Dor de corno no sertão baiano é paixão recolhida de um amor perdido, trocado por outro alguém.

Morava na pensão de Dona Marta, na Rua Ceará. Na festa tomou todas, contou piada, declamou poesias e fez o discurso de saudação aos noivos. Era realmente um poeta popular. Autodidata por excelência. Jamais cursou uma faculdade, apenas havia concluído o curso secundário. Era de sua autoria o seguinte conto, publicado no jornal da comunidade local.

“O silêncio nos traz a sensação do encontro com a dor, com a alma, com Deus, com a tristeza, com a alegria e com o sentimento. O silêncio nos leva ao tudo ou ao nada. É a sensação de nos encontrar em algum lugar. A música, dependendo do momento e do local aonde é ouvida, nos leva a lugares imagináveis, distantes que só a nossa consciência e o nosso pensamento poderão distingui-los e estabelecê-los. Imagino-me numa ilha distante, cercada de coqueiros, águas limpas e cristalinas. Ao redor só a natureza deserta e solitária. Dá-nos uma sensação de sentimento jogado fora, sem mágoa e sem rancor, que apenas foi, esvaiu-se. Numa estrada longa e florida, caminhávamos, você e eu, de mãos dadas, num silêncio profundo de uma manhã fria e úmida. O orvalho da manhã ainda banhava as árvores e as gramíneas da estrada. Só nós dois. O frio penetrava em nosso corpo. No entanto, por estarmos juntos, não o sentíamos. A sensação de estar ao teu lado, me faz sentir que estou ao lado de Deus, pois só ele nos dá essa alegria e nos faz lembrar o passado, a infância, a juventude, as noites estreladas e o céu iluminado pelo luar incandescente. Sou um apaixonado e amante da natureza. Deixem-me curtir isso. Não me queiram tolher a liberdade dos meus sentimentos, pois eles são somente meus. O Amor se conquista com o sentimento, enquanto o prazer se adquire com o pagamento. Por isso o amor é eterno e o prazer apenas passageiro. Se compreendêssemos a beleza e a força do sentimento, saberíamos por que o nosso coração sofre mais que a razão. Nós o chamávamos pela alcunha de João da Onça. Ele não gostava. Esse apelido foi-lhe outorgado, quando certa vez ele esteve em Salvador e namorou uma moça que anos mais tarde veio a se tornar sua esposa. Ela tinha uma cicatriz no rosto, e isso era o bastante para que ele a achasse feia e sem graça, como dizia para os amigos. Depois, sem que nenhum de nós dissesse algo ou tivesse culpa alguma, ele a repudiava e falava mal dela. As brincadeiras que lhe fazíamos, eram inconsequentes, às vezes humilhantes, mas, ele mesmo as provocava. E ele, para livrar-se das ridículas insinuações, dizia que ela era uma onça, que não queria nada com ela. Tempos depois, quando deixou São Paulo de vez, soubemos que se casaram, tiveram filhos e viveram felizes, longe da gozação dos amigos.

Assim foi João Pinto, o poeta popular, o cancioneiro da alegria, o amigo de todos os momentos. A felicidade estava ao seu lado, ao alcance de suas mãos, porém, as insinuações das pessoas que se diziam amigas retardaram essa alegria, mas ele, insistente e apaixonado, deixou de lado as ironias dos amigos e foi em busca do amor, à procura do sonho, da sua paixão. Afastou-se de tudo e de todos e foi viver ao lado de quem sempre amou e por quem sempre foi amado. Isso era tudo o que lhe interessava. Nada mais o preocupava e nem ele queria saber. Dane-se! Dizia a todos aqueles que o instigavam.

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog