Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
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Ano VI Número 63 - Março 2014

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TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 12 - Dezembro 2009

Memória - Roniwalter Jatobá

Poeta Maior

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi a grande voz fraterna da poesia brasileira no século 20


"Nenhum outro poeta moderno provocou discussões tão apaixonadas, seja de admiradores que lhe interpretam de maneiras diferentes a poesia, seja dos conservadores que o escolheram como alvo de ataques. Discussões que não passam de sintomas da forte influência exercida pela originalidade e personalidade do poeta, hoje geralmente reconhecido como o maior do Brasil".

Assim o renomado crítico Otto Maria Carpeaux referiu-se a Carlos Drummond de Andrade. Nascido em ltabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, Drummond fez os estudos secundários em Belo Horizonte, num colégio interno, onde permaneceu até que um período de doença levou-o de novo para Itabira. Voltou para outro internato, desta vez em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Pouco ficaria nessa escola: acusado de "insubordinação mental", foi expulso.

Em 1925, casa-se com Dolores Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Sem algum interesse pela profissão de farmacêutico, leciona português e geografia no Ginásio Sul¬-Americano de Itabira. Nessa época, já redator do Diário de Minas, mantém contato com os modernistas de São Paulo, sobretudo com o escritor e poeta Mário de Andrade.

O ano de 1928 foi positivo na vida de Drummond. Nasce a filha Maria Julieta e o poeta "escandaliza" os arraiais literários quando a Revista Antropofagia, de São Paulo, publica seu poema "No Meio do Caminho". Em 1930, o poeta lança sua primeira obra, Alguma Poesia, sob um selo imaginário chamado Edições Pindorama, numa edição de 500 exemplares. Com a revolução de outubro, liderada por Getúlio Vargas, o já funcionário público é chamado a exercer as funções de auxiliar-de-gabinete da Secretaria do Interior de Minas e, posteriormente, a de oficial-de¬-gabinete de seu amigo Gustavo Capanema, na mesma pasta.

Em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe-de¬gabinete de Gustavo Capanema, então ministro da Educação, até 1945. Nesse período, Drummond conseguiu conciliar o trabalho com Capanema em plena ditadura do Estado Novo (1937-1945) e, ao mesmo tempo, usar seus poemas para “destruir” o capitalismo e ser simpatizante do então clandestino Partido Comunista. Por sinal, em 1945, foi convidado por Luís Carlos Prestes para ser co-editor do diário comunista Tribuna Popular, mas fica ali por pouco meses, indo trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Aposentou-se em 1962. Encerra suas atividades burocrá¬ticas, mas prosseguem as literárias e as do intelectual-jornalista. A aposentadoria traz para o poeta e para o cronista a ocasião de se recolher à sala de trabalho de seu apartamento no Rio, de onde continua a observar e analisar o mundo. Desde 1954 colabora como cronista no jornal Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

Em mais de 60 anos de atividade intelectual, publicou mais de 50 livros, entre poesia, conto e crônica, e várias obras foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco e outras línguas. Por outro lado, traduziu fundamentais autores estrangeiros: Balzac (Os camponeses), Choderlos de Laclos (As relações perigosas), Marcel Proust (A fugitiva), García Lorca (Dona Rosita, a solteira), François Mauriac (Uma gota de veneno) e Molière (Artimanhas de Scapino).

Ao longo de sua vida, Drummond recebeu diversos prêmios por sua obra, destacando-se o Estácio de Sá (jornalismo), o Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, o Morgado Mateus (Portugal - poesia) e o Padre Ventura do Círculo Independente de Críticos Teatrais. Em 1987, a escola de samba Estação Primeira de Mangueira o homenageia com o samba-enredo "O reino das palavras" e é campeã do carnaval carioca.

Neste mesmo ano de 1987, a 5 de agosto, morre sua amiga, confidente e filha Maria Julieta. Desolado, Drummond pede a sua cardiologista que lhe receite um "infarto fulminante". Apenas doze dias depois, em 17 de agosto, Drummond morre numa clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro, de mãos dadas com Lygia Fernandes, sua namorada com quem manteve um romance paralelo ao casamento e que durou 35 anos.

Sobre ser poeta, Drummond dizia: "Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo".

Uma das boas definições do poeta e de sua poesia me foi passada há algum tempo, via e-mail, por Ruy Espinheira Filho, também poeta e professor de literatura na Universidade Federal da Bahia: "Drummond foi quem melhor aproveitou as grandes lições do modernismo. Aluno de Mário de Andrade (principalmente) e Manuel Bandeira, levou ao máximo tais lições. Um dos pontos altos de Drummond (além de sua altíssima poesia) foi a grande lição de esperança que ele nos passou ¬sobretudo a partir dos poemas que refletiam a situação mundial, a grande ameaça do nazi-fascismo. Lição de esperança que nos ajudou muito, também, durante todos os anos de ditadura militar. Assim, Drummond foi a grande voz fraterna da poesia brasileira no século 20".

Drummond por Drummond

"Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia, relutei a principio, por me parecer que esse trabalho seria antes de tudo manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizesse, e não outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido a vida. Segundo, por que, praticando aparentemente um ato de vaidade, no fundo castigo meu orgulho, contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa, com que o redator da revista quisesse, sincero ou não gratificar-me.

Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de 1902, filho de pais burgueses, que me criaram no temor de Deus. Ao sair do grupo escolar, tomei parte da guerra européia (pesa-me dizê-lo) ao lado dos alemães. Quando o primeiro navio mercante brasileiro foi torpedeado, tive que retirar a minha posição. A esse tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida passagem pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em Friburgo, com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudades da família, e todos os outros bons sentimentos, mas expulsaram-me por 'insubordinação mental'. O bom reitor que me fulminou com essa sentença condenatória morreu, alguns anos depois, num desastre de bonde na rua São Clemente. A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda minha vida. Perdi a Fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz amigos inesquecíveis.

Casado, fui lecionar geografia no interior. Voltei a Belo Horizonte, como redator de jornais oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-me para a burocracia, de que tenho tirado o meu sustento. De repente, a vida começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros, mas apareciam novos. Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo. Já em Brejo das Almas (1934), alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado, mas há também uma consciência crescente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do Mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta.

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista... Mas iríamos longe nesta conversa.

Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

TUDA - pap.el el.etrônico

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Ano I Número 11 - Novembro 2009

Memória - Roniwalter Jatobá

Uma Obra-Prima

O livro de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos, publicado há 107 anos, deveria ser lido por todos aqueles que desejam conhecer o Brasil hoje
"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados”.

Assim termina o livro Os Sertões*, de Euclides da Cunha, uma obra-prima da literatura brasileira, no qual se conta em detalhes a situação do sertão nordestino no final do século 19, um lugar abandonado pelas leis e vivendo sob o jugo dos latifundiários e os horrores da chamada Guerra de Canudos. Lançado em dezembro de 1902, há precisamente 107 anos, numa edição com apenas mil exemplares, é uma narrativa de difícil leitura, mas deveria ser lida por todos aqueles que desejam conhecer o Brasil de ontem e de hoje.

Enfrentei o livro, primeira vez, ainda adolescente. Na época, era quase obrigatório entre os colegiais de Campo Formoso, no sertão baiano. Pudera: a escola ficava a menos de 80 quilômetros do arraial de Canudos, onde se desenrola todo o enredo do livro, ou seja, o cerco movido entre 1896 e 1897 pelo Exército brasileiro contra um reduto de fanáticos religiosos, seguidores do beato Antônio Conselheiro.

Todos os anos volto novamente às suas páginas. Já afirmava o escritor e cartunista Millôr Fernandes que Os Sertões é um livro que todo o mundo deveria ser obrigado a ler aos dezesseis anos -- para relê-lo e apreciá-lo só depois dos trinta. "Criticar esse trabalho não é mais possível", dizia o crítico Araripe Júnior, já em 1903. "A emoção por ele produzida neutraliza a função crítica".

Os Sertões está dividido em três partes: "A Terra", "O Homem" e "A Luta". Na primeira parte, o autor faz um minucioso estudo geofísico do Nordeste, especialmente do sertão da Bahia.

Na segunda, analisa em pormenores o tipo humano da região e, em especial, o líder Antônio Conselheiro. Já na terceira e última parte, Euclides da Cunha narra a luta desigual entre as quatro expedições militares e os homens do Conselheiro.

Calcula-se que o Exército brasileiro tenha perdido algo em torno de cinco mil homens. Não se sabe ao certo quantas foram as baixas civis, mas a população do arraial de Canudos foi trucidada: mais de vinte mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças. De acordo com o jornalista Ênio Squeff, "nem na Guerra do Paraguai, em nosso maior conflito contra um inimigo externo, o Brasil contou tantas mortes como em Canudos".

Um repórter no sertão

Desde julho de 1896, o governo de Prudente de Moraes (1894-1898) tentava sufocar o movimento deflagrado em Canudos. No vilarejo do sertão baiano, encravado às margens do rio Vaza-Barris, o messiânico Antônio Conselheiro exortava o povo a resistir à República e, com o auxílio dos povoados vizinhos, enfrentava as tropas do Exército à base de emboscadas e a força mística de pregações religiosas.

Em 1º de setembro de 1897, o engenheiro e repórter Euclides da Cunha salta na estação de trem de Queimadas, para entrar na caatinga e relatar os crimes praticados no interior baiano. Deixa a cidade três dias depois e chega a Monte Santo. Descreve em seu diário de guerra o calvário de Monte Santo e parte então para Canudos. Em 16 de setembro, já está no palco da guerra.

Os soldados traziam metralhadoras, granadas e canhões. Embora poderosamente armados e em número várias vezes superiores aos revoltosos, perdiam todas as batalhas. A resistência do sertanejo assombrava o país e a derrota de Canudos tornou-se, para o Exército e para a República, uma questão de honra nacional. Antes de chegar a Canudos, Euclides pensava em defender o regime republicano contra um levante bárbaro e monarquista, mas caberia ao autor questionar a República que se formava e ser um dos maiores críticos do Exército brasileiro.

Com o massacre dos seguidores de Antonio Conselheiro e o fim da guerra, Euclides volta ao Rio de Janeiro. Publica no Estado de S. Paulo, em 19 de janeiro 1898, as primeiras amostras de sua futura obra, no artigo "Excerto de um livro inédito". Muda-se para São José do Rio Pardo, no interior paulista, para reconstruir uma ponte sobre o rio Pardo. No galpão de zinco instalado junto ao rio, onde estudava as plantas da ponte e fazia cálculos, começa a redigir Os Sertões.

Certa vez um jornalista perguntou a Jorge Luís Borges qual a sua opinião sobre Euclides da Cunha. Polêmico e erudito, o escritor foi convencional. Disse que se tratava de um importante autor, responsável por Os Sertões, um dos melhores livros da literatura luso-brasileira. Na mesma entrevista, também foi questionado a respeito das dificuldades de leitura da obra, mesmo para os brasileiros. Borges então, como um bom argentino, não perderia a oportunidade de fustigar os brasileiros. Afirmou que no Brasil não se gostava de muitas coisas, o que não diminuía a importância das coisas.

Porque Ler Os Sertões Hoje
“Enquanto não caducar a guerra dos ricos contra os pobres, que parece eternizar-se, Os Sertões manterá sua atualidade”.
Walnice Nogueira Galvão, escritora

“Sigo a reputando como uma das obras-primas que já foram feitas no continente, um livro fundamental para entender o que é e o que não é a América Latina, um manual não superado sobre nossos erros".
Mário Vargas Llosa, escritor


Os Sertões, verdadeiro monumento de nossas letras, capital para a compreensão da mentalidade sertaneja... Neste livro as durezas e desconformidades da linguagem são esquecidas na extraordinária força pitoresca e dramática da narrativa".
Manuel Bandeira, poeta


“Eu tinha que ler Os Sertões se queria ser um escritor brasileiro. Meti isso na cabeça e entreguei¬-me à tarefa obrigatória. No início foi penoso, mas, bravamente, atravessei as áridas páginas da primeira parte, 'A Terra', e passei ao capítulo seguinte, de travessia igualmente difícil, pelo menos até chegar aos tipos humanos ¬-- o sertanejo, o vaqueiro, o jagunço... Meu interesse era conhecer a história de Antônio Conselheiro, que se tornara lendária, tema dos cordéis da infância. E, quando a ela cheguei, não larguei mais o livro até a última página do derradeiro capítulo".
Ferreira Gullar, poeta


“As páginas de Euclides rodaram voz, ensinando-nos o vaqueiro, sua estampa intensa, seu código e currículo, sua humanidade, sua história rude. E tinha conteúdo e direção o que Euclides comunicava em seus superlativos sinceros, na qualidade que melhor lhe cabia dar, nesta nossa largueza descentrada, de extremas misturas humanas, numa incomedida terra de sol e cipós".
Guimarães Rosa, escritor


“O livro, por tantos títulos notáveis do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto os aspectos da natureza, como ao contato do homem, e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, das secas que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a Campanha de Canudos".
José Veríssimo, crítico

Quem Foi Euclides Da Cunha

Nasceu em 20 de janeiro de 1866, na fazenda Saudade, no município de Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro, onde viveu só até os três anos. Com essa idade perdeu a mãe. Até os vinte anos, morou em casa de parentes no Rio, São Paulo e Bahia. Por isso mesmo, seus primeiros estudos foram feitos em várias escolas, só vindo a se fixar em 1886, na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio. Mas por pouco tempo: dois anos depois foi expulso por um ato de protesto contra o então ministro da Guerra do governo monarquista.

Durante o tempo em que ficou fora da escola começou a estudar engenharia, retornando ao Exército em 1889, depois da proclamação da República. Logo foi promovido a tenente e casou¬-se com a filha do general Sólon Ribeiro, oficial republicano. Antes de terminar o curso na Escola de Guerra, em 1891, já colaborava em jornais como a Gazeta de Notícias e O Estado de S. Paulo. Em 1896, deixa o Exército para dedicar-se à engenharia civil. No ano seguinte, escreveu dois artigos sobre a campanha de Canudos. Aí, recebeu o convite de O Estado de S.Paulo para ser correspondente de guerra no local. Partiu então para o sertão baiano, de onde, durante os meses de setembro e outubro, enviou reportagens sobre o conflito.

Os Sertões só saiu cinco anos depois de seu regresso de Canudos. A obra deixou o país estarrecido. Após sua leitura se tomava conhecimento de que a luta de Canudos, considerada uma batalha heróica para a salvação da República, era um crime. Mostrou que ela não foi apenas um acontecimento local, mas um grito de revolta de todo o sertão brasileiro.

O livro abriu as portas para a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico. Nomeado chefe da comissão de reconhecimento do Alto Purus, Euclides viajou à Amazônia, retornando em 1905 ao Rio, onde trabalhou algum tempo com o barão de Rio Branco, no Itamaraty. Escreveu dois livros de ensaios: Contrastes e Confrontos, de 1907, À Margem da História, de 1909, e um relatório técnico, Peru versus Bolívia, de 1907.

Aos 42 anos, em 15 de agosto de 1909, morreu assassinado pelo jovem tenente Dilermando Reis, amante de sua mulher, ao enfrentá-lo a tiros no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro.

Brasil, Datas De Fim De Século

1888 - É abolida a escravidão no Brasil
1889 - É proclamada a República. Início do governo do marechal Deodoro da Fonseca
1891 - Início do governo do marechal Floriano Peixoto
1894 - Governo de Prudente de Moraes, primeiro civil a assumir a presidência da República
1896/97 - Guerra de Canudos
1900 - 3° Censo: a população do país é de 17.318.556 de pessoas.

* Serviço: baixe daqui sua cópia de Os Sertões.

TUDA - pap.el el.etrônico

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Ano I Número 10 - Outubro 2009

Memória - Roniwalter Jatobá

Mestre Graça

Há 117 anos nascia Graciliano Ramos, um autor em que a beleza estética da obra e a pureza moral do homem constituem um monumento perene em nossa cultura
Em 27 de outubro de 1892, há 117 anos, nascia Graciliano Ramos em Quebrangulo, Alagoas. Velho Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam carinhosamente, é um dos mais importantes escritores da moderna prosa brasileira. Era o mais velho dos 15 filhos de um casal sertanejo de classe média. "Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos”, lembrou o escritor anos mais tarde. “Ali a seca matou o gado — e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro Vaqueiro e de José Baía. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Ignácio, Filipe Benício, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Marocas, minha professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei anos depois".

Graciliano fez os estudos secundários em Maceió, capital alagoana, mas não cursou nenhuma faculdade. Em 1910, foi morar em Palmeira dos Índios, onde seu pai era comerciante. Em 1914, após uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor, voltou à cidadezinha. A partir daí, começou a vida política e jornalística. Foi prefeito do município entre 1928 e 1930 e ali escreveu seu primeiro romance, Caetés.

De 1930 a 1936, morou em Maceió, onde era responsável pela direção da Imprensa e Instrução do Estado. Foi nesse período que produziu os romances São Bernardo e Angústia. O primeiro é marcado pelo sentimento de propriedade que move seu personagem principal, Paulo Honório, cuja obstinação é tornar-se fazendeiro. Depois de alcançar seu objetivo, Paulo propõe-se a escrever um livro, narrando sua experiência, e, por outro lado, não consegue encontrar uma justificativa para o desmoronamento de seu casamento com Madalena, que se mata. Já em Angústia conta-se a história de Luís da Silva, que é fruto de uma sociedade rural em decadência e carrega consigo nojo pelos outros e por si mesmo. Tímido, aproxima-se de sua vizinha, Marina, e pede-a em casamento. No entanto, surge Julião Tavares, o oposto de Luís da Silva, rico e ousado. Resultado: Marina é seduzida por Julião e Luís estrangula o rival. De acordo com os críticos, o clima de opressão do romance e o drama vivido por Luís da Silva fazem do romance um estudo sobre a frustração.

Em 1936, devido a suas posições políticas contrárias ao governo de Getúlio Vargas, Graciliano foi preso e deportado para o Rio de Janeiro. O escritor narra essa experiência no seu livro testemunho: “Memórias do Cárcere”. Solto, permaneceu no Rio, onde continuou o seu trabalho literário. Em 1938, escreveu sua obra-prima, Vidas Secas, onde se narra a história de uma família e sua cachorra Baleia perambulando pelo sertão nordestino, numa tentativa de fugir da miséria da caatinga tórrida e agreste.

No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Graciliano Ramos já era considerado um dos maiores romancistas brasileiros. Nesse mesmo ano, ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Segundo o escritor e professor Dênis de Moraes, Graciliano fez parte de uma geração de intelectuais que, após a derrocada do Estado Novo, mergulhou de corpo e alma na militância política, muitos deles filiando-se ao PC. A idéia de que, com a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o mundo poderia ser repensado em bases mais igualitárias passou a identificar-se com as propostas socialistas. A missão social do artista consistiria em produzir obras e reflexões comprometidas com as causas populares. Dessas convicções partilhavam escritores como Graciliano, Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir, Dionélio Machado, Moacir Werneck de Castro e Caio Prado Júnior; e artistas plásticos como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, José Pancetti, Israel Pedrosa e Bruno Giorgi.

Em 1951, Graciliano foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores. Um ano depois, viajou para a então URSS e visitou outros países socialistas, o que resultou no livro Viagem. Faleceu de câncer em 20 de março de 1953, aos 61 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Observação e vivência são presenças marcantes nos livros de Mestre Graça. A preocupação com os problemas sociais do povo brasileiro, especialmente do nordestino, foi sempre o traço primordial de sua obra. Assim, o escritor definiu a sua literatura à irmã Marili Ramos de Oliveira, aprendiz de ficcionista, em novembro de 1949: "Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos" .

Para o crítico Tristão de Athayde, Graciliano era “um homem íntegro e ficará na história de nossas letras como a imagem do escritor em sua mais pura expressão. Isto é, de homem e de obra incorporados numa mensagem e num exemplo em que a beleza estética da obra e a pureza moral do homem constituem um monumento perene em nossa cultura de todos os tempos”.

Auto-retrato (aos 56 anos)

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas
Casado duas vezes, tem sete filhos
Altura 1,75
Sapato n.º 41
Colarinho n.º 39
Prefere não andar
Não gosta de vizinhos
Detesta rádio, telefone e campainhas
Tem horror às pessoas que falam alto
Usa óculos. Meio calvo
Não tem preferência por nenhuma comida
Não gosta de frutas nem de doces
Indiferente à música
Sua leitura predileta: a Bíblia
Escreveu Caetés com 34 anos de idade
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados
Gosta de beber aguardente
É ateu. Indiferente à Academia
Odeia a burguesia. Adora crianças
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz
Gosta de palavrões escritos e falados
Deseja a morte do capitalismo
Escreveu seus livros pela manhã
Fuma cigarros Selma (três maços por dia)
É inspetor de ensino, trabalha no Correio do Manhã
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo
Só tem cinco ternos de roupa, estragados
Refaz seus romances várias vezes
Esteve preso duas vezes
É-Ihe indiferente estar preso ou solto
Escreve à mão
Seus maiores amigos: *Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio
Tem poucas dívidas
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas
Espera morrer com ** 57 anos.

* Capitão Lobo comandava o quartel em que esteve preso no Recife, em 1936; Cubano foi um ladrão que ele conheceu na cadeia. José Lins do Rego, escritor. José Olympio, editor.
** Morreu com 61 anos.

O mandamento do escritor

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Um cidadão insubornável

Durante os anos de 1929 e 1930, Graciliano Ramos enviou dois relatórios sobre a sua atuação à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios ao governador do Estado. Ao ter conhecimento destes relatos, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt suspeitou que o autor devia ter um romance na gaveta e manifestou desejo de editá-lo. Seduziu-o a linguagem nada burocrática, mas criativa e com “o fel da ironia”. Incluídos no livro Viventes das Alagoas, seus balanços administrativos (veja trechos abaixo) são exemplos de como o administrador deve ser honesto com o dinheiro público.

“Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela prefeitura de Palmeira dos Índios (...). Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava, muito me custaram.

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.

Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. (...) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. (...) Não sei se a administração do município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram de inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.

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Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 9 - Setembro 2oo9

Memória - Roniwalter Jatobá

Mário e a Memória

Lasar Segall, Mário na rede, 1929
ponta-seca - 25.5 X 32 cm



A 9 de outubro de 1893, nascia no número 320 da Rua Aurora, no centro paulistano, Mário Raul de Morais Andrade. Sempre em São Paulo, viveu no Largo do Paissandu e na Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, onde um infarto o levou na manhã de 25 de fevereiro de 1945. Será que levou mesmo?

Mário de Andrade continua cada vez mais vivo. Nas últimas cinco décadas, importantes obras póstumas saltam de seus inesgotáveis baús e o que vem à tona é o melhor do escritor: o sensível cronista de Táxi, de 1976; o viajante preocupado com o seu país em O turista aprendiz, diários de suas incursões pelo Norte e Nordeste, de 1977; também deste ano é o Banquete, fascinante diálogo onde Mário não poupa críticas às classes dominantes; o Dicionário musical brasileiro, com 701 páginas e 3.754 verbetes, de 1989; as crônicas de Será o Benedito!, visão das andanças pelo Brasil. Pelo IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) da USP, onde está o acervo de Mário, foram publicados Vida de cantador, livro sobre o cantador paraibano Chico Antonio e o álbum Mário fotógrafo, bem como o precioso Curso de filosofia e história de arte.

Num verso famoso, assim se definiu Mário: "Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta". E o foi, realmente. Músico, musicólogo, professor de estética e história da música, poeta, ficcionista, cronista, ensaísta e crítico literário e de artes plásticas, folclorista, etnógrafo, fotógrafo, administrador cultural e, como gostava de dizer, entre sério e pândego, "grande e maluco escrevedor de cartas".

Enviou mais de três mil, deixando sua marca na formação de autores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Fernando Sabino, entre muitos outros.

Mário de Andrade foi, sem dúvida, um dos mais sérios e provavelmente o maior trabalhador intelectual brasileiro deste século. Como artista não se negou a mergulhar fundo em nossas raízes mais verdadeiras, defendendo e incentivando uma revolucionária e intransigente revelação de nossa identidade nacional a partir da compreensão dos mais autênticos e irreverentes valores populares. Já nos anos 20, cobrava uma posição decente da burguesia brasileira, que ainda hoje continua insensível às aspirações do país:

“Precisa-se de fazendeiros, sitiantes, criadores, senhores de engenho, bem baludos, que não careçam de ganhar pão-de-cada-dia e tendo compreensão energética do próprio destino pra em vez de andarem bestando do Brasil pra França, pra Suíça, se meterem na gerência da Monarquia República Masorca Corporation sem intenção de 'se arranjar' (...). Precisa-se de dedos cueras no manejo do pinho e do Fordson para rasgar fecundando os terrenos aráveis dos peitos e dos chãos deste país”.

Sem estar ligado a partidos políticos (nos anos 30, negou-se a conversar com Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB), mas declarando-se comunista na última fase de sua vida, Mário no entanto era impregnado daquele "instinto de nacionalidade", de que falou Machado de Assis, o que, a meu ver, o aproxima -- e muito – dos ideais generosos da época em que viveu. Intelectual engajado, sua atuação é ampla. Nos anos 30, transforma-se num brigador empenhado nas mudanças das estruturas culturais do país. Depois de colaborar no planejamento da reforma da Escola Nacional de Música, em 1931, seria absorvido por dois grandes projetos culturais.

No primeiro, como chefe do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, entre 1935 e 1938, durante a gestão do prefeito Fábio Prado, colocou em prática uma série de idéias para melhor conhecer o povo e democratizar a cultura. É neste período que surgem as bibliotecas itinerantes, a discoteca pública, o registro musical do folclore, os parques infantis, concertos para trabalhadores no Teatro Municipal. Delineiam-se os projetos da Casa da Cultura e realiza-se o I Congresso de Língua Nacional Cantada. "Mesmo servindo diretamente ao estado burguês, Mário não racionaliza e não sufoca a crítica, tanto quanto alcança causas e estruturas", analisa Telê Ancona Lopez, pesquisadora do IEB/USP e profunda conhecedora da obra de Mário de Andrade. "Tenta, de fato, abrir, na medida de suas forças, as brechas possíveis para seu projeto nacional popular, tendo sempre na mira a questão da cultura nas condições particulares brasileiras."

No segundo, criou e implantou o SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). "O entusiasmo de Mário foi esfuziante, mostrando a alegria causada pela quantidade do convite de Capanema e em quinze dias somente redigiu anteprojeto minucioso de um futuro órgão estatal encarregado de proteger o nosso Patrimônio Cultural, que chamava de artístico", registra o professor Carlos Lemos, da FAU/USP. "Nessa redação ouviu conselhos de seu fraternal amigo Paulo Duarte, mas, primordialmente, foi guiado pelas suas preocupações nacionalistas visando detectar uma ainda mal definida 'identidade' brasileira. Preocupações já antigas registradas em anotações de viagens pelo Norte, Nordeste e Minas Gerais, quando teve a oportunidade de entrar em contato pessoal com a manifestação artístico-popular que tanto o fascinava."

Depois, como assistente técnico do SPHAN para a região de São Paulo e Mato Grosso, percorreu o litoral, os arredores e a cidade de São Paulo, recenseando o que havia de importante em bens patrimoniais. Desses trabalhos resultaram estudos de nosso passado colonial, como os textos sobre a capela de Santo Antônio e sobre Embu, Itu etc.

"Algumas das maiores relíquias do passado paulista estão para ser restauradas. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que está se tornando, sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade, uma das mais ativas instituições criadas por Gustavo Capanema, depois dos necessários estudos preliminares, vai iniciar ainda este ano os seus trabalhos de restauração em terra paulista. E escolheu para salvar imediatamente da ruína o que possuíamos de mais vetusto ou mais belo, o forte de São João, na Bertioga, a capela de São Miguel e a igreja e convento de Embu",

exultava-se na crônica Boas notícias (“O Estado de S. Paulo”, julho de 1939). Para o jornalista e escritor Humberto Werneck, que pesquisou a vida e obra de Mário para um dia elaborar uma biografia do autor de Paulicéia desvairada, a importância de Mário de Andrade tem resistido não só ao passar do tempo como aos embates do provinciano fla-flu da cultura brasileira, no qual parece ser inadmissível gostar-se ao mesmo tempo de Chico Buarque e Caetano Veloso. "No caso de Mário, não tem faltado quem tente apequená-lo para engrandecer outro imponente monumental, Oswald de Andrade... como se Oswald precisasse disso", diz. "Resta, para esses militantes, o constrangimento de constatar que a obra-prima da antropofagia proposta pelo autor de Serafim Ponte Grande acabou sendo escrita, não por um oswaldino, mas por seu suposto adversário, com Macunaíma."

Mário de Andrade certamente incomoda porque deixou a marca inconfundível da sua inquietude, da sua sensibilidade, da sua humanidade e da extrema lucidez em vários campos de ação intelectual. "Pensou a cultura brasileira como essencialidade. Para nos dar consciência do nosso ser -- no mundo enquanto povo -- no passado, no presente e, sobretudo, no futuro", definiu o poeta José Paulo Paes.

Artista múltiplo, Mário tinha, porém, uma unidade: a consciência ética que lhe avassalava o espírito. Neste momento em que a cultura da razão cínica, do "é dando que se recebe", do "levar vantagem em tudo" indigna grande parte da população, o exemplo do ser moral de Mário de Andrade nos ilumina.

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 8 - Agosto 2oo9
Memória - José Bento Faria

Convivendo com Mário de Andrade

por Roniwalter Jatobá
Secretário particular do poeta e escritor Mário de Andrade por mais de uma década, José Bento Faria Ferraz falou em 1992 sobre sua convivência com o autor de Macunaíma
Durante quase doze anos, José Bento Faria Ferraz foi secretário particular de Mário de Andrade (1893-1945). Toda manhã, de segunda a sexta, no pe¬ríodo de 1934 a 1945, cuidou dos livros à correspondência do morador da rua Lopes Chaves, Barra Funda. Na tarde de 30 de junho de 1992, por mais de 4 horas, eu, Edsel Britto e Milton Andrade conversamos com José Bento, 79 anos, e sua mulher Sônia, 76 anos, na sua casa na ma Ásia, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. José Bento lamentou não ter feito como o secretário de Goethe, que analisou com argúcia, em livro, o convívio com o mestre, e a sua timidez, que de certa forma podou uma maior afinidade entre o auxiliar e o autor de Macunaíma. Mas valeu a pena. Mostra, entre outras coisas, a intimidade do seu dia-a-dia e, mais uma vez, aponta para qualidades já conhecidas de Mário de Andrade, lealdade e humanidade. José Bento faleceu em março de 2005, aos 92 anos de idade.

TUDA – Quando você começou a trabalhar com Mário de Andrade?
José Bento – Vou voltar um pouco antes. Sou filho de mineiros, minha mãe conhecia música, tocava violão muito bem. Meu avô era um boêmio. Eu tinha, portanto, um mundo musical na minha personalidade. E minha mãe desejava muito que eu continuasse meu piano, que aprendia lá em Jacareí, para onde mudamos em 1920. Fui, então, para São Paulo e minha mãe fez questão que eu estudasse no Conservatório Dramático e Musical. Ali, via passar um homem alto, bem vestido, bem posto, rosto levantado. Era Mário de Andrade.

TUDA – Esse conhecimento aconteceu a partir de 1928 até 1933. Havia alguma gota de intimidade?
José Bento – Não. Só via aquele homem, professor, de vez em quando. Ele passava e era só. Quando comecei a freqüentar as aulas de História da Música e Estética com o Mário, aí passei a conhecê-lo mais. E era uma judiação o que Mário fazia. Homem de cultura, cheio de humanismo, ele descia de uma posição tão alta para lecionar para meninos. Meninos que não tinham, talvez, interesse pelas artes musicais. As aulas dele eram maravilhosas. Ele dava aula de piano no Conservatório e em sua casa. E aulas de História da Música, duas vezes por semana. Era uma judiação porque a gente ainda era moço naquele tempo. Pensava mais em brincar com os meninos que estudar História da Arte. Então, comecei a conversar com ele nos intervalos das aulas. Todo mundo saía e eu ficava conversando com o Mário. Conversa rápida, conversa simples, prestava atenção. E comecei a conhecê-lo melhor. Eu era um rapazinho tímido, mocinho ainda. Um dia, comecei, de repente, a fazer ao Mário confidências de ordem econômica. Na época, a minha preocupação maior era não deixar o que estava gostando tanto de fazer, ou seja, a música. Mas também era obrigado a ter um norte na minha vida, a ter uma ocupação. Eu vivia angustiado, vendo meus pais se matando, e eu não achava o norte. Então, conversei com o Mário. Ele ficou quieto, não disse nada. Certo dia, depois da aula, ele falou: "Zé Bento, você não saia que eu quero falar com você". Nós descemos e, na subida do Conservatório, três prédios depois, havia um restaurante, o Palhaço. O Mário me perguntou: "Você já jantou?" Eu disse já. Sentamos na mesa. "Olha, Zé Bento, vou lhe dizer uma coisa: você comentou aquele negócio dois meses atrás... acontece que a minha irmã Lurdes vai casar e agora não tem quem cuide das minhas coisas, dos meus livros, dos meus escritos. Então, estou imaginando: será que você toparia trabalhar comigo?" Lembro bem, as minhas pernas começaram a tremer. "Não tem problema", ele disse depois, "eu te ensino". Mas eu não sou bibliotecário, não entendo nada de livros, eu disse. "É, mas eu te ensino", ele falou. "Você vai procurar o bibliotecário da Municipal e lá ele te arranja uns livrinhos e você vai aprender. Não se preocupe com isso. Você escreve à máquina?" Uns seis meses depois, ele me chamou.

TUDA – Era um bom salário?
José Bento – Ele assim tinha me dito: "Olha, eu não posso pagar muito, porque eu não sou rico. Você vai trabalhar de manhã comigo, três horas por dia". Pagava 200 mil réis. Então, eu trabalhava de manhã. Saía da Vila Mariana bem cedinho e às 7h30 chegava na rua Lopes Chaves. Vinha de bonde, descia a avenida Angélica.

TUDA – Isso foi quando?
José Bento – 1934. Nessa época, comecei a trabalhar também na biblioteca do Sindicato dos Bancários, sucedendo a Edgard Cavalheiro, no prédio Martinelli, à tarde.

TUDA – Como era o seu trabalho na casa da rua Lopes Chaves?
José Bento – Chegava lá às 7h30. O Mário já estava de banho tomado. Ele gostava muito de usar "robe de chambre", tinha um desenhado por ele mesmo. O Mário era muito sensual. Também gostava de coisas finas. Já barbeado... era assim que ele trabalhava, ali sentado na escrivaninha que foi do pai dele. Minha função era cuidar dos livros. Como o clima de São Paulo, não sei se só na Barra Funda, sempre teve muita umidade, certos livros bichavam muito. Tinha o porão da casa dele; desinfetava o porão. Os meus pertences, as minhas latinhas, meu "pó de Pérsia", aquelas receitas de antigamente estavam lá.

TUDA – Foi boa a convivência?
José Bento – Foi sim. Comecei a perceber a riqueza interior daquele homem. Mas, sempre naquela minha posição, coisa muito curiosa, que eu não consegui me libertar, sempre naquela posição meio subalterna. Eu não cheguei a criar com ele uma amizade assim profunda, coisa que a Oneyda Alvarenga e o Luiz Saia conseguiram. O que eu tinha mesmo era respeito pelo Mário. Naquela época se usava outros modos, mesmo os amigos se tratavam com respeito, era senhor, aquela coisa toda. Um dia, o Mário disse: "Pára com esse negócio de senhor, me trata de você".

TUDA – Ele era meticuloso?
José Bento – Muito metódico no seu trabalho, nas suas pesquisas. Isso que você está vendo aí (aponta pastas com índices), herdei dele. Quando cheguei na sua casa achei os fichários feitos. E sempre tinha recados: "Zé Bento, faça isso, Zé Bento, faça aquilo". Muitas vezes ia comprar livros na Livraria Civilização Brasileira. O Mário vivia dependurado em dívidas.

TUDA – Tinha conta na livraria?
José Bento – Sim, comprava e pagava. Ele adorava o livro também como objeto. Ele transparecia sensualidade em ver aquelas coisas todas. Sempre muito calmo. Raramente era visto irado. Às vezes em que o vi irado, a voz dele sumia. Ele implodia...

TUDA – Engolia tudo?
José Bento – Engolia tudo. Por outro lado, várias vezes o surpreendi no banheiro declamando "Ahasverus e o gênio", de Castro Alves, ou então "Juca Pirama", de Gonçalves Dias. Tinha uma TUDA prodigiosa. Mas no resto da manhã, a gente trabalhava em silêncio. Ele cuidava das coisas dele e eu das minhas. Às 9 horas da manhã, eu batendo à máquina...

TUDA – Na Manuela?
José Bento – Sim, na Manuela, homenagem ao Bandeira. Aí batiam à porta, ele abria. Era dona Mariquinha com uma bandeja de café. Era de prata, com três xícaras de café. Então a gente bebia o café que ele mesmo servia.

TUDA – Ele escrevia à mão e você datilografava, não é?
José Bento – O Mário gostava muito de escrever à mão, com aquela letra tranqüila. Cartas datilografadas, só as mais formais. Ele gostava muito de fazer as cartas para a Henriqueta Lisboa, Fernando Silva, Manuel Bandeira.

TUDA – E as cartas de amor?
José Bento – Os amores de Mário... eu tenho a impressão que cessaram quando... eu tenho a impressão que Remate de Males foi o túmulo dos amores do Mário. Aos 40 anos, ele teve uma crise existencial muito forte. Foi um marco na vida dele. Ele tinha uma premonição da morte muito grande. Era de saúde precária. E o Mário se desmandou muito no Rio, de modo que quando ele veio de lá, já iniciava um processo lento de morte. Aliás, num certo sentido, eu compartilho do ponto de vista do Paulo Duarte: o Mário foi conscientemente se matando aos poucos.

TUDA – Solidão? E os amigos que freqüentavam a casa dele?
José Bento – Os amigos são sazonais, não é? Os amigos dos anos 20 não foram os mesmos, nem poderiam ser os mesmos. Raras são as pessoas que têm amigos que as acompanham até a morte, porque a vida vai mudando. Então raras são as pessoas que conservam seus amigos de infância, porque a vida é tão atrapalhada. Então, eu quero crer que os amigos do Mário que permaneceram até o fim foram: Paulo Duarte, o Rubens (Borba de Moraes), o Sérgio, os dois Sérgios (Milliet e Buarque de Hollanda), os amigos do Rio, que duraram muito tempo, o Rodrigo (Mello Franco), o Carlos Drummond de Andrade, o Prudente (de Moraes Neto), o Manuel Bandeira e a Henriqueta Lisboa; as cartas da Henriqueta para o Mário a gente não conhece, mas as do Mário para a Henriqueta é de um amor... A gente percebe que é um amor de amante. É nas cartas para a Henriqueta que ele se abre mais.

TUDA – E a mulher do Ascenso Ferreira?
José Bento – Não estou lembrando. Um amor, pelo menos platônico, de um para outro. Eu não sei... Ele teve vários amores... Eu não sei. Vai caber ao biógrafo de Mário a tarefa pesadíssima de penetrar em todo o inconsciente dele. É difícil, e tem aquela coisa muito triste do Mário, que foi uma das causas, talvez, do rompimento em 1928 com o Oswald. E o Oswald tem uma frase candente, que o "Mário parecia um Oscar Wilde, por detrás". É um assunto chato! Lembro que, uma vez, ele já tinha tido o pré-infarto, mas a rigor foi um infarto mesmo... Foi em 1944, mais ou menos. Estava doente, imóvel, quarenta dias na cama e eu soube de um seminário. E os alunos, pela leitura dos fatos e de suas obras, chegaram à conclusão que o Mário era homossexual. Eu, que nunca tinha ouvido falar nisso, fiquei indignado. Então, escrevi uma carta para a Oneyda (Alvarenga), carta dolorosa, chateado com o que tinha acontecido. Referir a obra de Mário à homossexualidade! Quem sabe pode até se referir, eu não sei, mas eu não podia conhecer aquilo. Então, a Oneyda ousou perguntar ao Mário sobre este aspecto da inimizade, o porquê da inimizade dele com o Oswald. E veio a resposta do Mário: "Olha, Oneyda, por favor, é uma coisa tão suja que eu não quero tocar neste assunto". Tenho a impressão que a coisa do Oswald deve ter machucado muito e que eles nunca mais puderam se entender.
Sônia – Eu até me lembro da época do Guilherme de Almeida no Departamento, que aliás foi uma desilusão. Eu gostava das poesias dele. Colecionava-as. Eu não o conhecia, mas apreciava o que ele escrevia. Zé Bento, lembra daquela senhora que trabalhou com o Guilherme de Almeida? E... na sala dele. Ela foi lá em casa e lançou, quer dizer, puxou conversa, só para dizer que o Mário era homossexual. Tem gente com instinto ruim. Primeiro, não sei se ele era; e se era, era discreto, discretíssimo. Antes do nosso tempo, ele teve uma grande paixão por uma mulher.
José Bento – Maria da Glória?
Sônia – Não, não, imagina! Maria da Glória... nunca... aquela mulher!

TUDA – Quando vocês se casaram?
José Bento – Casamos em 1945.

TUDA – Depois de sua morte, não é? Ele acompanhou a preparação do casamento?
José Bento – O Mário me apoiava muito neste sentido.

TUDA – Vocês tiveram dois filhos, um inclusive chamado Mário, em homenagem a ele. Mário, o de Andrade, gostava de criança?
José Bento – Adorava criança. E a grande preocupação dele era com o menor do meio operário. Eu me lembro bem de que o primeiro parque infantil, ligado ao Sérgio Milliet e à Maria de Lourdes Milliet, já levantava a preocupação de como criar parques para as crianças de operários.

TUDA – Católico?
José Bento – Era, e esse era um problema muito sério para o Mário. Ele tinha uma formação católica, estudou no Colégio Marista. Ele chegou a solicitar -naquele tempo o bom católico tinha de solicitar à autoridade diocesana - uma licença especial para poder ler livros que estivessem no Index, como Voltaire, Diderot, esse pessoal todo do Iluminismo. Pois o Mário fez essa solicitação. Ele participava de procissões de "Corpus Christi"; ele e o Antônio Alcântara Machado. Mas na última fase de Mário de Andrade ele se declarou comunista. Talvez fosse um comunista, mas de ordem intelectual, vamos dizer assim.

TUDA – Nunca entrou em partido?
José Bento – Não. Mesmo a atitude dele em 1932, quando São Paulo inteiro se incorporou, foi meio razoável. Inclusive o irmão dele foi para a frente de batalha. Não sei se era uma premonição.

TUDA – Como é que ele recebia, por exemplo, a crítica, os comentários, sobre seus livros?
José Bento – Eu não gostaria de dizer: era vaidoso. Os sapatos eram feitos sob medida, na sapataria Guarani, em frente à Livraria Civilização Brasileira, ali na rua XV de Novembro. O Mário era muito vaidoso. Usava chapéu. Na hora em que ele saía para almoçar, ele já se trocava. De gravata, tudo direitinho.

TUDA – Comia bem?
José Bento – Ah, era um bom garfo. Gostava de comidas finas.

TUDA – Fumava?
José Bento – Fumava muito. E tinha muita insônia. Quem passasse às 22 horas pela rua Margarida com Lopes Chaves, via aquela janela aberta até 2 ou 3 horas da madrugada. Era o Mário tocando no órgão os corais de Bach. Era para ele poder se libertar das angústias, porque o Mário era um homem angustiado. Eu tenho a impressão que as injustiças do mundo caíam naquela sensibilidade acentuada que ele tinha.

TUDA – A senhora não gosta muito de se lembrar do Mário, não?
Sônia – Não. (Pausa) Eu também tive problemas financeiros, coisas de família. Um dia eu fui procurar o Mário. Nessa ocasião, ele já era diretor do Departamento de Cultura, lá na Cantareira... Era uma pessoa muito à vontade, ou então queria deixar a gente à vontade. Ele disse que estava com fome e mandou buscar bananas. Era uma característica, talvez, da personalidade dele: deixar as pessoas muito à vontade. Eu conversei com ele sobre os meus problemas, disse-lhe que eu precisava de emprego. Ele me convidou para ir ao Departamento de Cultura. Ele também tinha convidado o Zé, que eu não conhecia, mas que já era seu secretário particular. Conheci o Zé Bento lá.
José Bento – E foi uma coisa muito curiosa: eu preparava a documentação para entregar na Divisão do Pessoal da Prefeitura. E, ao buscar isso, vai levar aquilo, eu cruzei várias vezes com uma moça. Então, eu parei e pensei: mas que moça bacana!
Sônia – Eu não estava nem aí...
José Bento – Um dia eu entreguei uns documentos para o Paulo Magalhães, que era o chefe de gabinete do prefeito Fábio Prado, muito amigo do Mário. Em seguida, ele me mandou para a discoteca, que ficava atrás do Teatro Municipal. Quando eu chego na discoteca, correndo, para falar com a Oneyda, a primeira coisa que vejo é aquela moça, lá sentada, escrevendo. E ali está ela... O diabo me passou a perna.

TUDA – Lembra do dia da morte dele?
José Bento – Eu trabalhei no sábado, sábado eu trabalhava à tarde, e fui para a Lopes Chaves. Ele estava de "robe de chambre". Estava pálido. Eu não estava gostando. Eu me lembro que voltei para casa preocupado. No domingo, o Sílvio Alvarenga, marido da Oneyda, encostou o carro na minha casa. Eu falei: "Você por aqui?" Devia ser umas sete e meia da manhã, umas oito horas. Ele falou: "Você não gostaria de ir comigo na casa do Mário?" Eu falei: "Ele não está passando bem, não? Aí eu me aprontei rapidamente e saí. Cheguei lá ele já estava morto.

TUDA – A casa estava cheia?
José Bento – O Luiz Saia passou a noite lá. E me contou: "O Mário pediu uma xícara de chá e começou a tomar. De repente, disse: "Saia, me segure que eu não estou me sentindo bem". Deu a xícara e... aí foi trágico. Porque o quarto do Mário era no andar de cima. A mãe dele ficava no quarto do fundo. Tinha o banheiro e um outro quarto da dona Nhanhá e das outras moças que ainda moravam lá. Mas engraçado, nós, os velhos, vamos adquirindo uma certa calosidade... A mãe soube e não houve este drama que os moços têm... pronto, morreu. Ela se recolheu a um canto e, naturalmente, morreu aos poucos também. Não durou muito, não.

TUDA – E depois da morte dele, você voltou lá na casa?
José Bento – Eu voltei várias vezes para cuidar dos ditames da carta. Porque a carta não era seu testamento, apenas uma intenção. E essa carta estava comigo guardada, eu sabia onde é que estava. Tanto que um dia ele me disse: "Zé, esta carta está aqui. Se acontecer qualquer coisa comigo, você a dê ao Carlos Moraes de Andrade, ao Cade". E eram recomendações para que eu separasse, de acordo com o dr. Carlos Moraes de Andrade, os livros principais para a educação dos sobrinhos: era a Terezinha, o Carlos Augusto e a Maria Luiza. Os restos das coisas, as obras de arte, iriam para a pinacoteca. A parte musical para a discoteca. No post-scriptum da carta, ele até agradece a minha assistência. E deixou para mim uma importância, não sei bem quanto era naquela época, mas este dinheiro nunca se achou. Naturalmente ele precisou dele e usou. Eu ainda fiquei lá mais dois ou três meses, arrumando as coisas e depois eu fui embora. Em 1945 eu comecei a trabalhar lá no Patrimônio. Em 1951, fui para Ribeirão Preto trabalhar na Faculdade de Ribeirão Preto.

TUDA – Da obra do Mário, poesia, conto, romance, você tem alguma preferência? Tem algum livro que marque mais.
José Bento – São as poesias. A última parte da "Meditação sobre o Tietê" é uma coisa extraordinária.

TUDA – Um poema ecológico?
José Bento – É um poema muito bonito, muito mais do que ecológico! Um poema humaníssimo. É o Mário angustiado com a Segunda Guerra Mundial...

TUDA – Essa convivência com o Mário, durante doze anos... O que ela significou, vamos dizer assim, para o resto da sua vida?
José Bento – Significou muito. Me esclareceu, me abriu horizontes, me deu certo sentido de liberdade, um sentido de respeito pela pessoa humana, um sentido de respeito à individualidade de cada um. O Mário me deu esta noção de liberdade... e de amor. E isso eu acho muito importante. Eu só sei dizer a você que foi um período feliz da minha vida, aquele em que eu acreditei nas coisas.

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 7 - Julho 2009
Memória - Roniwalter Jatobá

O palco da metrópole

breve história do Teatro Municipal de São Paulo, construído numa época de ampla reestruturação urbanística da cidade
Um escândalo! Durante as noites de 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, um movimento de renovação artística e literária agita a cidade de São Paulo. Era a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal, o templo cultural da elite bem-pensante da época. Para Paulo Prado, fazendeiro de café e um dos idealizadores da semana, junto com sua mulher Marinetti e o pintor Di Cavalcanti, o objetivo era "assustar essa burguesia que cochila na glória de seus lucros." Na noite inaugural, após discurso do escritor Graça Aranha, dos apartes de Oswald de Andrade ("Carlos Gomes é horrível"), entre vaias e insultos da platéia, declamaram-se poesias. No luxuoso saguão de entrada, exposição de pinturas e esculturas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Brecheret, Goeldi e outros. No último dia, o compositor Villa-Lobos encerra a semana, que seria definida posteriormente pelo escritor Mário de Andrade como "uma bruta sacudidela nas artes nacionais".

Na época, público e imprensa não entenderam assim. Ao incômodo dos versos sem rima e dos "disparates cabeludos" somou-se a indignação com a utilização anárquica da mais importante casa de espetáculos de São Paulo, onde a burguesia paulista se encontrava nas noites de gala para prestigiar as óperas e companhias dramáticas vindas da Europa.

Cultura do Café

O Teatro Municipal, na verdade, significava o desenvolvimento que atingia São Paulo desde a última década do século passado, representado pela cafeicultura e o alvorecer industrial. Com o surto de progresso, era hora de sonhar em ter uma casa de espetáculos em condições de receber bem as companhias teatrais que chegavam à cidade. Habituada ao Alla Scala, de Milão, ao L'Operá, de Paris, ou ao Covent Garden, de Londres, a elite torcia o nariz para os palcos paulistanos. O Teatro Politeama, inaugurado em 1892, embora de ótima acústica, "não passava de um enorme barracão". O Teatro Minerva, que sofrera várias reformas desde sua inauguração em 1873, "já não tinha condições de oferecer um mínimo de conforto às famílias que o freqüentavam".

Desde 1895, havia o desejo de construir um teatro oficial para São Paulo. A primeira iniciativa partiu da Câmara Municipal, que apresentou seguidos projetos convocando interessados na "construção de um ou dois teatros". Mesmo oferecendo ao vencedor da concorrência o privilégio de isenção de impostos pelo período de dois anos, depois vinte, e, finalmente, cinqüenta anos, os endinheirados preferiram investir na indústria ou em outra cultura, a do café. Por fim, os poderes públicos resolveram desapropriar uma chácara no início da rua Barão de Itapetininga, de propriedade do coronel Antonio Proost Rodovalho, por 692 contos de réis. Na época, a região era chamada de "centro novo", ligada ao "velho centro" (o triângulo) pelo viaduto do Chá, obra de 1892. A cidade, então com 250 mil habitantes, se expandia em várias direções. A leste, a baixada do Brás, com a estação do norte e a Hospedaria de Imigrantes, rapidamente se transformava em bairro de pequeno comércio e reduto do operariado. A Estação da Luz, ao norte, era outro centro de atividade, sendo os terrenos aí também ocupados pelas classes mais pobres. Eram subdivididas as chácaras dos bairros de Santa Ifigênia e Campos Elísios, local de moradia da elite em ascensão. Havia ainda a ocupação progressiva do bairro de Higienópolis e avenida Paulista, seguindo depois até os Jardins.

Celeuma da Imprensa

Enquanto isso, discutia-se a denominação do teatro. Alguns pretendiam teatro São Paulo e outros, Municipal. Antonio Prado, prefeito da capital, nomeou a Comissão Construtora, sob a direção de Ramos de Azevedo. Integravam a comissão: Domiziano Rossi, que trabalhava no escritório de Ramos de Azevedo, e Cláudio Rossi, cenógrafo. O engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), com formação profissional na Europa, dispensava apresentações. Agente decisivo no estabelecimento da nova imagem de São Paulo, já havia erguido, entre outras obras, a Escola Politécnica, no bairro da Luz, a Escola Normal, na praça da República, e o Liceu de Artes e Ofícios, de onde sairia o mobiliário do futuro teatro. Vaidoso e pouco propenso a dividir glórias, o arquiteto teve que enfrentar o protesto dos Rossi, co-autores do projeto do Municipal. Um deles descobriu que na placa inaugural confeccionada não constava o nome dos auxiliares. Acabou provocando uma celeuma nos jornais e obrigou a municipalidade a gravar outro bronze, corrigindo o erro que ficaria para a posteridade.

Brio Paulistano

Foi na administração de Antonio Prado (1898 a 1910) que São Paulo começou a ganhar novos espaços e seu aspecto de metrópole. A palavra de ordem era remodelar a cidade, mudar seus ares de província, tal como acontecia na Capital Federal (Rio de Janeiro), onde se abriam avenidas e praças. Os cariocas, por sinal, já haviam iniciado a construção do seu teatro Municipal, inaugurado em 1909, o que mexia com o brio dos paulistas.

Além de iniciar obras de saneamento, Antonio Prado ajardinou, em 1904, a praça da República, que o ex-presidente da província, João Theodoro Xavier, havia regularizado em 1872, quando esta se chamava largo dos Curros e era o local onde circos ambulantes exibiam tourada. Remodelou também o Jardim da Luz e o largo do Paiçandu, contratando os serviços de urbanistas europeus. Abriu a avenida Tiradentes, dando acesso a toda a zona norte da cidade, arborizou e pôs calçamento em diversas ruas. E foi ainda Antonio Prado quem alargou o pátio do Rosário no começo da rua São João, criando uma praça próxima do triângulo, em que se instalaram confeitarias freqüentadas pelos elegantes. O prefeito não permitiu que fossem erguidas cercas na nova praça da República, embora os aristocratas protestassem, pois, no tempo do Império, os melhores jardins eram cercados, para só permitir o acesso à elite. Ainda no final da década montou-se nessa praça uma pista de patinação, que atraía público de diversos bairros. O lazer da maioria da população na época não ia além de jogos de bocha, corrida de cavalo na Mooca, mergulhos e passeios de barco no rio Tietê e apresentações de bandas, como a Corporação Musical Operária da Lapa.

Em 5 de junho de 1903, foi iniciada a construção do Municipal, que teve seu projeto inspirado no "Ópera de Paris". Composto no estilo Barroco, chamado na Itália de "seicento", apelidado de "minestrone neocolonial" pelos modernistas que o sacudiriam tempos depois, o teatro era o maior edifício da cidade. Um dos pavimentos era subterrâneo, e abrigava sistemas de refrigeração e elevação do palco. Vinte e cinco grandes vitrais vieram da Alemanha, a maioria deles fazendo referência à origem grega do teatro -- mesma referência pintada na cúpula do salão nobre. Lá, uma atriz declama num palco criado num carro de bois, ladeada por um ator e um flautista.

Dia da Inauguração

A inauguração foi numa terça-feira, 12 de setembro de 1911. Marcada para o dia anterior, a estréia teve que ser adiada devido ao atraso na chegada dos cenários que vieram da Argentina. Outro contratempo: a apresentação na estréia de uma ópera estrangeira causou um intenso debate. Alguns lembraram que a inauguração do Municipal carioca havia sido aberto com o Hino Nacional, discurso do poeta Olavo Bilac e ópera de Carlos Gomes. Preocupados, os organizadores da festa requisitam forte policiamento, para prevenir invasão do teatro e disciplinar o grande número de veículos. Sob pressão da Câmara Municipal a primeira música ouvida foi o Guarani de Carlos Gomes. A apresentação da ópera de Ambroise Thomas, Hamlet, numa encenação da companhia lírica do barítono Titta Ruffo, foi interrompida ao meio devido ao atraso do programa inaugural. "Esteve deslumbrante a inauguração", registrou a revista Illustração Paulista, de 16/9/1911. "Desde o anoitecer que o teatro estava, interior e exteriormente, feericamente iluminado (...). O Viaduto do Chá estava repleto (...). A grande multidão que se formava a essa hora nas proximidades do teatro dificultou de tal forma o trânsito de carros e automóveis com os espectadores, que alguns somente às 10 horas da noite conseguiram chegar à porta do teatro". O Estado de S. Paulo anotou: "Cerca de trezentos veículos transportam espectadores para o teatro, tendo permanecido aguardando a saída 290 veículos, dos quais 140 automóveis e 150 carros". O cronista social do Correio Paulistano descreveu a festa, principalmente como se apresentaram vestidas as grandes damas da época: "Mme. dr. Jorge Tibiriçá, toilette de calipso de seda marinho (...). Mme. Guilherme Rubião, belíssima toilette de cetim duchesse gris, com voilage de mousseline chanteag, guarnecida de aplicação e franja de vidrinho, sur même nuance".

Celebridades e Povo

A partir daí, o teatro abriu-se para uma série de óperas, principalmente. Os italianos, estabelecidos no Brás e no Bexiga, lotavam o Municipal quando companhias líricas passavam por São Paulo. Em 1916, quando o maior de todos os tenores, Enrico Caruso, começou a cantar, em francês, a ópera Carmem, de Bizet, as colunas do teatro estremeceram com o murmúrio de desaprovação emitido pelo público, exigindo do tenor que cantasse em italiano. Além de óperas, o Teatro Municipal sediava também bailes, como em benefício das vítimas das inundações na Bahia, em 1914, ou em favor dos "belgas desamparados", em 1916, além de banquetes para políticos do PRP (Partido Republicano Paulista).

Ao fim de algum tempo, sendo insuficiente o foyer, a prefeitura fez construir um tablado desmontável, adaptado sobre a platéia, ao nível do palco, servido para grandes bailes e banquetes. Muitos bailes de carnaval realizam-se no teatro, que também abrigou grandes momentos e figuras marcantes para a vida cultural da cidade. A lista das celebridades dá a justa dimensão do Municipal: a dança de Anna Pavlova, Isadora Duncan, Margot Fontayn, o bailarino Mikhail Barishnikov, o pianista Arthur Rubinstein, o maestro Arturo Toscanini, o canto lírico de Maria Callas e Enrico Caruso, o jazz de Ella Fitzgerald, Duke Ellington e Miles Davis, a companhia de dança de Maurice Béjart, o I Congresso Brasileiro de Escritores e o evento que marcou decisivamente a história do Municipal, a Semana de Arte Moderna.

Nos anos 30, o povo sobe as escadarias do teatro pela primeira vez. Foi aberto aos trabalhadores "com grande inquietação dos meios grã-finos pelos estragos que aí podia praticar o homem do povo", relatou o professor Paulo Duarte. "Pois a surpresa foi sensacional: a gente do povo era muito mais educada do que a gente educada! Nunca se verificou um estrago, um desrespeito, durante aqueles espetáculos de música ou de teatro oferecidos especialmente aos operários, com entrada grátis. O teatro regurgitava de uma multidão modesta, mas atenta e respeitosa". Já na década seguinte, são criados seus próprios corpos estáveis: a Orquestra Sinfônica, os corais Lírico e Paulistano, o Corpo de Baile. Resultado: companhias líricas vindas do exterior já podiam chegar menos numerosas, pois havia artistas organizados em São Paulo.

Avanço Tecnológico

Quase centenário, o Municipal passou por importantes reformas. Uma delas foi em 1952, com vistas à comemoração do IV Centenário da cidade, ocorrida em 1954. A reforma, entretanto, acabou somente no ano seguinte. A segunda durou de 1985 a 1991, e, além de recuperar a cor verde original das paredes internas, dotou o palco de elevadores cênicos modernos e uma plataforma elevatória. O sistema de iluminação tomou-se computadorizado, permitindo grande precisão nos efeitos cênicos.

Se vivos fossem, os modernistas certamente apoiariam a grande faxina e os avanços tecnológicos, Mário e Oswald de Andrade à frente. O primeiro foi o idealizador do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade, e o segundo sempre teve motivos de sobra para recordar as noites no coração da metrópole. Como na vez em que, "mordido pela tarântula da curiosidade e exaltado pela prosa dos estetas", correu para ver a bailarina Isadora Duncan. Era 1916. "Não sei como nem onde jantei, completamente alienado", conta ele. "Sei apenas que tudo me conduziu, mesmo as pernas, até o Teatro Municipal que esplendia de luzes e de gente. Isadora Duncan estreava em São Paulo (...). O pano se levantou e eu vi a Grécia. O cenário unido duma só cor abria-se para vinte e cinco séculos de mar, montanhas e de céu (...). A voz do piano arquiteturava Gluck. Essa mulher é alga, sacerdotisa, paisagem. Deixei estonteado o teatro, a gente. Perdi-me de novo na cidade".

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 6 - Junho 2009
Memória - Roniwalter Jatobá

Av. São João e o bonde Centex (foto de Carlheinz Hahmann) - 1948 - HTUB - WCS - pág. 457. Modelo mais recente a ser incorporado ao sistema de bondes paulistano; carros originários de Nova Iorque.
Bondes paulistanos
Os caminhos do bonde elétrico em São Paulo, da chegada, em 1900, à completa extinção nos anos 60 do século 20
"Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira Santo Amaro, frente à nossa casa, o bonde descer sozinho, equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois".

O autor desta descrição insólita do provérbio "colocar o carro na frente dos bois" é o escritor Oswald de Andrade, que em seu livro Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe (1954) relata o sentimento dos habitantes da capital da Província, um misto de saudosismo pela partida dos animais e expectativa pela chegada daqueles bondes que não precisariam mais deles. Continua Oswald com suas lembranças do final do século 19: "Uma febre de curiosidade tomou conta das famílias (...). Como seriam os novos bondes que andavam magicamente sem o impulso exterior? Eu tinha notícia, pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira da minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos, ficava ali grudado e seria fatalmente esmagado pelo bonde".

São Paulo, 1860. Quarenta anos antes da chegada do primeiro bonde elétrico, a hoje maior metrópole brasileira era, na época, um emaranhado de ruas de terra batida, tortuosas, cheias de pequenas casas de pau-a-pique. População: pouco mais de 20 mil habitantes. O movimento comercial era pequeno e nada de indústria. Os mais ricos moravam nas ruas do Rosário, Direita e São Bento, que formavam a área do triângulo paulistano. "Casas que parecem feitas depois do mundo, tanto são pretas; ruas que parecem feitas antes do mundo, tão desertas", constatou Castro Alves, poeta e então estudante de Direito.

Tudo era próximo. Para alcançar bairros distantes, como o Brás, Penha (a leste) ou Santo Amaro (ao sul), alugava-se um carro de bois. "Eram tão poucas as carruagens que os cidadãos acorriam às janelas para identificar o possuidor - de alguma que passasse", anotou Antonio de Paula Ramos Jr., formado em 1852 pela Academia de Direito do Largo de São Francisco.

Primeiros Bondes

A cidade crescia. Cinco anos depois, em 1865, surgia o primeiro sistema regular de transportes. No começo de agosto, o italiano Donato Severino publicou nos jornais o seguinte anúncio: "Progresso - O abaixo-assinado participa ao público que no dia 21 deste mês em diante tem carros e tílburis para aluguel, estacionados no Largo da Sé, onde podem ser procurados para qualquer serviço".

O avanço do café pelo Oeste Paulista traz riquezas para a então Província de São Paulo e, em 1867, inaugurava-se a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. "Percebo muitos melhoramentos", assinalou Hadfield, viajante inglês que visitara São Paulo em 1868. "A própria cidade, bem como as ruas, estão notavelmente limpas. As estradas, nas imediações, que eram anteriormente brejos, foram aterradas e estão agora em muito boa ordem".

Os primeiros bonds trafegaram pelas estreitas vias da garoenta paulicéia no dia 12 de outubro de 1872. Eram seis carros de cinco bancos, importados dos Estados Unidos, e solenemente denominados "diligências tiradas por animais". Eram também o que havia de mais moderno e rápido, se comparados aos carretões pesados e às carruagens que só serviam aos ricos proprietários e aos passageiros abonados. Rapidamente, o democrático sistema de transportes coletivos se expandiu, popularizando as áreas do centro e integrando as regiões distantes. Seges, landaus, aranhas, cabriolés, fiacres, vitórias, belinas, cupês, tílburis e animais de montaria foram aos poucos relegados como soluções particulares de transporte e acabaram expulsos da cidade. Até o alvorecer do século, os bondes-diligências e seus bíblicos muares satisfizeram as necessidades de movimentação dos paulistanos.

A Chegada da Light

A última década do século passado foi fundamental para São Paulo começar a perder seu caráter rural e ganhar contornos citadinos. À época, as transformações da economia paulista foram profundas: abolida a escravidão em 1888, as alternativas para os negócios tinham sido ampliadas, em detrimento dos investimentos feitos em mão-de-obra escrava ou mesmo nas ações das companhias de estradas de ferro. Surgem assim novos investimentos, industriais e imobiliários.

Em 1899, quando a The São Paulo Tramway, Light & Power Co. Ltd. se estabeleceu em São Paulo, seus dirigentes canadenses sabiam de sua importância como pólo desenvolvimentista. Em História da Light - Primeiros 50 anos, Edgard de Souza (primeiro brasileiro a chegar à alta direção da Light) anotou a seguinte observação de Auguste de Saint Hilaire, membro da Academia de Ciências do Instituto de França, que viajou por São Paulo em 1819: "O Brasil deve permanecer ainda como país simplesmente agrícola e não chegou a época em que lhe pode ser vantajoso estabelecer manufaturas; entretanto, quando for o momento para isso, é em São Paulo que tais empreendimentos devem ser iniciados". Os canadenses sabiam também que os serviços públicos eram deficientes. Neste ano de fundação da empresa, São Paulo já contava com cerca de 238.500 habitantes e a Light ganhava a concessão por quarenta anos para a construção, uso e gozo de linha de bondes por eletricidade na cidade de São Paulo e subúrbios.

Surgem os Elétricos

Os primeiros bondes elétricos trafegaram pela capital paulista em 7 de maio de 1900. Com a chegada deles, começa a história da Light para os paulistanos. Vontade de crescer, recursos técnicos e apoio financeiro não lhe faltaram. No ano seguinte, em 1901, a canadense já inaugurava a usina hidrelétrica de Parnaíba, condição essencial para a expansão dos serviços de bondes e para a distribuição farta de energia ao nascente parque industrial de São Paulo.

Nos anos 10 e 20, os bondes da Light já faziam parte do cotidiano da “cidade que mais cresce no mundo". A colisão de bondes com automóveis e atropelamentos de pedestre eram fatos corriqueiros. Em 4 de novembro de 1929, por exemplo, aconteceu um acidente inédito. De repente, um elefante vai em direção aos trilhos da linha da Vila Maria. O motorneiro, apreensivo, toca a campainha, mas o paquiderme nem se abala. Era Ely, de propriedade do Circo Pinheiros, que parecia querer medir forças com um camarão (bonde de cor vermelha) da Light. Acreditem: foi difícil dizer quem sofreu os maiores estragos. Ely - o elefante - foi nocauteado com uma forte pancada na cabeça e ficou desmaiado por quase duas horas. O camarão teve sua plataforma totalmente danificada. O acidente mereceu manchete em quase todos os jornais da época e serviu de mais um motivo para a imprensa criticar a imprudência dos condutores de bondes.

No Commercio Paulistano, no dia 6 de novembro de 1929, o cronista Hélios (pseudônimo do escritor Menotti Del Picchia) deu a sua versão: "Era fatal! Custou, mas afinal o Brasil ficou com esse record, de um cômico piolinesco. O elefante foi atropelado pelo bonde (...). Nem elefantes mais os motorneiros respeitam. Eu pensei que a cólera deles fosse apenas contra os homens, as carroças, os chaufeurs.

Outro artista, o cartunista Belmonte, também era um crítico mordaz dos bondes da Light. Por meio do seu personagem Juca Pato, Belmonte transpunha para as páginas da Folha da Manhã e da Folha da Noite os desabafos da população trabalhadora, inclusive das camadas médias que, na época, usavam os bondes da canadense como seu principal meio de transporte. "Por onde andam os bondes da Light?", perguntava Belmonte na Folha da Manhã, em 1926. "É um caso singular. Um cidadão em pleno triângulo (região central de São Paulo) fica às vezes a fazer-se essa pergunta desesperada".

Novas Conduções

Já nesta época, o transporte coletivo era um dos mais angustiantes problemas da cidade. Bondes e ônibus não conseguiam atender à população. São Paulo se expandia desordenadamente e a periferia não dispunha de condução para o centro. Mesmo assim, os novos bondes que saíam às ruas eram sempre bem recebidos. Logo ganhavam um apelido e a nova referência estabelecia uma relação de maior intimidade entre veículos e usuários.

Os mais antigos registros feitos em jornais e documentos da Light dão notícia da criação, em 1916, de "um serviço de segunda classe, oferecido pela metade da tarifa, nos bondes para operários". Esses bondes ficaram conhecidos como caradura, expressão popular que definia os passageiros com recursos para pagar a passagem integral, mas que, com a maior "caradura", preferiam a segunda classe.

Outro bastante lembrado é um bonde luxuosíssimo, pintado em azul e com o nome gravado em letras douradas, salão de buffet, gabinete e lavabo. Chamava-se Ypiranga. Encomendado pela Light à St. Louis Car Co. de Filadélfia, Estados Unidos, o bonde chegou ao porto de Santos em 22 de junho de 1906. A festa da primeira viagem lotou a rua da Fundição (Floriano Peixoto), largo da Sé e a ladeira do Carmo, onde também foram inauguradas novas linhas de tráfego. O Ypiranga, no entanto, só saía às ruas em dias festivos, quando transportava os dirigentes da canadense ou autoridades em visita oficial ao Estado como o presidente Affonso Penna (1906-1909), no mesmo ano de 1906. Mais tarde passou a servir apenas à diretoria da empresa, como carro privativo. Às sextas-feiras, levava o alto escalão da Light para passar o weekend, em Santo Amaro, retomando à cidade no domingo à noite. Depois, passou também a ser um carro de aluguel para o público, ou melhor, para uma restrita faixa de paulistanos que podia se dar ao luxo de, por uma boa quantia, realizar nele festas de batizado, noivado ou casamento.

Carros Diferentes

Mais tarde, em 1926, começaram a circular os bondes fechados, pesadões e pintados de vermelho. Por isso, foram batizados de camarão. Um outro bonde, ainda maior que o camarão, recebeu o apelido de tubarão, que alguns também chamavam de lagosta. E em meio aos peixes e crustáceos, surgiu ainda o jacaré, um bonde todo verde que fazia a linha para Santo Amaro.

E quem pode esquecer o Centex, mais conhecido por Gilda, o bonde que virou a cabeça dos paulistanos em 1947? Ele era o máximo em novidade. Os bancos eram móveis e revestidos de palhinha ou couro. Também não foi esquecida a segurança: o Centex estava equipado com espelhos retrovisores, limpador automático de pára-brisas e, nas janelas, vidros de têmpera especial. Seu espaço interno era maior e a visão para o exterior, quase panorâmica. Foi aí que alguém viu no bonde as formas sensuais da atriz Rita Hayworth, que, desde 1946, fazia furor com o filme Gilda. O bonde Gilda fez sucesso e até inspirou expressões da época. Era comum dizer que uma mulher bonita era "um verdadeiro bonde", assim como "estar de bonde" ou "andar de bonde" significava namorar. Em 1963, o Gilda mudou de cor, ganhou tonalidade alaranjada na carroceria e um amarelo mais claro nas portas. Desse jeito ficou mais parecido com um refrigerante da moda. E assim Gilda virou Crush, apelido que conservou até 1966, quando deixou de circular.

Poder da Canadense

A Light era poderosa e sabia multiplicar seus investimentos. Desde sua fundação, em 1899, a canadense se relacionou muito bem com influentes setores políticos. Rodrigues Alves, por exemplo, em seu período à frente do país (1902-1906), sempre prestigiou suas ações e novas obras. Da mesma forma, Carlos de Campos, presidente do Estado de São Paulo entre 1924 a 1927, deu grande força à tramitação dos projetos, inclusive atuando como advogado da empresa.

As linhas de bondes eram, por sinal, escolhidas mais pelo interesse econômico do que para "servir melhor a população": muito pouco para os bairros periféricos e tudo para as regiões que seriam ocupadas pelos endinheirados da indústria, do comércio e do café. Ou seja, as áreas próximas à avenida Paulista e os Jardins, loteados pela City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. Explica-se: alguns conselheiros da Light faziam parte do Comitê Administrativo da Cia. City. A partir de 1915, os loteamentos da City seriam beneficiados rapidamente por serviços de infra-estrutura, em especial iluminação e bondes. E mais: já em 1910, a Light possuía terrenos em diversos pontos da cidade, além de áreas desapropriadas às margens dos rios Tietê e Pinheiros. Também aí a criação de novas linhas variava de região para região: num primeiro momento, a empresa assentava pequenos trechos de linha, criando uma demanda por imóveis e, claro, conseqüente valorização da área. Em seguida, completava a linha. Grande negócio: os terrenos adquiridos pela Light passavam a valer muito mais.

A Light, porém, nem sempre vencia todos os desafios. Desde a festiva inauguração do primeiro bonde elétrico, em 1900, um problema atormentava seus dirigentes: o preço das tarifas. A partir de 10 de maio de 1909, um decreto municipal havia unificado as tarifas e fixava o preço único de 200 réis. Em 1926, para reforçar as suas pretensões de revisão tarifária, a Light apresentou um ambicioso projeto de reformulação de transportes. E os itens principais do seu estudo compreendiam a aquisição de bondes em quantidade e qualidade adequada e a implantação de linhas em nível elevado e subterrâneo. Resumindo: era a primeira vez que se cogitava de um sistema de transporte de massa e, implicitamente, de um metrô.

Fim Melancólico

Lamentavelmente, para a cidade, o projeto não se concretizou. Frustrada em seus planos e sem ter obtido a revisão de tarifas, a Light direcionou todos os seus recursos e atenções para a geração e distribuição de energia elétrica nos 74 municípios de sua concessão exclusiva. Os transportes em bondes, que tinham sido até então o principal negócio da empresa e a razão de sua criação e de sua vinda para São Paulo, começaram a decair. A Light apenas cumpria tempo para chegar ao término do contrato, previsto para 1941.

Mas o mundo estava em guerra naquele ano. O comércio com o exterior estava paralisado e as suas dificuldades técnicas e financeiras se tornavam insuperáveis. Atendendo às ponderações do prefeito de São Paulo, o governo federal obrigou, por decreto, que a Light permanecesse em todas as suas atividades. Desta forma é que ela ainda prosseguiu até 18 de junho de 1947, quando foi instituído o monopólio dos transportes coletivos na capital. Para administrá-lo foi criada a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos). A zero hora do dia 1º de julho daquele ano, a CMTC assumiu os serviços de bondes.

Na época, o patrimônio estava decadente e ultrapassado. As tarifas haviam permanecido inalteradas por 36 anos e os tempos já eram bem outros: os ônibus e os trolebus concorriam privilegiadamente com os bondes. Foram feitas algumas tentativas de recuperação das suas antigas qualidades. Novos veículos foram adquiridos, os serviços foram reformulados, o pessoal foi renovado, mas já era tarde. Na década de 60 teve início a sistemática extinção de linhas e os serviços foram ficando cada vez mais precários e deficientes. Era o fim de um transporte barato e não poluidor. Hoje, dos velhos bondes paulistanos só restam agora exemplares nos museus e suas imagens feitas, na maioria, por anônimos fotógrafos da Light.

Autores

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