Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Cronica - Cesar Cruz

Le philosophe, oil on canvas ~ André Martins de Barros
Guia Prático para o Sucesso

Comprei e espremi todos os 427 livros que ensinam o sucesso, existentes em língua portuguesa. O sumo e o resumo estão abaixo, exclusivos para o fiel leitor do TUDA!

Para ter sucesso você precisa:

Ser magro, ser saudável, ser bonito, ser otimista, ser generoso, ser charmoso, ser cordial, ser sincero, ser trabalhador, ser malhado, ser visionário, ser empregável, ser forte, ser flexível, ser veloz, ser adaptável, ser capaz, ser ponderado, ser objetivo, ser franco, ser cheiroso, ser atento, ser formado, ser inteligente, ser paciente, ser determinado, ser afetuoso, ser corajoso, ser bom, ser interessado, ter dentes brancos, ter esperança, ter iniciativa, ter bom senso, ter calma, ter boa aparência, ter caráter, ter eficácia, ter coração, ter recursos, ter fé, ter consideração, ter ânimo, ter pensamento positivo, ter seios fartos, ter persistência, ter capacidade, ter temperança, ter músculos, ter razão, ter cabeça, saber compreender, saber ouvir, saber a teoria, saber a prática, saber sorrir, saber esperar, saber calcular, saber inglês, saber respeitar, saber falar, saber calar, saber escrever, saber ler, saber se colocar, saber abstrair, saber pensar, saber agarrar, saber captar, saber correr, saber parar, saber focar, saber agir, saber o que fazer e saber das coisas.

Porém não pode:

Ser chato, ser insistente, ser medroso, ser mal-educado, ser irredutível, ser feio, ser deselegante, ser impertinente, ser reticente, ser displicente, ser prolixo, ser descabelado, ser derrotista, ser interesseiro, ser sedentário, ser puxa-saco, ser teimoso, ser preguiçoso, ser covarde, ser cardíaco, ser fedido, ser entediante, ser horácio*, ser fracote, ser mesquinho, ser egoísta, ficar desanimado, ficar triste, ficar incrédulo, ficar cansado, ficar doente, ficar depressivo, ficar nervoso, ficar descontente, ficar desesperançoso, ficar desassossegado, ficar desiludido, ter colesterol, ter dores, ter caspa, ter receio, ter dúvidas, ter bafo, ter cecê, ter celulite, ter dívidas, ter espinhas e ter um infarto.

Anotou?

Crônica - Gabriel Fernandes

Festa de Criança ~ papel de parede, domínio público
Festa de criança

Festa de criança é um treco muito engraçado mesmo. A gente não tem filhos pequenos há muito tempo, mas sempre aparece um avozinho convidando para uma festinha de um netinho. Em geral, o evento ocorre num final de semana, o que nos obriga a permanecer em São Paulo. Mais em geral ainda, num sábado, bem no meio da tarde, na hora da sesta, do futebol com os colegas ou de uma partida do Real Madrid na TV a cabo.

Em respeito aos amigos, a gente acaba indo. O local? Ah, o local! De preferência em um condomínio na periferia da cidade. No mínimo uma hora de viagem, desviando de ruas congestionadas, tentando escapar por caminhos provavelmente mais rápidos, o que, por desgraça, nunca acontece. Para complicar, chove. O trânsito parece cortejo fúnebre em cidade do interior: se arrasta devagarinho.

Com sorte se chega ao local onde deveria estar o condomínio. Azar. Rua errada. Existem duas com o mesmo nome: uma rua e uma alameda. A gente tem cinquenta por cento de probabilidade de acertar, mas erra. Vai parar no mais remoto cafundó; não encontra ninguém para pedir informação; acaba voltando, refazendo o caminho na esperança de encontrar a rua certa.

Depois de se rodar como um coió, por acaso encontra um vigia sonolento que conhece mais ou menos o endereço. Finalmente, depois de muito errar, a alameda certa. Uma rua de terra, com água correndo a céu aberto numa extensa e larga valeta que ameaça engolir o carro.

Ainda chove. Os sapatos são as vítimas mais castigadas pela lama, mas as calças não ficam incólumes.

Chega-se com quase duas horas de atraso. Os amigos ainda nos recebem com um pombas-isso-lá-são-horas-de-chegar!

A festinha está no auge. Como um monumento à má sorte, os brinquedos infláveis contratados para a ocasião estão abandonados sobre o gramado encharcado. Na sala da casa, as crianças assistem a um impagável teatrinho de marionetes.

Depois de nos ignorar por um bom tempo, a dona da festa nos recebe com cara de que-porra-o-vocês-estão-fazendo-aqui. A gente se faz de desentendida; entrega o presentinho comprado às pressas e se senta à mesa junto com os bisavôs da criança. Além de enfeites e uns potinhos com mostarda, ketchup e maionese, não há mais nada sobre a mesa. Nem um biscoitinho para se chuchar na maionese.

À mesa, o assunto, depois de passar pela atualização das doenças senis, é a falta de alguma coisa mastigável ou bebível na festa.

O tio está faminto a ponto de fazer um escândalo. O bisavô pergunta ao garçom se não tem nada pra se comer. Com a desculpa de vou-dar-um-olhadinha-lá-dentro, o cara desaparece por quase uma hora.

O anfitrião, muito atencioso e gentil, quer saber se estamos sendo bem atendidos, se estamos satisfeitos. Todos respondem que sim como num desafinado jogral. Preferem sacrificar a verdade a perder uma boa amizade.

Finalmente, o garçom reaparece equilibrando uma bandeja com quatro minis hambúrgueres na mão. Numa manobra de puro reflexo, consegue desviar do tio que se preparava para agarrar pelo menos dois e vai servir uma mesa em que se sentam amigos mais categorizados.

O bisavô fica uma fera. Levanta-se, pega a mulher pela manga da blusa e dispara um vamos-embora-minha-velha-que-a-festa-acabou. Aproveitamos a deixa para nos mandar também.

A dona da festa tenta convencer os avôs a ficarem. Diz que já vão cantar os parabéns, que é rapidinho: Fica vô! Mas o ancião está inflexível.

Conformada, a mãe da criança entrega as lembrancinhas aos famintos que saem resmungando.

O bom da história é que os pais dos donos da festa nem se dão conta da mancada.

No próximo convite, eu poderia inventar uma desculpa esfarrapada, uma perna quebrada, uma doença contagiosa ou a morte de um parente fictício, mas a boa amizade é assim mesmo. Para quem já foi a infinitos aniversários dos filhos dos amigos, não custa, agora, prestigiar os dos filhos dos filhos. É para isso que servem os verdadeiros amigos. Feliz quem os tem, como eu.

Conto - Cesar Cruz

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Uma Borracharia Séria

Dia desses o pneu do meu carro furou em plena Avenida Radial Leste, ao meio-dia. Debaixo desse sol de 40 graus que anda fazendo aqui em São Paulo, você faz ideia do sufoco que eu passei, agachado ao lado do carro na pista central, com os caminhões bufando quente, rente às minhas costas. De calça, camisa e sapato, troquei sozinho o pneu, já que nenhum gentil cavalheiro pareceu ter interesse em me ajudar... Mundo injusto.

Só de vingança, fiquei rodando uns bons 10 dias com o estepe e o pneu furado no porta-malas. Hoje cedo, finalmente, encostei numa borracharia.

Dizem que há coisas que só o Brasil tem, entre elas o escritório de despachante e as Casas Pernambucanas. E a borracharia, é claro. A borracharia é que nem a caipirinha, uma instituição nacional! Você é capaz de imaginar uma borracharia na Holanda, com uns borracheiros holandeses, vestindo aquele macacão cinza? Esquece. Borracharia é coisa brasilis!

Daí foi só parar o carro junto ao meio fio e o borracheiro, calado como todo o bom borracheiro, já foi vendo qual era o pneu furado, erguendo meu carro naquele macaco que todo mundo conhece, girando a chave estrela pra soltar as porcas, abrindo o porta-malas e tirando o furado, tudo isso com um cigarrinho equilibrado no beiço.

Quando dei conta eu já estava dentro da borracharia vendo o cara arrancar, na base da marretada, o meu pobre pneu da roda de ferro. Cuidando pra não encostar em nada, fui vendo as coisas... Atrás de mim, uma pilha de pneus meia-vida e umas calotas penduradas nas paredes encardidas; ali o compressor de ar, mais pra cá uma cadeira de plástico (que um dia foi branca) com uns jornais desmantelados em cima, uma pia minúsculas e imunda, com um pote de pasta desengraxante com cheiro de querosene ao lado da torneira e, é claro, a clássica banheira de borracharia no canto, aquele modelo retrô que só Deus sabe onde os caras acham pra comprar. Mas, pera lá... Um item importante estava faltando!

– Ô, amigo, cadê as mulheres? – perguntei.

– Que mulheres? – ele devolveu, já repondo o pneu consertado no devido lugar.

– Ora, as mulheres peladas!

– Ah, aqui num pode não, que o seu Isaac é crente.

– Que absurdo! Me chame o seu Isaac que eu quero tirar satisfações!

– Foi no banco...

Apesar de contrariado, paguei; mas saí desconfiado de que o pneu pudesse não ter ficado bem consertado. Afinal, uma borracharia que não tenha o serviço fiscalizado por Monique Evans, Magda Cotrofe, Maria Zilda, Luiza Brunet e, quem sabe, pelos olhos penetrantes de uma Lúcia Veríssimo, definitivamente não pode ser uma borracharia séria.

Conto - Roniwalter Jatobá

Elizabeth Magill ~ Lodge (2), oil on canvas

Alojamento
"A cidade está só. Fria e deserta.
O silêncio povoa a mocidade.
O frio que sai das fábricas
dói no peito
como facada."

Aristides Klafke
Pois digo: aqui dá saudade. Tudo no vigiar deste alojamento medonho de grande que parece um hospital vazio. Nessas horas da manhã todo mundo já descambou no rumo do Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé, aí por São Paulo afora, num serviço, lembro do trabalho de antes, que já me levou, me cansou metade das forças. E dá saudade, quando vejo os quartos de seis, doze homens, camas de cada lado ou mais vejo esse casarão de madeira, camas pra tudo que é canto, vazias. E olho a porta, alguém que limpa a sujeira da noite anterior, um ente perdido empurrando com a vassoura o sujo do tablado. Tudo lá fora: montes de terra, areia, depósitos de tábuas, tijolos que ficam muito tempo parados esperando a vez de irem para as construções, ferramentas, de lado no terreno baldio.

Vigio tudo. Trabalho de noite. Num sendo de chuva, noite de aguaceiro, não é ruim. A gente acostuma. Só é danado quando uma gripe pega e se tosse a noite inteira. Aí, a tosse vai varando o escuro do alojamento e a rua brilhando de luzes vazia cá fora. Quebrando o silêncio, ali, na madrugada algum carro de polícia passa devagar quase parando na frente do cemitério da Vila Mariana, bem na frente, perto, tem noites que me animam as vistas já dobradas de sono: carros parados, gente entrando no velório ao lado do cemitério, entrando saindo com os olhos chorosos.

Vigio essas ruas, essas casas em frente de gente de posse, que até frentes ajardinadas têm, pois estes olhos que tomam conta deste alojamento no virar da noite pro dia, ganham pra isso, só não dá pra vigiar a vida que passa correndo dia após dia.

O caminhão, todo dia, leva e traz. De manhã, no despontar dela, escuro ainda, os homens vão levantando de um a um, rostos sonados, nessas horas eles não fazem a zoada que na tarde, volta deles, eles procuram como se espantasse o medo daqui, como se afugentasse as histórias que cada um trouxe de Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, de Minas mais, como Silvestre que em tudo trabalha, já matou três na terra dele, isso da boca dele sai, mas a gente vê que é muita lambança, assim, acredita descrendo.

E de manhãzinha o frege é pouco, se mal comparando com a tarde, na base de umas quatro horas. Nas quatro da tarde em ponto, algum caminhão desponta na rua, os homens calados em cima, chega aqui, abro o portão, o caminhão entra macio, os homens vão descendo, guardando as ferramentas, outros pulando correndo na direção dos seus quartos, isso aqui vira feira, ali se escuta conversa de um, radiola ligada de outro, música de rádio pra tudo que é canto, aí, alegra mais. Negreja de gente. Assim, gosto.

No outro dia, no cair das horas vai ficando o silêncio de novo. Quando dá assim pelas oito da manhã neste alojamento nem mosca zune nas paredes dos quartos. E lá longe nos bairros, sei, os homens cavando buracos, vazando água de bueiros, cortando travessias. Homens trabalhando de perderem o chocalho, modo de dizer, homens lavando a camisa de suor, o suor descendo pelas costas chegando nas calças, molhando a roupa no calor das ruas de carros apressados e de buzinas reclamando das ruas apertadas e poeirentas.

No último caminhão que sai, já dia tamanho, o alojamento desaquece do calor dos homens, cem se for contar, então procuro meu canto e tiro o sono do corpo com o sol alumiando lá fora na rua. Nessas horas nem a zoada de alguma escavadeira me regra o sono, o sono pesado suado do calor das tardes, sono parecendo tresvario, parecendo coisa de morto. Época de frio, julho de inverno desregrado, é bom. Sono caipora de tardes frias, o vento entrando nas frestas do barracão, pois a divisão, aqui, é feita de madeira fina que separa os quartos, e já vi homem se encostar em corpo de outro, em meados de junho, unir as camas, sem mau sentido, querendo pegar a quentura da gente, no frio muito.

De noite, eu vigiando, o frio entrando no corpo, doendo por dentro da farda e no alojamento o roncar de cem bocas só esperando o chamado das quatro horas. Os caminhões encostados roncando, se aquecendo, o motorista lá dentro, de vidros fechados só esperando os homens subirem na carroceria pra começar a viagem, uns pra mais perto, outros pra mais longe, pra todos o mesmo serviço. A cidade se despertando e já encontrando os homens seguros em cavadores, enxadas, pás, quebrando o asfalto, arrancando a terra das ruas, limpando bueiros.

No começo do alojamento, dois anos se foram, quando se podia ainda contar os homens que viviam aqui, quando não havia esse barulho que espanta a tristeza de agora, de manhã, toda manhã, tinha Doralina. Nem ela passa, agora, em frente ao alojamento. Dá voltas em outras ruas como fugindo daqui. Aqui era bom no começo, pois Doralina empregada num prédio da rua passava safada carregando pão e leite em frente me tentando, eu engomado vestido de farda de brim azul da firma, nem ligo, mas ligando naquela precisão de mulher.

Crônica - Cesar Cruz


Papai Noel Corporation

Dando banho na Michele ontem, ouvi isso:

— Papai, sabia que o Papai Noel tem uma fábrica de brinquedos só dele?

— Sabia sim — eu disse — quem te contou isso?

— A professora na escola.

— Que legal! É isso mesmo, filha.

Pequena pausa, ensaboa daqui, ensaboa dali...

— Papai, então por que os presentes do Papai Noel vem no papel da Ri Happy?

Pausa minha agora. Meu Deus, o que vou dizer? Não fui treinado pra isso! O melhor é a verdade, que nunca faz mal.

— Filha, é a terceirização. A Ri Happy, a PB Kids e essas megacorporações do entretenimento tem um acordo com o Papai Noel, que pega os brinquedos sempre nas lojas mais perto das casas das crianças e assim tem vantagens logísticas, de frete... Além disso, essas lojas declaram essas doações que fazem ao PN no IR e têm benefícios fiscais; desta forma, todos ficam felizes. Entendeu?

— Tendi, papai.

Conto - Roniwalter Jatobá

Ricardo Fernandez Ortega
Vontades

Desde que atinou da ideia de se largar pelo mundo, pensou que não adiantava benzedura de mãe, reza na busca da fé ou pedidos, ampliados na boca fechada, balbuciados nas novenas de janeiro. Nada acalmaria a vontade crescente cada vez mais, nem mesmo imploração que esse mundo aí fora é armadilha, pega tudo, desde a lacraia pequenina até touro mais forte, reprodutor de vacaria, bendiga se também o homem, fraco como ele só. Traição em cada canto de esquina -- essas besteiras que filho sem miolo acha e que toda mãe com razão diz.

Os viajados, chegados de pouca hora, falavam. Em volta, todo mundo escutando, Jarrê mais. Até tosse comprida em outras gentes que chegaram de outro mundo, de outras terras, ele escutava extasiado, arremedando em pensamento, com inteira vontade de se largar e voltar por igual. Ficava de beiços caídos, ouvindo em pé, na escuta, guardando tudo.

Eles diziam que tudo em São Paulo era formoso, de melhor não havia, coisa e tal: somente guardavam as tristezas, escondidas nos cantos dos pés de porteiras, que ninguém achava. Falatórios bonitos de ruas cheias de carros se multiplicavam em mil na imaginação de Jarrê.

Então, eles diziam dos prédios, grandes, dez, vinte andares, até tocando o céu, dos empregos oferecidos, a escolher, sem calos nas mãos, ganhando bom dinheiro para o gasto e fazendo pé-de-meia. E mostravam à multidão (Jarrê sobressaía especulando, olhando de perto, cheirando, como é isso?, aquilo?) o relógio de pulso, Seiko, japonês legítimo, comprado a prestação na José Paulino.

Jarrê, no perguntar só por perguntar, quem sou eu para possuir, qual é o preço?

Destamparam a radiola nova de nome difícil. Confiaram que não mais de pau-de-arara. Agora era ônibus que num pulo chegava lá, cortando asfalto de frente, na noite e no dia, como andorinha, pouca parada, livre de chuvas.

Alguns pediram licença, outros não, deu a hora da fome, meio-dia no ponto meio do sol. Por fim, saíram todos, os chegados de novo recebidos como visita em dia de festa, outro preparo.

Jarrê ficou só, só com a querência de ser gente bem. A ideia de partir acumulada no pensamento. Caminhou para a igreja, única construção sólida, já aguentou duzentos invernos, tiros nas grossas portas, fora desavenças lá dentro, até mesmo do vigário que somente vinha de mês em mês, agora vazia. Empurrou a porta pesada, se benzeu e subiu as escadas em direção ao sino pelo balaustrado, devagar. Madeiras rangentes que se balançavam com o peso dele, qual a casinha de Teodoro, perto do alto do cemitério, que qualquer vento bobo põe as folhas de ouricuri que servem de telhado a se arrepiarem.

Os morcegos se alvoroçaram com a visita fora de hora e voaram em bandos para cima, ao telhado, se grudando às telhas. Um mais afoito encostou no sino, ficou tresvariado, amoleceu, e sumiu se batendo.

Tarde de quentura, vento sem bolinação.

Jarrê deu desejo de descer e ir para casa. Desistiu. No fim da rua, ele viu, onde qualquer atiradeira de borracha mole consegue alcançar, uma mulher sair da última casa e passar pela calçada vazia de gente e desaparecer mais adiante. A saia comprida refletiu, por instantes, ao sol.

Jarrê olhou a imensidão. Nuvens papudas se indo com vento na popa, se acumulando bem próximo onde ele esteve ainda ontem de manhãzinha cortando rama verde para alimentar as cabras paridas de novo, subindo ora pedras valendo o sacrifício, ora não valendo, descendo sem aderência nas pedras soltas. Depois, voltando carregado, entrando na rua de casas de uma fileira só, ele com ares de tristeza olhando a solidão da tarde, as mãos segurando com força a braçada de capim colonião, d'angola, vargem e duas mangas de vez, temporãs.

Agora, passou os dedos na poeira do sino. Esperou, pensando, o sol se virar de lado, se livrando do meio do céu e fazer o caminho, no vagar, rumo aonde se põe. Os raios entram na janela, direto, se esparramando com jeito de sem pressa, e ensolaram os cabelos se arrebentando nos olhos dele. A luminosidade, fazendo a sombra tomar forma, desce pela calça, devagar, devagarinho, tomando todo o corpo. O jovem piscou na cegueira de dia claro, vendo a rua parada, sem vultos nas calçadas que não eram de pedras redondas como a calçada aprumada, lisa, enfileirada, da igreja. Ruas somente tomadas de gente nas procissões de setembro ou no 2 de Julho, época das argolinhas.

Parecia estar vendo: os cavalos descambando e arrancando terra poeirenta pelos cascos afiados. Uma tropa, brilhosa nas cores, repleta de cavaleiros de peitos coloridos. Cavaleiros velozes, indo certeiros, no corredor cercado de bandeirolas. Um cavaleiro, esporando o animal e fixo na sela, olha de banda, se ajeita, prepara a lança curta de madeira, se curva na sela sem bicos, na carreira desabalada. Os gritos de um lado, amarelo cor de ouro, e do outro, vermelho cor de sangue cor da vida, se confundem nos ouvidos sensíveis de Jarrê. Cavalos empinando, patas para o ar. Vivas, que batem e rebatem de casa em casa, sobem ao céu e afugentam o sol.

O sol vai embora, se pondo, e deixa Jarrê sair da igreja e divagar sem sombra para casa. Chegou medroso. Por ser tão tarde, fora de costume, entrou de mansinho com receio. Sentou na cama escutando o vento que pouco bulia lá fora. Mesmo sedento, fome não tinha, receoso pela peia, tirou os chinelos e deitou. Ninguém ainda dormia. Lá dentro, à beira do fogão de lenha, conversavam na quentura das brasas que morriam em cinzas.

Fechou os olhos. Cansado, dormiu. O sono das viagens, dos devaneios em dimensão de vontades. No segundo sono, amoitado no canto da cama, sonhou. Não com o ônibus enorme e veloz que toda noite o transportava para São Paulo, mas, sim, que voava sobre os ponteiros de um relógio Seiko alado e pontual.

Conto - Roniwalter Jatobá




Roots, 1943 ~ Frida Kahlo

Flores da violência

E montou num querubim, e voou;
sim, voou sobre as asas do vento.

(Salmos, 18, 10)

A luz do amanhecer era tão clara que Jacinto viu o corpo de Jacira, sua mulher, cair sobre o ninho, quebrar as pernas de uma galinha poedeira e sujar-se no endez enganador, às cinco horas, no imenso quintal enlameado no fundo da casa. Transtornado, correu sem saber fazer o quê, enlaçou-a entre braços e arrastou o peso grávido de quatro meses para o quarto. A esta hora era difícil ser atendido pelas comadres curiosas, prestativas, mas assim mesmo, acode minha mulher, saiu à rua.

O dia se acinzentou e ficou triste, desmanchando a claridade da manhã. Fazendo conjeturas de casos semelhantes, as mulheres que chegaram ante a estranheza da moléstia de Jacira somente olhavam para a imobilidade e o seu respirar compassado. Recordaram até, em voz baixa, que o demônio entra em corpos grávidos para impor os germes da maldade em incautos rebentos que estão para nascer.

A notícia de Jacira correu divulgando a doença numa rapidez que a pequena morada encheu-se, dia e noite, transformando-se em um pequeno mercado, onde somente não incutiram o livre comércio.

As batidas do coração de Jacira eram frágeis quais as teias de aranha finíssimas que sempre teimavam em brotar nos cantos das paredes caiadas de branco. A liquida, possível alimentação, descia pela garganta dela em corredeiras, sem obstáculos nesse corpo morto-vivo.

Com a inconstância na melhora, rotina no tratamento, as visitas à cata de novidades foram dispersando e, no fim de quatro semanas, Jacinto via-se quase só.

À noite os sobressaltos não o deixavam dormir. Ao seu lado, o mesmo respirar constante; acima, os olhos viam pelas frestas, durante a madrugada, as aves que pousavam no telhado ao anoitecer, para logo no madrugar levantarem voo.

No silêncio da noite, na semi-escuridão, ele vagava pensante pelos caminhos mais próximos. Viu no espaço estrelado um véu negro a cobri-lo ponta a ponta: passou a mão em concha nos olhos, pois sentiu a cegueira; acompanhou às margens do rio o percurso da lua que resplandecia em inúmeras contas de diamantes floridos, que, brilhantes, quis apalpar na água, mas fugiam-lhes por mais que os segurasse entre dedos. Sentiu no calor da noite, não acreditando nos olhos: as águas faziam retorno e, em fração de segundos, corriam ao contrário. Duvidou de si e da virtude sobrenatural de sentir as mudanças da natureza, enquanto Jacira, sua mulher, penitente, desde os primeiros momentos não pudera fazer nada. A claridade da manhã o fazia sempre esquecer das brincadeiras que o conjunto de seres que formam o universo faz quando o mundo dorme.

Embora uma vez, creia, ele tentara. Médico candidato, depois de palavras que prometiam, suando, saiu do palanque da praça rodeado de ajudantes e acompanhantes, entrou na casa de Jacinto e, diante de olhares humildes, disse que se fosse eleito a curaria. O tempo e os afazeres de candidato eleito levaram as promessas ao esquecimento.

O ventre de Jacira estancou no crescimento e minguou a vida que desabrochava. O corpo dela na quietude estagnou no tempo, escarmentado.

Em princípio de janeiro, as festas animavam a fuga anual que a realidade diária escondia entre as folhas cortantes dos canaviais. Festejavam agora os cetins que os comerciantes traziam de cidades distantes, contrabandeados em lombos de burros, através de caminhos agrestes, burlando ou propinando guardas que porventura encontrassem pela estrada.

Em Bananeiras somente a casa afastada do lado do rio perene permanecia indiferente aos regozijos da animação; sentado na calçada nua, o olhar de Jacinto perambulava pelo horizonte nas visões reais.

No terceiro mês, as diferenças na vida que não curava somente se ajustavam às peregrinações de Jacinto. Ele andou entre poções milagrosas e feiticeiros benignos que o idoso animal de montaria definhava. No retorno diário, as decepções martirizavam e embaçavam os olhos e a esperança.

Outra vez, ele tentara, pela fé. Padre, pároco de uma igreja distante, nada ajudou, a não ser, como exemplo, mostrar as imperfeições do mundo.

-- Filho, creia em Deus -- disse o padre --, procure até nos labirintos.

-- Nele creio -- disse Jacinto -- mas tem horas que duvido até de mim mesmo.

-- Há na vida tarefas -- disse o padre --com que estamos relacionados e que nem decifrá-las podemos.

-- Por mais -- disse Jacinto -- que tente, me acho... -- e suspirou.

-- Além disso... -- disse o padre, e murmurou durante certo tempo em língua latina.

-- Merda de fé -- exclamou baixinho Jacinto.

Entardecendo na estrada que separa a crença do mundo, entre a poeira que deixou atrás de si, a luz traseira do automóvel paroquial acendeu-se e desapareceu, lá longe, na curva que separa tudo.

O dia seguinte, segunda-feira, amanheceu triste e morno como todos os outros nos olhos claros de Jacinto.

-- Vou deixar o candeeiro aceso, a porta destramelada, para quando dona Maria chegar, cuidar de ti – disse Jacinto, como se Jacira escutasse ou entendesse alguma coisa.

Ainda escuro, montou. Desceu a ladeira, segurando apertado as bridas do animal, rumo à estrada. Encontrou pelo caminho pessoas sonolentas, montadas, tocando à frente animais carregados e mais sonolentos ainda.

Os primeiros meninos, que levantaram mais cedo naquela manhã de Bananeiras, pensaram que o sol se derretia no horizonte ou que nos fins de abril o brilho seria mais ofuscante. O candeeiro aceso, que fez combustão na pequena cama de Jacira, até sobrepujou o sol. O vento soprava e adiantava o fogo que consumia tudo. A ninhada e a galinha manca que dormia no interior da casa eram o começo do desastre: os corpos carbonizados.

Longe, no final da tarde, Jacinto andou pela última vez na feira. Desamarrou o animal e resolveu partir na esperançosa volta. Arvoredos marcados na cintura pelos cabrestos dos animais suspiraram aliviados por mais uma semana. Árvores mais próximas aos bares abençoaram o tempo por este apaziguar de sofrimento de sete dias.

Quando a última barraca de lona foi desmontada, ainda ouvia-se o eco rápido, senhores e senhoras, do vendedor de elixir, cura-se tudo desde o veneno de cobras a dores de cabeça, o vento trágico da tarde soprava lento.

Jacinto, dador de dias, reapertou a sela – quando Jacira melhorar compro sela nova --, subiu no cavalo e troteou.

A tarde morna se acomodava. No cascalho fino, arenoso, ele ia rápido que ultrapassava as lentas -- boa-noite, tua mulher está melhor? -- pessoas que tocavam à frente -- vai como Deus quer -- animais encaçuados, carregados do comércio que ia e vinha semanalmente.

O vozerio dos passantes -- boa-noite -- no encontro não tirava, nem o sacolejar da montaria, a precisão de pensar no tempo. Com a noite clara, o vento veio devagar, uivando penetrante na sequidão da estrada. Plantas já começavam a assustar viventes homens transformando-se em animais horrendos. Jacinto, acostumado com a noite, conhecia os caminhos e sorria das visagens imaginosas nas cabeças tontas e divorciadas daquele mundo.

Jacinto esporeou levemente o animal -- tenho fé em tudo --, verificou o volume que o vidro de elixir -- senhores e senhoras cura tudo -- fazia em seu bolso esquerdo. Agarrou-se às crinas do cavalo -- v'ambora -- e galopeou.

Aproximando, na penumbra, não tivera necessidade de entreolhar-se para perceber que havia mudanças. As paredes tombadas e enegrecidas completavam tudo. Apeou-se e continuou andando, puxando o cavalo em rédeas curtas. Atravessou a multidão cansada de esperá-lo e apreensiva em relatar pormenores. Não escutava os murmúrios. No quarto, viu, entre escombros, o corpo de Jacira que permanecia intacto, somente as roupas diluíram-se e somente a vida -- Deus! -- que pouco lhe restava tinha fugido.

-- Nem parece morta! – disse alguém.

Era verdade. Do rosto pálido, só faltava correr livremente o sangue.

Jacinto abaixou-se e beijou-a na testa. Olhou-a com adeus. Caminhou calmamente até sentir que corria. Penetrou no matagal, entre espinhos que a roupa ficava, retalhando-lhe o corpo.

Jacira desapareceu na mesma noite sem ser tocada por ninguém do lugar. Alguns incrédulos não acreditam quando se conta que seu corpo flutuou, voou sobre as asas do vento e, entre auréolas resplandecentes, desapareceu sem vestígio algum, deixando no ar uma coloração irreal que a própria natureza, pelo vento que soprou forte, fez desaparecer incontinente.

Alguns acreditam e dizem que em Bananeiras nascerão flores coloridas, sim, amarelas e vermelhas: flores da violência que engolirão a si mesmas e combaterão o medo dos canaviais.

Não faz muito tempo. Ali restam os escombros da casa incendiada. Agora, já nasce, num canto ou outro, algum vegetal daninho, mas que ainda não reproduz flores.

Crônica - Cesar Cruz


Pesadelos Pré-lançamento

Sempre nos dias que antecedem o lançamento de um livro meu, começo a ter sonhos terríveis. Nesta noite tive dois. No primeiro deles, estou sentado atrás da mesa de autógrafos no dia do coquetel do lançamento de A Invasão dos Horácios. Estou só, de caneta na mão, aguardando pateticamente as pessoas chegarem à livraria, mas ninguém aparece. Então vejo, através da vidraça que dá para a calçada, o céu enegrecer de repente e o dia virar noite. As pessoas correm na rua com revistas sobre a cabeça, e aí desaba uma violenta tempestade, com raios e trovoadas retumbantes.

O vento arrasta sacos plásticos, lixo da rua e folhas de árvores livraria adentro. As portas de vidro que dão pra calçada são fechadas pelos seguranças. Logo as pedras de granizo começam a desabar do céu e ricochetear na calçada, batendo nas vidraças com violência. É quando eles decidem baixar também as portas de aço. Vejo-as se desenrolarem até o chão e serem travadas com aqueles tambores cilíndricos de latão.

Fico ali dentro, sentado à mesa, completamente sozinho. Acendem uma luz fraca, amarela. Na penumbra, fico ouvindo o barulho da tempestade lá fora. Dou um tranco de susto quando alguém põe a mão no meu ombro. Me viro e dou com o gerente da Livraria da Vila, que no meu sonho é um sujeito de bigode fino, estilo sambista dos anos 50. Ele usa uma camisa aberta no peito, de manga curta, daquelas que tem um bolsinho especialmente feito pra se colocar os documentos e um pente seboso, amarrado por um elástico.

– Meu querido – ele diz, em tom autoritário – Por total falta de condições seu lançamento está encerrado. Pode ir embora.

Quero argumentar com aquele detestável ser que me chama de meu querido, mas a minha voz não sai. Só tenho tempo de vê-lo sumindo por entre as prateleiras de livros que avançam e desaparecem num denso nevoeiro. Tudo escurece e eu acordo.

No segundo pesadelo, estou com o livro nas mãos, recém-saído da gráfica. Quando abro, percebo que além do corte da página ter ficado torto, a impressão está completamente apagada. Com muito esforço dá para se ler um trecho ou outro. De repente troca a cena e agora estou de frente para um gordo de cabelos grisalhos que, com um palito no canto da boca, me olha, desinteressadamente. Ele é o dono da editora, no sonho eu sei. Estou mostrando o problema a ele, derrotado.

– É... – ele murmura, rolando o palito pro lado oposto do beiço – Às vezes sai meio apagado mesmo, mas dá pra ler.

Num afluxo da mais pura ira, tento mover os meus braços para agarrá-lo pelo pescoço, mas estou paralisado, como um homem mergulhado numa densa geleia. Grito, mas não sai som, minha boca parece grudada como naquele filme, Matrix. O gordo gargalha com o palito incrivelmente equilibrado na boca aberta. É quando o livro cai da minha mão, em câmera lenta, e acaba numa poça de lama.

Acordo suado, sentado na cama.


O coquetel de lançamento do novo livro do autor, “A Invasão dos Horácios”, será no dia 19 de outubro - sábado - Livraria da Vila - Al. Lorena, 1731. São Paulo - das 16h às 19h. Os leitores da TUDA estão todos convidados!

Conto - Roniwalter Jatobá

(C) All rights reserved by Chihilo Mathui
O Pano Vermelho

"panos herdados de murchos caminhos
rostos sombrios de migrações cinzentas."

Arnaldo Xavier

1952 -- Na minha pele refletia a mocidade, quem via dizia: tão novo, burrego ainda. Tinha: um sonho de pai tão antigo como ele, que passou por toda aquela vida de sustento, vendo os filhos que nasciam no todo sempre em todo ano. E: mãe enrodilhada na cama no resguardo de filho novo, na mesma pequenez quanto as palavras dela, relutando, pra que ir tão longe? Eu: ali, sempre vendo aquela velhice que vinha no correr dos anos trazida quem sabe por quem, que ia entrando nas pessoas. Como ser tão parado no viver? Esperando pai morrer, mãe morrer, aqui, tudo miúdo, até a vida.

1953 -- O caminhão não esperou a claridade despontar. Dormindo, uns. Maldizendo, chorando, outros. Calado, eu. A lona marrom cobrindo as pessoas da chuva, do sol e guardando poeira. A Bahia, grande. Minas: serras, lama, ladeiras, o caminhão lotado de gente chapiando terra, voando areia, pedra, por estes caminhos pobres. São Paulo: como nos velhos sonhos de pai, vermelho tal São Miguel, onde aportei em janeiro de tarde com um sol miúdo. A grande fábrica de química me acenando pelos dias seguintes, chamando. Fichado fui. Perto do ano findar voltei à Bahia em dias de folga. Trouxe Adelina, ela preencheu o vazio de uma mulher.

1954 -- Comprei um terreno no Jardim Helena. No passar do ano fiz em oito domingos seguidos um quarto e uma cozinha, fiz moradia desse começo de casa. Nas noites como uma roça, sapos cantavam longe na vargem do Tietê, Adelina, sempre dizendo, sinto saudade. Nasceu Reinaldo. Getúlio morreu.

1955 -- Não nasceu João Batista que já tinha nome e quase leva pra cova a fraca Adelina que muito sofreu nesse passar de ano. Por mão própria, demorosa, a notícia assim veio: "pai morreu afogado, tentando salvar um bezerro do coronel Gercílio Batista nas profundezas do rio Bananeiras".

1956 -- Nasceu um menino: Getúlio Vargas.

1957 -- Nasceu uma menina: Maria Aparecida.

1958 -- Puxei mais um quarto. Adelina ajudando, Reinaldo se lambuzando de barro, a casa tomando outra forma. Outras casas começavam a levantar em volta. Adelina no entrar de setembro foi operada. Avexei: cuidei da casa, saía cedo pra fábrica, voltava no rastro, pedi ajuda, os poucos vizinhos favoreceram.

1959 -- Apertou saudade, viajei pra Bahia, só. Adelina ficou. Vi: Bananeiras tinha a mesma cara, tudo igual, tudo mais velho, só a água que corria sempre naquele rio que me banhei vinha mudada nas corredeiras.

1960 -- No começo desse ano: nasceu Roberto. No fim: Adelina caiu perto do poço d'água, escorregou carregando um balde cheio, perdeu um menino que desabrochava nela. Ela definhou, a pele se colou aos ossos; no chegar, toda tarde, via Adelina viva pelas graças de Deus.

1961 -- Comprei uma bicicleta.

1962 -- Reinaldo começou a trabalhar no Brás, engraxando sapatos num ponto da estação de trem, levantava bem cedo, todo dia escuro ainda. Quase no fim do ano compramos uma televisão, fazendo sacrifício.

1963 -- Adelina acorda numa noite, soltando gritos pela escuridão, sonhando num presságio triste, como se mil homens lhe estivessem estrangulando, amedronta a casa inteira e ela pare, morto e minguado, um ente, nem homem nem mulher, de três meses.

1964 -- Chegou uma carta, dizendo: "mãe tinha morrido e, antes, viva ainda, mandou fazer um vestido com o pano vermelho que lhe mandei de presente e pediu, como se adivinhasse a morte que logo apontaria, que lhe vestisse como mortalha". Assim foi feito.

1965 -Getúlio morreu na primeira rua de asfalto, aqui, debaixo dum carro ligeiro, que se sumiu pra sempre nas ruas de poeira.

1966 -- Adelina entristeceu nesse correr de ano todo, andava pelas tardes de domingo, comparando: "miséria aqui, miséria lá, aqui é cativeiro".

1967 -- A mãe de Adelina morreu. Ela botou luto fechado por seis meses e dias, batendo com as palavras sempre dizia: "que sua sina era viver aqui nesse cativeiro".

1968 -- Vieram uns soldados. Bateram na porta, abri. Iam me levar. Adelina me segurou, um soldado bateu nela com o fuzil. Ela me soltou. Voltei, solto, era engano, mas por meses não olhei frente a frente nos olhos baixos de Adelina.

1969 -- Adelina morreu. Sina mais triste pra quem fica, sina de todo vivente. Ano inteiro, em juízo: solidão pesando, filhos crescendo, Jardim Helena inchando de gente.

1970 -- Maria Aparecida chorava sempre no negar das coisas que nunca, ninguém aqui, podia nem ter. Pedia que ela esperasse, se botasse mais moça, até poder trabalhar. Num dia não amanheceu em casa. Sumiu na sua sina.

1971 -- Reinaldo encegueirou, quis casar. Trouxe a mulher pra morar aqui. Construí um quarto pra eles no fundo da casa.

1972 -- Maria Aparecida tinha sumido de verdade. Nunca ninguém mais ouviu falar dela. Cada dia mais apertava a falta de Adelina. Um ano triste.

1973 -- Me ofertaram uma medalha pelos vinte anos de trabalho. Reinaldo brincou: "o que vale isso, pai?" Respondi: "num brinca com as coisas do governo!" Guardei a medalha num malote, outro dia, vi: enferrujada.

1974 -- A profissional se esfiapava no passar do tempo, suada, molhada, seca, no bolso traseiro da calça.

1975 -- Fiz acordo na fábrica. Saí de lá. Abri esse bar que aqui se vê. Pequeno, freguesia pouca por enquanto, mas vai melhorar. Sei.

1976 -- Fico nesse bar de noite a dia, de dia a noite, como se procurasse um arremediamento do ficar só. Rita, mulher de Reinaldo, quem imaginava aquele corpo fraco, se tornou mãe, esperança deste corpo, sonho novamente começado em fim de vida. Vem pena de Reinaldo: esperançoso ele. Dou fé.

Red Material

Material bequeathed by withering
highways dusky faces
of greying migrations
(Arnaldo Xavier)

1952 -- Youthfulness shone from my skin, anyone seeing if would say: so young, and bit daft still. What I had: one of my father's dreams as old as himself who had spent all that life of grit as he saw the children who were born in each and every year. And too: mother curled up on the bed shielding the child which was as tiny as her words resisting me, why are you going so far away? I: as I saw aiways there the ageing which came down the passing years brought unbeknownst by whom but which kept entering into people. How could I remain so stranded in life. Waiting for father to die, for number to die, here everything's so paltry -- even life itself.

1953 -- The lorry didn't wait for the light to come. Some sleep. Others, cursing or weeping. Myself, in silence. Brown canvas keeping rain and sun off people and catching the dust. Bahia, so big. Minas, mountains, mud and sleep hills, the lorry laden with people chumming the earth up with sand and stones flying down those poor roads. São Paulo: like in father's old dreams, red like São Miguel where on January afternoon I docked by a now small sun. The big chemical works was beckoning me over the following days, calling me in. I was taken on. Towards the year's end, I went back to Bahia for the holidays. I brought Adelina back with me and she filled the gap for a woman.
 

1954 -- I bought a plot in Jardim Helena. In the course of the year I built one room and a kitchen on eight Sundays at a stretch and I made this start of a home into somewhere to live. Like on a rural patch, toads sang by night far away on the banks of the Tiete. Adelina's aiways saying I feel homesick. Reinaldo was born.
 

1955 -- João Batista wasn't born though he had already a name and all but took that weak Adelina to the grave and how she suffered over the year. The following news arrived by hand and belatedly: "Father drowned as he was trying to save one of Colonel Gercílio Batista's calves in the depths of Bananeiras river."
 

1956 -- A boy's born: Getúlio Vargas.
 

1957 -- A girl's born: Maria Aparecida.
 

1958 -- I knocked up another room. With Adelina giving a hand and Reinaldo getting caked in mud and the house changing shape. Other houses started to go up around. At the beginning of September Adelina had an operation, was overwrought: I kept house and would rise early for the works and come back by the path, I asked for help and the few neighbors came to my aid.
 

1959 -- I was stricken by homesickness and travelled to Bahia on my own. Adelina stayed on behind. I could see: Bananeiras looked just as before, everything the same, everything older, only the water flowing in the river where I bathed had changed through the rapids.
 

1960 -- At the beginning of the year: Roberto was born. At the end: Adelina fell down at the well, she slipped carrying a pailful and lost a child which miscarried. She wasted, her skin gripped her bones; as every evening I got home I found Adelina still alive thanks be to God.
 

1961 --I bought a bike.
 

1962 -- Reinaldo started working at Brás shining shoes on a pitch at the railway station, he'd get up really early every day when still dark. When the year was nearly over we bought a television at great sacrifice.
 

1963 -- Adelina wakes up one night screaming into the dark, having dreamt a nightmare, seemingly a thousand men were strangling her, it terrifies the entire household and she gave birth to an object, dead and slight, neither man nor woman, just three months gone.
 

1964 -- A letter arrived saying: "mother has died and before, when still alive, she got me to make her a dress in red material which I sent her as a present and asked me, with a foreboding of the death that was about to mark her out, that I make it like a shroud for her. And so I did."
 

1965 -- Getulio was killed in the first asphalt street here, under a light vehicle which vanished into the streets of dust for ever.
 

1966 -- Adelina grew so sad trough the year, she would drift around on Sunday afternoons, comparing "so wretched here, so wretched there, this is pure bondage."
 

1967 -- Adelina's mother dies. She went into six month's and six days morning, every time she spoke mumbling that it's my fate to be living here in this prison camp."
 

1968 -- Some soldiers came. They banged at the door and I opened. They were going to take me away. Adelina clung on to me, one soldier hit her with his rifle. She let me go. I got back, it was a mix-up, but for months I couldn't look Adelina's downcast eyes head on.
 

1969 -- Adelina has died. A worse fate for the one who's left, the fate of everyone alive. The whole year long, in purgatory, with loneliness weighing me down, the children growing up and Jardim Helena filling up with folk.
 

1970 -- Maria Aparecida would sob when refused things that no one could ever ever have here. I asked her to wait till she was a bigger girl and could go out to work. One day at home it didn't down. She vanished to her fate.
 

1971 -- Reinaldo fell madly in love and wanted to get married. He brought the wife to live here and I built a room for them on the back of the house.
 

1972 -- Maria Aparecida has vanished for good. Nobody has ever again mentioned her. Everyday Adelina's absence was ailing me more. A sad year.
 

1973 -- I was awarded a medal for twenty years service. Ronaldo scoffed; "what's the good of that, dad?" I answered: "Just don't scoff at things from higher management!" I put the medal away in a trunk and the other day I found it: gone rusty.
 

1974 -- My trade card was falling to bits with the passage of time, sweaty, soaked and dried in my back trouser pocket.
 

1975 -- My resignation was accepted at the works. I left the place. I opened the bar you can see here. 
A small one, not too many customers so far but it'll pick up. I'm sure of that.
 

1976 -- I keep in the bar from night till morning and from morning till night as if seeking treatment for being all alone. Rita, Reinaldo's wife, and whoever would have thought it of that frail body, has become a mother, the hope of this body, a dream newly restarted at a life's end. I'm sorry for Reinaldo: so full of hopes he is. Honest to God.

Crônica - Cesar Cruz

Muchanu ~ Mocking Smile
Os Meus Sorrisos

A Vanessa tem um certo sorriso lindo, do qual só faz uso às vezes. As bochechas sobem de forma diferente, os dentinhos se revelam infantis, uma doçura. Acho que ela nem sabe quando o usa, e nem sabe que é diferente dos outros; é espontâneo e imperceptível para ela, fruto do mais puro contentamento. Para mim é como um presente. Raro.

Desço do carro. Ela assume o volante. A rua Vergueiro vazia e quieta. Não há alma viva na cidade, nesta segunda de Carnaval, às 8h30. O restaurante da Conceição, defronte, fechado. Onde almoçarei?, penso. Vim trabalhar, dar plantão. Já em pé na rua, dou um beijo na Vanessa pelo vidro do motorista. Faço a volta no carro para dar um beijo na Michele, presa na sua cadeirinha, no banco traseiro. Papai tabaiá!, ela diz para mim, e me brinda com seu sorrisinho sensacionalmente fantástico de Michele-do-papai. Ambas são lindas e têm sorrisos esplêndidos. Tal mãe, tal filha.

Vendo o carro se afastar, penso: tudo o que eu tenho na vida vai ali, naquele carro.

Conto - Roniwalter Jatobá

Low lodging house, St Giles's
Alojamento
"A cidade está só. Fria e deserta.
O silêncio povoa a mocidade.
O frio que sai das fábricas
dói no peito
como facada.
"
~ Aristides Klafke

Pois digo: aqui dá saudade. Tudo no vigiar deste alojamento medonho de grande que parece um hospital vazio. Nessas horas da manhã todo mundo já descambou no rumo do Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé, aí por São Paulo afora, num serviço, lembro do trabalho de antes, que já me levou, me cansou metade das forças. E dá saudade, quando vejo os quartos de seis, doze homens, camas de cada lado ou mais vejo esse casarão de madeira, camas pra tudo que é canto, vazias. E olho a porta, alguém que limpa a sujeira da noite anterior, um ente perdido empurrando com a vassoura o sujo do tablado. Tudo lá fora: montes de terra, areia, depósitos de tábuas, tijolos que ficam muito tempo parados esperando a vez de irem para as construções, ferramentas, de lado no terreno baldio.

Vigio tudo. Trabalho de noite. Num sendo de chuva, noite de aguaceiro, não é ruim. A gente acostuma. Só é danado quando uma gripe pega e se tosse a noite inteira. Aí, a tosse vai varando o escuro do alojamento e a rua brilhando de luzes vazia cá fora. Quebrando o silêncio, ali, na madrugada algum carro de polícia passa devagar quase parando na frente do cemitério da Vila Mariana, bem na frente, perto, tem noites que me animam as vistas já dobradas de sono: carros parados, gente entrando no velório ao lado do cemitério, entrando saindo com os olhos chorosos.

Vigio essas ruas, essas casas em frente de gente de posse, que até frentes ajardinadas têm, pois estes olhos que tomam conta deste alojamento no virar da noite pro dia, ganham pra isso, só não dá pra vigiar a vida que passa correndo dia após dia.

O caminhão, todo dia, leva-e-traz. De manhã, no despontar dela, escuro ainda, os homens vão levantando de um a um, rostos sonados, nessas horas eles não fazem a zoada que na tarde, volta deles, eles procuram como se espantasse o medo daqui, como se afugentasse as histórias que cada um trouxe de Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, de Minas mais, como Silvestre que em tudo trabalha, já matou três na terra dele, isso da boca dele sai, mas a gente vê que é muita lambança, assim, acredita descrendo.

E de manhãzinha o frege é pouco, se mal comparando com a tarde, na base de umas quatro horas. Nas quatro da tarde em ponto, algum caminhão desponta na rua, os homens calados em cima, chega aqui, abro o portão, o caminhão entra macio, os homens vão descendo, guardando as ferramentas, outros pulando correndo na direção dos seus quartos, isso aqui vira feira, ali se escuta conversa de um, radiola ligada de outro, música de rádio pra tudo que é canto, aí, alegra mais. Negreja de gente. Assim, gosto.

No outro dia, no cair das horas vai ficando o silêncio de novo. Quando dá assim pelas oito da manhã neste alojamento nem mosca zune nas paredes dos quartos. E lá longe nos bairros, sei, os homens cavando buracos, vazando água de bueiros, cortando travessias. Homens trabalhando de perderem o chocalho, modo de dizer, homens lavando a camisa de suor, o suor descendo pelas costas chegando nas calças, molhando a roupa no calor das ruas de carros apressados e de buzinas reclamando das ruas apertadas e poeirentas.

No último caminhão que sai, já dia tamanho, o alojamento desaquece do calor dos homens, cem se for contar, então procuro meu canto e tiro o sono do corpo com o sol alumiando lá fora na rua. Nessas horas nem a zoada de alguma escavadeira me regra o sono, o sono pesado suado do calor das tardes, sono parecendo tresvario, parecendo coisa de morto. Época de frio, julho de inverno desregrado, é bom. Sono caipora de tardes frias, o vento entrando nas frestas do barracão, pois a divisão, aqui, é feita de madeira fina que separa os quartos, e já vi homem se encostar em corpo de outro, em meados de junho, unir as camas, sem mau sentido, querendo pegar a quentura da gente, no frio muito.

De noite, eu vigiando, o frio entrando no corpo, doendo por dentro da farda e no alojamento o roncar de cem bocas só esperando o chamado das quatro horas. Os caminhões encostados roncando, se aquecendo, o motorista lá dentro, de vidros fechados só esperando os homens subirem na carroceria pra começar a viagem, uns pra mais perto, outros pra mais longe, pra todos o mesmo serviço. A cidade se despertando e já encontrando os homens seguros em cavadores, enxadas, pás, quebrando o asfalto, arrancando a terra das ruas, limpando bueiros.

No começo do alojamento, dois anos se foram, quando se podia ainda contar os homens que viviam aqui, quando não havia esse barulho que espanta a tristeza de agora, de manhã, toda manhã, tinha Doralina. Nem ela passa, agora, em frente ao alojamento. Dá voltas em outras ruas como fugindo daqui. Aqui era bom no começo, pois Doralina empregada num prédio da rua passava safada carregando pão e leite em frente me tentando, eu engomado vestido de farda de brim azul da firma, nem ligo, mas ligando naquela precisão de mulher.

Hostel

Well I'll come out with it: I'm worksick here. All from keeping an eye on this ghastly hostel that's so big it seems like an empty hospital. At these morning hours when everyone's already sloped off in the direction of Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé or else right out of São Paulo to their work places, I can recall my previous job which has ground me down and worn out half my energy. And worksick I am when I see the dormitories for six or twelve men, beds down each side, or all the more so when I see that rambling wooden pile with it's beds empty at every corner. And so I gaze at the door, at somebody clearing up last night's mess, a lost body pushing the floorboard's fifth along with a broom. Everything outside: mounds of earth, sand, stacks of planks, bricks which have lain idle so long as they wait their tum to go into buildings, and tools alongside on the waste plot.

Everywhere keeping an eye, I work at night. In a downpour, a showery night, it's not too bad. You get used to it. It's only a bit of a pain when there's the flu about and they're coughing the night long. And then the coughing keeps trashing the gloom of the hostel and the gleaming lamplit street outside. As it breaks the silence, out there amid the small hours a police vehicle drives slowly past almost stopping in front of Vila Mariana cemetery, right in front of it, you have nights when there are sleep-winced faces to excite me: parked cars, folk joining vigil beside the cemetery, going in and out with tear-filled eyes.

I keep an eye on those streets and too those houses of better-off folk, they've even got gardens in front, for these eyes I have that mind the hostel with the turn from night into day reach that far just that it doesn't do to keep an eye on life that runs past day after day.

Every day, the lorry bring them back and forth. In the morning, just as it breaks, still dark though, the men get up one by one, sleepy faces, they don't have the hum of the evening on their return they seek seemingly to scare fear away from here and to banish the tales that each has brought from Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, again Minas, like Silvestre who's done every job and has to date killed three back home, that's his story, but you can see it's a load of bluster so it's accepted in disbelief.

And in the early hours there's little to do, compared out least with the evening, around four o'clock. On the stroke of four, some lorry appears in the street, with silent men in the back, it draws up, I open the gate, the lorry creeps gently in, the men get down holding their tools, others leap off running for their rooms, this place becomes a fairground, you can hear someone's chat, someone else's cassette player on, radio music from every angle, it livens up in there. It darkens with folk. That's how I like it.

The next day as the hours slip on, silence is back again. When it gets like that at eight in the morning not a fly buzzes against the walls of the hostel rooms. And way out in the outskirts, I know the men are digging holes, pumping water from gulleys, cutting out side streets. Men working till they lose their yap, as they say, men bathing their shirts in sweat, sweat streaming down their backs to meet their trousers, soaking their clothes in the heat of the streets of hurrying cars and horns whining at the crammed and dusty streets.

With the last lorry to leave, in the now broad daylight, the hostel cools from the warmth of the men, a hundred of them were you to count them, and then I find my corner and snatch sleep from my body as the sun lights up outside in the street. During such hours not a clatter of a single digger harnpers sleep, that heavy sweaty sleep of the afternoon heat, a sleep seeming delirious, seeming something akin to death. The cold season, Julys of wayward winters, is good. Hapless sleep of cold afternoons, the wind seeping trough the chinks of the shack for the screen just here is made out of the thin wood that partitions off the dormitories and I've even seen men huddling against the bodies of others, in mid-June, putting their beds together quite without evil intent, wanting to catch each other's warmth in that bitter cold.

In the night, as I'm keeping an eye, with the cold running into my body aching within its uniform as in the hostel the snores of a hundred mouths just awaiting the four o'clock call. The lorries leaning to the wall, snoring warming up, the driver inside with windows shut just waiting for the men to mount the bodywork to start the ride, some traveling locally, others farther afield, for them all the same job. The city awakening to find men already in the grip of earth-movers, hoes spades, breaking asphalt, dragging earth out of the streets and clearing gulleys.

When the hostel started, two years back now, when you could still count up the men who lived here, when there wasn't the noise that scares today's sadness, in the morning, there was Dora1ina. Now she never passes the front of the hostel. She does the rounds of other streets as if avoiding here. It was good here at the start because Doralina, a cleaner at a block in the street would come past brazenly bringing bread and milk opposite enticing me, me in the rubberized uniform and the company's blue sailcloth. I'm not bothered, but I am mad about the need for a woman.

Crônica - Roniwalter Jatobá

Marcos Rey
O paulistano Marcos Rey

Todos os sábados, pontualmente ao meio-dia, ia ao seu encontro na Livraria Cultura, na Avenida Paulista. De longe, ainda seguindo pelo amplo corredor do Conjunto Nacional, avistava seus cabelos brancos. Embora fosse 25 anos mais velho, era como um irmão.

Nos últimos tempos, bebia apenas um copo de chope e, às vezes, fumava um cigarro. Riso estampado no rosto, me contava que, quando não aparecia na Cultura, no final da tarde pedia o seu cigarro semanal para a empregada, escondido de sua esposa Palma. E ria.

Sempre gostava de lembrar uma história, um frustrado lançamento de livros em Jundiaí, para o qual foram convidados seu irmão Mário Donato, ele e eu.

Era inverno. Numa velha Variant, seguimos os três para a cidade próxima a São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Os funcionários da livraria já estavam à espera. Tudo armado na ampla praça: livros espalhados, mesa para cada autor, canetas a postos. Escureceu. As luzes se acenderam e, ao longe, víamos grupos de trabalhadores correndo para suas casas, para os pontos de ônibus, encolhidos e fugindo do frio. No final, apenas um leitor se aproximou da barraca e adquiriu um volume do autor que se escondia do vento gelado. Era dele: O enterro da cafetina. Depois, o silêncio e a noite de inverno.

Na viagem de volta, rimos muito com a nossa perseverança na literatura. Para ele, no entanto, encontrar apenas um único leitor não era motivo de tristeza. Sabia de tudo: pela vida afora, vendeu mais de cinco milhões de livros. Num país de poucos leitores, ele era rei.

Durante a semana passada, sobretudo no sábado, lembrei muito de Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, falecido em 1º de abril de 1999, aos 74 anos.

-- Minhas veredas são as do asfalto e iluminadas por lâmpadas de mercúrio -- me disse um dia esse autor nascido no bairro do Brás e criado nos Campos Elíseos. -- O meu único contato com a natureza se deu quando freqüentava a extinta African Boate -- brincava.

Vivia de escrever. Com idéias, fez de tudo: propaganda (ajudou a vender, creia, o Gordini), rádio, novelas de TV e muitos livros, sobretudo infanto-juvenis. Conhecia bem São Paulo e viveu intensamente os anos 50 da explosão urbana da cidade. Por isso mesmo, certa vez lhe perguntei qual era um bom roteiro turístico de São Paulo daquela época. Não titubeou:

-- O grande dia era a sexta-feira -- relatou. -- Quando trabalhava na publicidade, só voltava na segunda. O início da badalação era no Scarabocchio, lugar de fim de tarde, onde se reuniam as mais lindas garotas de programa. Nessas saídas, ia com o meu amigo Cláudio Corimbaba, que me inspirou o romance Memórias de um gigolô. Depois, íamos ao Clube de Paris, que também regurgitava de garotas. Então, do Paris, a primeira parada era no Dom Casmurro, um lugar muito elétrico. Tinha ainda programas opcionais: ir ao Arpège, que era uma boate muito chique na Avenida São Luiz. Ficávamos até as duas da manhã e, depois, sempre dava uma passada no Nick Bar. Uma passada, uma passadinha, para ver o que estava acontecendo ali. A seguir, pegávamos as boates de fim de noite. Havia a chamada Chez Moi, na Rua Augusta; outra se chamava Chez Armand, na Rua Rego Freitas. Havia o Pierrot, um bar-boate; e o Refúgio, na Avenida 9 de Julho, freqüentado por mulheres casadas. Era o lugar mais escuro do mundo, o único lugar onde a Light não ganhava dinheiro. Já no sábado, à tarde, era aquela puta dormida. Mas, já escurecendo, a gente se encontrava nos bares da São Luiz, que eram o Mirim, o Plata e o Paribar. Também se ia muito ao Oásis, quando tinha dinheiro, ou ao African Boate, uma casa de luxo. Sempre passava no Clube dos Artistas para sentir a noite. Se tivesse uma garota especial, a levava ao Je Reviens, lá no final da Avenida Paulista.

-- E no domingo? Você não ia remar ou nadar no Tietê? -- perguntei.

-- Não, não ia. Não tinha forças para isso.

Marcos Rey foi um retratista sincero de São Paulo, a cidade que sempre amou. Por sinal, prometera um livro sobre suas memórias, precisamente sobre tipos curiosos que conhecera na noite. Era uma sugestão, me disse, do escritor João Antônio, que lhe escrevera dizendo que não se esquecesse dos chatos, porque eles davam boas histórias. Um deles, por exemplo, era histórico na vida de Marcos Rey.

-- Quando estávamos para sair da boate, às cinco da matina, ele chegava bem vestido, cheirando a sabonete -- recordava. -- Parecia que tinha saído do banho naquele momento. E ia abraçando todo mundo nas mesas e dizendo: Old friend, old night... (Velho amigo, velha noite...). Era cada abraço dolorido, afogava a gente. Durante uns cinco anos encontramos esse cara e nunca descobrimos quem ele era. Até o dia em que ele desapareceu. Aí, começamos a desconfiar que os velhos tempos, os velhos amigos, as velhas noites estavam acabando.

Crônica - Cesar Cruz


Really?
A Ruindade do Mundo

Apoiado no batente da porta, vejo o eletricista arrumar a fiação do meu chuveiro. Gosto de ver especialistas realizando suas tarefas.

— Quem fez essa instalação aqui? — de repente ele pergunta.

— O João — eu digo.

O João é um faz-tudo que presta servicinhos pros moradores lá do prédio, um homem simples que mexe com elétrica, hidráulica, pinturas, rebocos e outras coisas do gênero. Só não chamei o João dessa vez porque não o encontrei; e esse, que agora está aí a trabalhar no meu chuveiro, localizei através de um cartão jogado por debaixo da minha porta.

Assim que ele chegou pra arrumar o chuveiro, aproveitei e pedi um orçamento prévio para o conserto da torneira elétrica e uma geral na máquina de lavar roupas. Tinha, até agora, arrumado um bom cliente.

— Pois o João fez um serviço de preto aqui! — ele responde.

Sinto um choque ao ouvir isso. Um lado meu ainda quer supor que possa ter se tratado meramente do uso de uma expressão infeliz. Devolvo pra checar:

— Mas serviço ruim não tem a ver com a cor do homem, você não acha?

— Ah, tem sim! Preto quando não faz na entrada faz na saída!

Ouço aquilo com mais tristeza do que ira. Ele teve sorte. Se me pega uns 10 anos antes, possivelmente eu o tiraria de cima da escada na base da bordoada e o jogaria porta a fora com um pontapé na bunda. Mas não hoje... Outrora um jovem irascível, agora sou um homem de meia-idade, com um espírito em franco processo de amansamento.

Me ponho a pensar no pobre do João, que calado faz seus bicos pelo bairro há tantos anos sem maldizer ninguém. Penso na minha filhinha, que é preta, assim como eu e a Vanessa, que ficamos todos pretos em casa depois da chegada dela. Penso em todos os meus amigos pretos e nos pretos que não conheço que estão por aí, gente que batalha a vida nesse mundão injusto que é o nosso país. E penso também em Jesus, o carpinteiro que era amigo de brancos, pretos, pobres, ladrões, doentes e prostitutas, e que ensinou que o amor do Pai cobre a todos. O mesmo Jesus que, inexplicavelmente, aparece comunicado no cartão do eletricista.

— Acabei — ele fala, descendo da escada — Vamos combinar os outros serviços do senhor pra semana que vem?

— Mudei de ideia — eu digo simplesmente, dando o dinheiro pra ele e conduzindo-o para a rua.

Que o Homem é uma flor seca, eu já sei. Mas gosto de pensar que, algum dia, a ruindade do mundo vai acabar. E gente desse tipo vai sim arrumar chuveiros.

Lá no inferno.

Crônica - Roniwalter Jatobá

The Missing Tram- Sandra Nunes, 16x22 cm
O Passado Nos Trilhos

Vidas passadas? Vaivém, o assunto chega à tona. Nada contra. O que acho estranho é que, em geral, os adeptos se acreditam reencarnações de homens ou mulheres, sempre famosos.

Nunca fiz a tal terapia de regressão. Para ser sincero, tenho medo. Imagino ter de cara um abalo cerebral e ficar ligado somente no passado, sem a mínima consciência do presente ou do futuro. Numa noite, estava deitado no sofá de casa. Chovia. Silêncio na rua sem movimento de carros. De repente, começo a ter um relaxamento profundo. Tão profundo que penso ser assim o envolvimento da morte. De olhos bem fechados, começo a visualizar cenas confusas, mas que logo começam a tomar formas bem nítidas.

O local lembra São Paulo, que logo descubro nos anos 10, início do século XX. Concentrado na estação da Avenida Celso Garcia, no Brás, sou um trabalhador perdido na multidão, em meio a um movimento de grevistas da antiga Light.

Os bondes estão parados. A Light, ciente da greve, havia tomado todas as precauções possíveis para que o transporte coletivo não fosse interrompido. Para esse fim, conseguiu reter naquela estação dois ou três motorneiros e outros tantos condutores, a fim de fazer sair o carro do correio. Tenta, ainda, o início do tráfego dos bondes do horário, contando para isso com os motorneiros reservas e com o pessoal da manutenção, que conhecem bem o serviço.

Consigo conversar com dois reservas e com o pessoal da manutenção, que disseram não sair com os bondes, como pretendia a gerência da empresa, pois, além de serem solidários com seus companheiros, tinham muito amor à vida.

De longe, ouvi então os chefes do movimento. Já era madrugada. Ocultos pela sombra de uma árvore, na Rua Progresso, observavam o movimento no interior da estação.

Nesse momento, a chuva aperta. À luz dos relâmpagos podia--se ver a disposição daqueles trabalhadores, envoltos em pesadas capas, chapéus desabados e grandes cacetes na mão direita. Quando me aproximo, destaca-se do grupo um rapagão com capa de borracha e portando grossa bengala. Olha firme nos meus olhos e, sem dúvida, me toma por uma pessoa suspeita. Sem dar tempo que eu esboce uma simples palavra, disse bruscamente:

-- Quem é você?

Respondo que sou um simples trabalhador e apenas espero o bonde, o primeiro bonde da manhã.

-- Também apoio a greve – digo mansamente como um amigo. Ele, porém, parece não acreditar, pois me fita de forma estranha. Mostro, então, a caderneta de trabalho, e só então o misterioso personagem fica satisfeito e, me puxando para um lugar mais escuro, disse:

-- Como vê, sou motorneiro; tenho família, porém, antes de tudo está a nossa dignidade ofendida por nossos chefes. Nós somos piores que escravos. Não podemos falar com os companheiros, não podemos fumar, enfim, somos obrigados a uma disciplina maior que a da força pública. O senhor é trabalhador, deve saber os motivos da greve. Só porque fundamos uma sociedade para zelar dos nossos direitos, a companhia agitou-se, houve conferência entre os chefes e, ao primeiro pretexto o nosso presidente e um ou outro companheiro, que eram excelentes empregados, foram demitidos. Já cansados de uma série de humilhações resolvemos, então, declarar a greve pacífica, contando com o apoio de todos os companheiros.

Digo:

-- Se todos os seus companheiros aderiram ao movimento como vai sair um bonde?

-- Posso lhe garantir que nenhum bonde sai daqui. Já tivemos conhecimento de que um único motorneiro quer sair com o carro, mas não sairá. Garanto.

Na verdade, as coisas estavam dispostas de tal forma que seria imprudência, de consequências fatais, se saísse um bonde...

-- Olhe, só aqui nesta rua eu tenho à minha disposição cerca de cem pessoas... Quer vê-las? -- e colocou dois dedos na boca, dando um assobio estridente.

De repente, como por encanto, aparece na minha frente um batalhão de grevistas.

-- Vê: estão todos armados – me diz o líder. -- Queremos, porém, a paz e só em último caso é que faremos valer os nossos direitos. O que motivou a greve foram algumas ordens colocadas em vigor pela Light, com relação a nós.

Os olhos dele brilhavam na esquina escurecida. Na verdade, eu estava bastante assustado. Afinal, esperava ali apenas o primeiro bonde, o primeiro carro da manhã. O homem continua:

-- São ordens vexatórias – e gesticula com um papel na mão. – Veja e mostre no seu local de trabalho – e me deu uma folha impressa, na qual constava que “todo empregado que for apanhado em conversação na plataforma do bonde será severamente punido, não havendo desculpa de qualidade alguma”.

Neste momento, chega à estação um automóvel. Trazia mister Ford, superintendente da Light, e mais outros empregados da categoria. Em todas as ruas das proximidades, viam-se grupos de motorneiros. Em frente à estação, no interior do Café Intendência, havia um grande movimento. Ouvia-se de vez em quando:

-- Viva a greve!

Quatro bondes, porém, estavam sendo limpos e engraxados pelo pessoal de serviço interno, a fim de saírem para o serviço. Do interior da estação, chegava a voz de mister Ford que insistia com um motorneiro para que saísse com o carro do correio.

O trabalhador, porém, respondia:

-- Não, doutor, tenha paciência. Eu tenho família...

Eram três horas da manhã.

A chuva passara. Na esquina da Rua Progresso estacionou o grupo de grevistas. Naquela hora, havia ali, somente, um sargento e duas praças da guarda cívica. Logo depois, chegaram dois agentes acompanhados de um alferes da guarda cívica e do terceiro subdelegado do Brás.

Dois deles se dirigiram ao grupo e pediram que se dispersasse. Só um grevista não atendeu e o alferes lhe deu voz de prisão. Foi o bastante para que os ânimos se exaltassem, e uma cacetada foi vibrada nas costas do militar.

O alferes sacou da sua espada e avançou resolutamente para os grevistas, juntamente com o subdelegado e um agente. Foram, então, recebidos com uma verdadeira descarga, disparando-se mais de cem tiros de revólver.

A cena foi rápida, pois os grevistas, após o tiroteio, fugiram. O alferes recebeu uma bala na mão direita, além de diversas cacetadas, inclusive uma que lhe produziu um ferimento no sobrolho direito. Um guarda da quinta companhia de guarda cívica, também recebeu uma bala na perna direita. Na ocasião foram presos dois motorneiros, recolhidos ao xadrez do Brás.

Avisada, a polícia central chegou ao local pouco tempo depois, principiando a dispersar os grevistas, que, favorecidos pela chuva e pela escuridão, continuam a fazer tropelias.

Finalmente, às 4 horas da manhã, saía o bonde do correio. Levava dois soldados de armas embaladas e era acompanhado por um soldado de cavalaria. A esse bonde nada sucedeu, pois os grevistas consentiram com a sua saída. Logo, chegaram mais 80 praças de cavalaria sob o comando de um sargento.

Animado com isso, um motorneiro fura-greve, que todos chamavam de Torero, aventurou-se a sair com um bonde, levando um condutor. Ao chegar à Rua Bresser, um numeroso grupo de grevistas atacou o bonde, tirando a alavanca e fazendo-o parar. Torero levou algumas cacetadas, ficando com um corte na cabeça e ferido no braço esquerdo. Ao condutor nada aconteceu, porque fugiu assim que viu o movimento.

Nisso, interveio a cavalaria com novo tiroteio. Ao meu lado, um motorneiro recebeu um ferimento na mão esquerda. Acredito que naquela hora havia outros gravemente feridos, pois após o tiroteio tinham armas espalhadas no chão: uma na Rua Progresso, junto à soleira da porta de uma casa, com três cápsulas detonadas, e outra, no quintal de um armazém da Rua Bresser, porém com as cinco cápsulas intactas.

A madrugada paulistana ainda iria ser palco de memoráveis acontecimentos... Na Rua Progresso vejo armas de fogo espalhadas pelo calçamento. Mais adiante, um grupo de grevistas corre e se esconde em esquinas nubladas de garoa. Guardas atiram na escuridão. Em seguida, chega mais um reforço de dez praças da guarda cívica. Junto à estação da Alameda Glette, um alferes conferencia com alguns motorneiros, que declararam guiar os bondes, se tivessem garantias.

-- Vamos, saiam logo – grita o militar. – Vamos, rápido.

O dia clareava. Um veículo, protegido por quatro guardas armados, sai da estação sob o comando do motorneiro Francisco Cilento. Na portaria, os grevistas, nessa hora amedrontados com a carga que a cavalaria fizera sobre eles, deixaram o bonde sair.

Ouvi, ao longe, o disparo de três tiros de revólver. Um carro de carga, que passava pela Avenida Rangel Pestana, foi assaltado nas proximidades de um posto policial. Caído ao chão, com uma mancha de sangue na camisa bege, um grevista grita:

-- Socorro! Socorro, vou morrer.

Os bondes, em número muito limitado, começaram a correr pelos trilhos ao lado da estação da Alameda Glette. O conflito amainava. Os grevistas mais exaltados sumiam na sombra de ruas mal iluminadas. Sem maiores problemas, os bondes já transitavam pela Avenida Rangel Pestana.

Na tentativa de minar o movimento grevista, a Light havia impedido a saída do pessoal que recolhia os bondes e fechava o turno.

-- Quem for embora está despedido – alertava o superintendente, mister Ford.

Ao amanhecer, havia na estação da Alameda Glette trabalhador suficiente para colocar todos os bondes em movimento. O pessoal exausto, que passara a noite longe de casa, estava a postos. Às escondidas, eles elogiavam os companheiros que resistiram na estação do Brás, mas se sentiam tristes por serem obrigados a logo iniciar o trabalho nas diferentes linhas da cidade.

Às seis da manhã, saiu o primeiro carro, o da Liberdade, e depois outro, o do Correio. Quando deixaram a estação, porém, um grupo de grevistas se colocou à frente dos veículos. Um praça mirou o revólver em direção à perna do líder.

-- Se subir, atiro sem dó nem piedade – ameaçou.

Os homens, armados apenas de paus, correram para a esquina e não ousaram mais enfrentar os policiais. Assim, seguidamente, com irregularidade de horários, saíram outros veículos, todos guardados por força armada.

Cada vez mais longe, ouvia os gritos dos ativistas:

-- Viva a greve!

O movimento chegava ao fim. Mas, aumentava o descontentamento entre os empregados. Confirmava isso os comentários que faziam, mesmo aqueles que não aderiram à greve. Queixavam-se da situação em que viviam, muitas vezes obrigados a trabalhar horas excessivas para não sofrerem a perda do emprego.

-- Só vejo exploração – diz um condutor parado em frente à plataforma do bonde 183. -- Veja se tem cabimento: somos até obrigados a fazer uniformes em determinado alfaiate que goza de favores da companhia.

Às oito da manhã, a greve termina. Logo a seguir, saíram os bondes 243 e 63, mas não eram os números que passavam ao lado da metalúrgica onde trabalho. Logo, pego o bonde para a Ponte Grande, o primeiro da manhã para o meu destino.

Crônica - Roniwalter Jatobá

Romeo and Juliet (Act IV, scene V)
by John Opie

Pensão Beira-Rio

Leio no jornal trágica notícia. No interior de São Paulo, um casal de jovens, depois de três meses de namoro, matou-se. A infeliz história amorosa chocou a cidade.

Na minha infância, presenciei certa vez o drama de Romeu e Julieta em novo cenário.

1959: cidade mineira de Jampruca, futuro município de Campanário, ao lado da Rio-Bahia, ainda sem asfalto. Passava do meio-dia. O boato começou na Rua do Comércio e logo chegou à casa onde eu morava.

-- Um casal, você soube?, morreu agorinha mesmo num quarto da pensão Beira-Rio -- ouvi a vizinha confidenciar à mãe na beirada da cerca de madeira que dividia os quintais das casas.

A pensão Beira-Rio ficava num velho casarão pintado de azul. Era uma humilde hospedaria de beira de estrada, com fundos para o rio Itambacuri.

Ofegante, entro de mansinho no meio da multidão que tomava a calçada. Afoito, tento chegar o mais perto possível do local da tragédia entre as pernas de adultos. De repente, tropeço em um pé calçado com uma longa bota de couro preto e suja de estrume.

Era pai. Ele segurou com força em meus braços e lançou um olhar reprovador:

-- Já pra casa -- disse ele. -- Isso não é coisa pra menino.

Volto com raiva empurrando a multidão. Em casa, relato tudo a mãe. Cheio de imaginação, digo que vi um homem e uma mulher, deitados e nus na cama de colchão de palha.

-- Deixa de lorotas -- mãe disse. -- Seu pai tem razão. Isso não é coisa pra menino.

Já à tardinha, pai volta da rua. Depois da janta, ouço sua voz segredar à mãe os acontecimentos da tarde. Os dois amantes eram moradores de cidade próxima. A família era contra o casamento. Os dois resolveram fugir para bem longe. Os parentes foram em busca, em perseguição. Acuados na pensão, resolveram fazer um pacto de morte. De comum acordo, tomaram formicida Tatu.

-- Sabe esse produto que uso para matar ratos e formigas? -- explicou pai.

Por muito tempo, sonhei com o casal entrelaçado, ao lado do rio Itambacuri, sobre a cama da pensão na beira da estrada Rio-Bahia.

Crônica - Cesar Cruz

Photo-manipulation by Eduardo Miranda
over painting by Bill Sharp
A Cadeira Cor-de-Rosa

Depois do almoço, passeando a pé pelas imediações do escritório, passei em frente a uma loja de móveis para escritório, dessas estreitas em que os móveis ficam empilhados uns sobre os outros. Quase posta na calçada como mostruário, vejo uma bela cadeira giratória de assento de couro, estilo simples e honesto. Apalpei, girei e concluí: forte e confortável. E eu ando mesmo precisando de uma boa cadeira pra substituir esta lástima que agora me encontro sentado, que comprei num brechó, quase de graça, num momento da mais pura escassidão de recursos financeiros. Além de ranger e ser toda desconjuntada, traz escondida por debaixo da espuma magra uma saliência pontuda que me espeta a nádega direita, o que tem me deixado ultimamente com as crônicas tortas.

“Alguém pode me dizer o preço dessa cadeira?” – gritei, com a cara metida pra dentro da loja escura.

Lá do fundo um vendedor se levantou da sombra e veio vindo, moroso.

“Cento e cinquenta reais” – ele resmungou, chupando o dente do almoço.

“Ah, obrigado” – eu disse, já saindo.

“Mas se for essa aí mesmo do mostruário te faço a setenta”

Parei e me voltei pra ele.

“Setenta me interessa. Mas queria em outra cor...”

“Por setenta só essa peça mesmo, meu chapa”

“Mas é que essa é cor-de-rosa...”

“É o que temos nessas condições. Aproveita o preço! Te faço em três vezes no cartão”

“Não dá, cara”

“Por que não dá?”

“É que fica complicado colocar uma cadeira cor-de-rosa lá no meu escritório de casa, que é todo no estilo sóbrio”

“E que que tem?”

“Tem que as pessoas vão achar que além de careca agora dei pra veado”

“Será?”

“Claro que sim! Pensa comigo: se eu simplesmente puser a cadeira lá e não disser nada, no estilo tudo-muito-natural, as pessoas vão achar que uma cadeira assim, brutalmente cor-de-rosa, só pode ter um propósito: o de transmitir uma sutil mensagem das minhas preferências sexuais secretas para eventuais interessados. Sacou?”

“Huum... – ele pareceu pensar, chupando agora o dente do outro lado”

“Porém, se eu tentar o caminho da verdade, explicando que havia uma certa promoção exclusiva pra cadeiras cor-de-rosa, vão sair de casa cochichando e espalhando por aí que sou um desses caras que querem esconder o óbvio ululante, como diria o Nelson Rodrigues, e que além de não aceitar a própria homossexualidade, ainda fica tentando iludir os outros”

Deixei o vendedor pensativo na penumbra da loja e fui-me, caminhando pela rua, travando uma luta interna contra o irremediável corderrosismo daquela beleza de cadeira que pedia para ser comprada.

Mas como levá-la para casa sem perder a dignidade, a boa reputação, o respeito dos amigos, da sociedade?

De repente me veio uma ideia que me pareceu ótima: escrevo uma crônica engraçadinha relatando todas as minhas dúvidas diante da cadeira cor-de-rosa, depois envio pra coluna do jornal. Quando for publicada, recorto, mando pôr num quadrinho bacana e coloco na parede bem do lado da cadeira. Simples!

Dali em diante, sempre que um incauto chegar em casa e direcionar olhos condenativos para minha cadeira cor-de-rosa, depois pra minha cara, direi: “Meu caro, não se apresse nos pré-julgamentos, antes leia esta crônica aqui, ó!”.

Feliz com meu próprio brilhantismo fiz meia volta em direção à loja.

Então meus pensamentos foram adiante e passei a imaginar o dia em que haveria uma festa lá em casa, com um monte de gente que eu não conheceria misturada aos meus amigos, todos bebendo, inclusive eu, e as sensibilidades à flor da pele dado o álcool e a música, e num súbito eu juraria ter ouvido um sujeito dizer ao outro que “o dono dessa casa deve ser bicha, veja essa cadeira cor-de-rosa!”, e eu me achegaria à roda, sangue fervendo, e diria, copo na mão, “o dono da casa sou eu, algum problema?”, e diante de uma risada de escárnio do elemento, que olharia pra minha cadeira e pra minha cara, e, em um breve instante, do qual eu me arrependeria pelo resto da vida, o copo da minha mão se quebraria na borda da mesa e as paredes brancas e a própria cadeira cor-de-rosa seriam manchadas com espirros de um líquido rubro-negro, grosso. Mais tarde, diante de um júri popular, eu ouviria minha própria voz de homem banal que cometeu um grave erro a lamentar o irremediável; agora, mero espectador de mim mesmo, só me restaria contar os anos que me separariam de novo da luz do sol, da minha mulher e filha, toda uma vida desperdiçada graças à cabeça perdida numa repentina explosão de ira, vã, desatinada, a mesma ira incontrolável que já mudou o destino de tanto homem justo e bom na história da humanidade. E, mais tarde, numa cela imunda e lotada, eu escolheria morrer a um dia ter passado defronte àquela maldita loja com a cadeira cor-de-rosa exposta na calçada.

Melhor aguardar a cadeira azul marinho entrar na promoção.

Crônica - Roniwalter Jatobá

Painting Of Boy With Slingshot - Alice Wellinger

Abril de Antigamente

Com as proximidades da Semana Santa, no final de março, um sentimento de contrição me traz à memória muita maldade que cometi na vida. Qual menino criado na roça que nunca fez? Quando criança em Campo Formoso, no interior baiano, tinha dois prazeres. Um deles, cultural: ir às matinês do Cine Teatro Santo Antônio, em Campo Formoso. O outro era fazer judiação em bichos de todo tipo.

Gatos, por exemplo. De índole arredia, os felinos fugiam da minha presença como o diabo da cruz. Para encurtar conversa, a traquinagem menos cruel era amarrar bombinha de São João em suas caudas e rolar de rir quando, cheios de miados, desciam a ladeira de casa em desabalada carreira.

No final do ano, imagine quem pedia à mãe para dar cachaça ao peru que ia fartar nossa fome na festiva ceia natalina? Dona Maria explicava que era para a ave ficar relaxada e, naturalmente, deixar a carne mais macia pós-morte. Ora, a gente sabia disso, mas o principal era ver o bicho ficando pouco a pouco embriagado, pernas trôpegas, desequilibrando-se no quintal de chão, tal roceiro bêbado no fim de feira.

Era um bom caçador. Certeiro no estilingue, não perdoava de bem-te-vi a beija-flor. Respeitava apenas urubus, pois os mais velhos diziam que o matador carregava para sempre sete anos de azar.

Nessa época, era um levado menino de doze anos. Depois da escola, passava o resto do dia de bodoque na mão para caçar passarinhos. Numa manhã de Sexta-feira da Paixão, caminhava sozinho pela casa vazia triste e silenciosa. De repente, encontro minha irmã mais velha que voltava da igreja.

-- Vá rezar, menino -- ela disse.

-- Por quê?

-- Hoje é Sexta-feira da Paixão.

-- Mas eu quero brincar...

-- Brincar é pecado.

Tudo era pecado na Sexta-feira da Paixão, em minha casa. Na cozinha, o fogo morto. O peixe, o feijão, o arroz, tudo cozido em óleo de coco e feito na véspera. Na sala e no banheiro, panos negros cobriam os espelhos.

Caminho, então, em direção ao quintal, pensando. Devia ser por isso que os amigos estavam em casa. Só raras pessoas passavam na rua. Ali concluí que passear um pouco não poderia ser pecado. O pequeno rio Aipim, com seus contornos em corredeiras, me esperava lá embaixo.

Silêncio nas margens, apenas o rumo das águas velozes. Súbito, uma revoada de tizius desce do morro do cemitério e sobrevoa os campos de capins da beirada do rio.

Conhece um tiziu? É um pássaro miudinho. Tem 10 cm de comprimento, vive em várias regiões do Brasil. O macho é preto-azulado e a fêmea, pardo-olivácea, com listras amarelas no dorso e asas. Ao emitir seu canto (ti-ziu), tem o hábito de dar um salto para cima, de aproximadamente um metro de altura, retornando ao lugar onde está pousado.

-- Ti-ziu.

Um deles, a uns três metros de distância, balançou-se numa haste de capim. Sem pensar muito, coloquei uma pedra redonda no estilingue. Fiz pontaria, mas lembrei que era Sexta-feira da Paixão.

-- Xô, passarinho -- gritei.

-- Ti-ziu -- foi a resposta.

Gritei mais alto, bati os pés no chão e agitei os braços. Nada.

-- Xô. Vá embora

Novamente, ele deu o seu salto e ficou parado na mesma haste de capim. Então, pensei em jogar apenas uma pedrinha para espantá-lo dali. Preparei o estilingue e mirei o pé da haste de capim, dois palmos abaixo do tiziu.

Deu tudo errado. O coitadinho tombou, soltando três ou quatro penas, que ficaram suspensas no ar.

Fiquei petrificado, o coração batia forte, o medo. Olhei para o céu esperando a ira divina, mas lá só havia um amplo azul com nuvens brancas.

Em todo caso, por via das dúvidas, tratei de ocultar, sob folhas arrancadas às pressas, o pequeno cadáver.

Nesta próxima Sexta-feira da Paixão, no suave silêncio da minha rua, sei que vou pensar em duas mortes: a de Jesus Cristo, quase dois mil anos atrás, e a do inocente tiziu, há anos marcado no fundo na minha memória.

Confesso ainda mais: quando vejo a alegria dos pássaros em São Paulo, me arrependo dos pequenos crimes cometidos, mas creio que o tempo perdoa pequenas loucuras da infância. Quase todas, talvez. Afinal, era abril, abril de antigamente.

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog