Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 5 - Maio 2009Memória - Roniwalter Jatobá
O dia em que Kipling aportou no Brasil
Vinte anos depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, o escritor inglês Rudyard Kipling visitou o Brasil e ficou deslumbrado com a serra do Mar, em São Paulo
No começo de 1927, o escritor inglês Rudyard Kipling, Prêmio Nobel de Literatura de 1907, visitou o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro no final da tarde de 13 de fevereiro. Foi recebido com festa na Academia Brasileira de Letras, no Petit Trianon. Estavam presentes dezessete acadêmicos, de Afonso Celso a Coelho Neto, além dos embaixadores da Inglaterra, França, Estados Unidos, Argentina, representantes da presidência da República, diplomatas, e Getúlio Vargas, então ministro da Fazenda e futuro ditador e imortal. Kipling transmitiu a "seus colegas os mais vivos sentimentos de gratidão".
Na segunda semana de março, Kipling desembarcou do navio Sierra Córdoba, no porto de Santos (SP), em companhia do advogado Alexander Mackenzie, vice-presidente da Light. Na época, o romancista e poeta já era uma celebridade literária e "cantava as glórias perenes" da Inglaterra, ainda a maior potência colonial do mundo. Em prosa e verso, exaltava a coragem com que os ingleses enveredavam por terras estranhas no continente asiático e, com "sacrifícios", levavam a este mundo o estilo de vida britânico. O canadense Alexander Mackenzie, também súdito de sua majestade (Jorge V), acompanhou Kipling do Rio a São Paulo para mostrar, em Cubatão, o trabalho da Light na serra do Mar. Afinal, uma impressão favorável da usina de Cubatão no Morning Post, de Londres, onde o escritor publicava seus relatos de viagem, seria excelente negócio para a empresa canadense, já que seu capital era também inglês e suas ações, negociadas na Bolsa de Londres.
Desde o início dos anos 20, a Light buscava uma fonte de energia hidrelétrica na serra do Mar. Em 1923, a empresa resolve topar o desafio do Projeto Cubatão, ou seja, encaminhar vários rios (o Tietê, por exemplo) próximos à capital para a serra e aproveitar suas águas na encosta. Ao invés de irem para o interior, seguiriam para o Atlântico, aproveitando a bacia do rio das Pedras como canal natural. Na crista da serra, seriam construídos túneis por onde passariam as águas em direção aos tubos adutores e, dali, na queda de 750 metros, até as turbinas instaladas no sopé da serra (a casa de força). Obra inédita na engenharia do país e de alto custo financeiro, havia ainda a malária, como impedimento brutal à permanência de trabalhadores na serra. O local, considerado pelos engenheiros como o "mar Morto", estaria condenado eternamente à morte de germes e absolutamente inaproveitável para qualquer empreendimento. A Light, no entanto, conseguiu convencer os acionistas a investir no plano. Logo, contratou o sanitarista Arthur Neiva – que acompanhou as obras do canal do Panamá, onde a malária atingiu não só os trabalhadores mas também a população local -- para tratar da endemia. Em 10 de outubro de 1926, foi inaugurado o primeiro gerador. Um enviado especial do Diário da Noite (13/10/1926) desceu a serra e anotou: “Quem viu um faroeste pode fazer idéia perfeita das duas cidades improvisadas em madeira e folha de zinco que S.P. Light Power criou para os seis mil trabalhadores e trezentos e cinqüenta empregados de escritórios que seus serviços ali reclamavam".
Certamente, Alexander Mackenzie não poderia deixar de mostrar tudo isso ao autor dos versos de The Five Nations (1903), inspirados nas empresas britânicas espalhadas "por todos os lugares da Terra". Kipling veio e viu. E ficou deslumbrado com o potencial energético da serra do Mar ("generosas tempestades tropicais"), mas nem tanto com o complexo hidrelétrico construído pela Light. "Ridiculamente fácil", escreveu no Morning Post, impressões também traduzidas pelo diário carioca O Jornal, de Assis Chateaubriand.
Diário De Viagem
Chegamos a Santos, porto de São Paulo, sob a claridade bronzeada de um céu da África Ocidental, subimos um tortuoso rio holandês por entre planícies verdes. Atracamos a um cais onde todos os vapores do mundo descarregavam artigos de luxo, mecanismos e aparelhos e carregavam sacos de café (...).
Montões de bananas desciam o rio em barcaças e se juntavam às cargas verdes de vapores cremes com chaminés pretas e vermelhas. A atmosfera é a do Sul da Índia (...).
Saímos da cidade por uma estrada vermelha, ao lado de uma estrada de ferro de pista dupla, e atravessamos uma região com grandes plantações de bananeiras rumo a uma serra de cimos cobertos de nuvens que levantam uma muralha atrás de Santos, como acontece no Rio e em toda a costa, da Bahia para baixo. Um espigão mostrou uma escoriação rósea dividida por uma linha vertical.
É a nova usina de energia, para onde vamos (...).
O carro entrou por uma estrada lateral que lembrava o sopé do Himalaia, embora o clima fosse tão quente quanto o de Madrasta. Sentiam-se trabalhos de construção nas barreiras e cortes sob a florida vegetação purpúrea da montanha. As valas de terras ao lado fluíam vermelhas e cheias. Paramos numa depressão vermelha aos pés de enormes pinheiros que desciam de um teto plano de nuvens quinhentos metros acima. Bangalôs de telhas e concreto se elevavam por todos os lados. Eram uma prova de que aquilo seria uma sede permanente, embora houvesse também construções de madeira e zinco. Um deles era um refeitório inconfundível e agradável, que lembrava o Canadá, com a nota estranha dos grous que se debruçavam sobre um riozinho espantado, que evidentemente rolava mais água do que aquela para a qual fora feito.
A mistura de países e associações se dividiu por ocasião da comida. A conversa se distribuiu entre homens que tinham vivido pendurados diante da face do penhasco cheio de vegetação acima deles nos últimos dois anos. Tinham sofrido muitas coisas, espantosas, especialmente com o solo traiçoeiro, que é parecido com o queijo Roquefort (...).
Fomos para a nova usina de energia, onde se usam algumas centenas de litros da água represada acima (...).
Há um andar tranqüilo neste edifício onde o ronco das águas liberadas das rodas mal é ouvido. As luzes aqui mudam de cor, caem números como num quadro de hotel mas não podem ser apagados. Os números sobem a certas alturas e ali registram os seus máximos indeléveis. Governadores comunicam aos governados as concessões permitidas e que vantagens foram tomadas. As formas mais grosseiras de pecado elétrico são marcadas em silêncio e desaparecem. Tudo isso se destina a fazer que nada em toda a instalação se arrogue por um só instante o direito de desprender-se das necessidades da carga ou sofra um acidente momentâneo e isso - aí é que está o toque infernal - sem esperar que o Espírito Superior conserte as coisas. Chama-se a isso de ciência! Mas, de vez em quando, as generosas tempestades tropicais mostram o que realmente significa a "produção de energia" (...).
Fomos depois olhar as águas acima do firmamento que parece tão baixo acima de nós. Fomos içados para o alto da montanha num bondinho suspenso ao lado dos canos e toda a vívida paisagem, caindo como o fundo de uma caixa, ficou abaixo até que pudemos avistar a quente Santos e os seus diminutos navios seiscentos metros abaixo (...).
Nosso bondinho nos levou montanha acima para a densa invisibilidade de nuvens mais espessas. À direita, havia a sombra de longas florestas. À esquerda, uma claridade sinistra que sugeria longas chuvaradas. O engenheiro estava um pouco aborrecido com isso porque queria que víssemos a sua cadeia de lagos. Mas como poderia ser de outra maneira? A serra detém e extrai chuva de todas as nuvens que vêm do mar e fazem cair por ano três metros e meio de água. Se não fosse isso, não haveria represa e, tanto quanto nos interessava, não haveria mais que uma lavanderia em ação. Os deuses estavam à procura de efeitos mais requintados (...).
O engenheiro estava, pois, aborrecido. Mas o trabalho dele até então tinha sido ridiculamente fácil. O platô no alto da serra se afasta da costa em pequenos morros que não são muito bons para a agricultura. Tudo o que ele tinha de fazer era fechar o colo de certos vales com concreto e esperar até que a precipitação de três metros e meio por ano os enchesse. Enquanto tratava disso, encontrou um rio e o sistema que seguiam o seu curso pré-histórico para o sul até Buenos Aires. Notando que a bacia do rio não era grande coisa, dragou-a e represou-a um pouco e encaminhou as águas de cheia (pois era um rio temperamental) para as suas represas e, através das suas Rodas Pelton para o pé da serra e, depois, através da planície, para Santos -- para leste e não para o sul. Creio que houve necessidade de um túnel ou dois. Mas, de qualquer modo, ele tem agora uma rede de lagos e mares interiores ligados por seus encanamentos e com uma capacidade de infinita extensão mediante o fechamento de novos vales. As necessidades estão sempre em expansão à medida que São Paulo descobre que pode fazer as coisas por si mesmo e mais uma estrada de ferro é eletrificada para que as greves nas minas de carvão inglesas não a venham fechar. E a coisa mais simples do mundo é colocar alguns “Abu Bijl” a mais nas suas prisões de concreto (...).
Mas esqueceram que o mistério que agora anda para cima e para baixo pelos fios poderá daqui a alguns anos ser transmitido pelo ar para navios e a indústria marítima será representada por peritos diante de painéis de instrumentos, distribuindo em ondas direcionais a energia contratada por várias linhas de navegação. Nesse tempo, as tempestades dos mares serão traduzidas em linhas ascendentes e descendentes nos indicadores. Nessa época, os distantes comandantes se limitarão a regular a energia de que precisam, do mesmo modo que os seus guinchos hoje tratam os cabos de atracação.
Nessa época, que será anunciada pelo haraquiri dos barões do petr6leo, o Brasil, com o seu potencial ilimitado de energia elétrica, venderá eletricidade dos 25 graus de Latitude Norte aos 60 de Latitude Sul de ambos os lados do seu continente, até ao meridiano 180 a oeste e a leste, até o outro lado da árida África.
Explico tudo isso ao engenheiro em breves palavras. Mas ele, que passou a vida fazendo coisas inconcebíveis, disse que eu era "visionário" e continuou a falar do seu mísero meio milhão a mais de cavalos.
Milhões De Eucaliptos
Na verdade, o engenheiro F.S. Hyde, que viabilizou o projeto e acompanhou Kipling, esteve chateado o tempo inteiro. Para Kipling, "as generosas tempestades tropicais" mostravam o que realmente significava "a produção de energia". "A grande obra" da Light não havia sido tão notada pelo famoso autor. "A coisa mais fácil do mundo é colocar alguns “Abu Bijl” a mais nas suas prisões de concretos", escreveu Kipling.
O técnico lightiano também não gostou de outro fato acontecido durante a visita. Empregados da Light contaram a Kipling que "tinham tido algumas dificuldades com aquela encosta depois de havê-la desmatada para o assentamento dos canos". No momento, plantavam milhões de eucaliptos para dar mais coesão ao solo, mas as formigas tinham gostado também da nova árvore e estavam pensando em matá-las com gases. "Quando se começa a interferir com a natureza, não se pode mais parar", acrescentaram.
Subúrbios Paulistanos
Em São Paulo, Rudyard Kipling ficou hospedado no Hotel Esplanada, um dos mais chiques da cidade, localizado na praça Ramos de Azevedo (atrás do Teatro Municipal), onde está hoje a sede do grupo Votorantim. Foi a uma recepção no São Paulo Athletic Clube e visitou, "na extremidade de um dos intermináveis subúrbios de São Paulo, uma fazenda de criação de cobras onde se preparam e distribuem soros contra as dentadas das cobras venenosas, que são abundantes por aqui” -- o Instituto Butantã. Rodou de carro pela cidade: "O trânsito -- muitas das ruas internas são de mão única -- é regulado por homens da polícia, de cassetete e caderno na mão (esta última parte é uma fraqueza dos latinos no mundo inteiro), encarregados dos sinais luminosos. Deixam o trânsito ultrapassar de um lado para outro indiferentemente, e se espantam de que o índice de acidentes não baixe". Viajou para uma fazenda de café, no interior paulista. Escreveu um poema sobre a usina de Cubatão ("Canção do dínamo") e, entre outros, a "Canção das bananas". Antes de seguir para o Uruguai e Argentina, conversou muito: "O brasileiro diz que o seu país é cheio de corrupção". But that is another story (mas isto é outra história), como terminam muitos contos de Kipling.
Quem Foi Kipling
Rudyard Kipling nasceu em Bombaim, Índia, em 1865. De uma família de origem inglesa, viveu ali até os seis anos de idade, quando foi enviado à Inglaterra para estudar. Em 1882, retomou ao seu país e dedicou-se ao jornalismo e à ficção. Em 1907, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Considerado o romancista e poeta do "triunfante imperialismo britânico da época vitoriana", escreveu uma vasta obra. Viajante incansável, percorreu países da África, Ásia e Américas, deixando suas impressões em volumes como O livro da selva (1894), Kim (1901), ambos traduzidos por Monteiro Lobato, Histórias para crianças (1902) e muitas outras narrativas como Cenas brasileiras (1927). "Grande repórter, observador agudo dos fatos sem muita penetração psicológica, tomou-se o poeta do Império Britânico”, observou o crítico Otto Maria Carpeaux. "O seu ideal era a disciplina do exército colonial, que garante o domínio da raça superior dos ingleses. Loyalty é o seu lema, bem diferente da Fidelity de Joseph Conrad (1857-1924): certa brutalidade que se julga heróica. É o feudalismo das classes médias, o futuro fascismo (...). Kipling impõe-se à sua época pela atitude de professeur d' energie e pela arte que tem toda a frescura do plein air".
O escritor argentino Jorge Luis Borges o admirava e até justificou suas afirmações ("raça superior", "eleição dos anglo-saxões por Deus", o Império como "burden of the white man - o fardo do homem branco") dizendo que um escritor não deveria ser julgado por suas idéias. "Ele deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém", disse Borges. "Quanto a idéias, afinal de contas não é muito importante se um escritor tem esta ou aquela opinião política, porque uma obra se sairá bem apesar delas, como no caso de Kim, de Kipling. Considere a idéia do Império Britânico: bem, em Kim, penso que as personagens a quem o leitor realmente se afeiçoa não são inglesas, mas muitos dos indianos, dos muçulmanos. Acho que são pessoas mais agradáveis. E isso é porque ele as considerava - não! não! não porque as considerava mais agradáveis - porque as sentia mais agradáveis".
Rudyard Kipling ficou no Brasil entre fevereiro e março de 1927. Depois, seguiu para outros países, entre eles Argentina e Uruguai. Segundo R. Magalhães Júnior, da Academia Brasileira de Letras, a sua viagem "parece ter tido como principal conseqüência a promoção de sua obra, com mais de quarenta volumes, em nosso país, onde até então só era conhecida através de edições inglesas, francesas ou espanholas, ou de um outro trabalho avulso, traduzido e estampado em publicações literárias".
Kipling faleceu em Sussex, Grã-Bretanha, em 1936.
No começo de 1927, o escritor inglês Rudyard Kipling, Prêmio Nobel de Literatura de 1907, visitou o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro no final da tarde de 13 de fevereiro. Foi recebido com festa na Academia Brasileira de Letras, no Petit Trianon. Estavam presentes dezessete acadêmicos, de Afonso Celso a Coelho Neto, além dos embaixadores da Inglaterra, França, Estados Unidos, Argentina, representantes da presidência da República, diplomatas, e Getúlio Vargas, então ministro da Fazenda e futuro ditador e imortal. Kipling transmitiu a "seus colegas os mais vivos sentimentos de gratidão".
Na segunda semana de março, Kipling desembarcou do navio Sierra Córdoba, no porto de Santos (SP), em companhia do advogado Alexander Mackenzie, vice-presidente da Light. Na época, o romancista e poeta já era uma celebridade literária e "cantava as glórias perenes" da Inglaterra, ainda a maior potência colonial do mundo. Em prosa e verso, exaltava a coragem com que os ingleses enveredavam por terras estranhas no continente asiático e, com "sacrifícios", levavam a este mundo o estilo de vida britânico. O canadense Alexander Mackenzie, também súdito de sua majestade (Jorge V), acompanhou Kipling do Rio a São Paulo para mostrar, em Cubatão, o trabalho da Light na serra do Mar. Afinal, uma impressão favorável da usina de Cubatão no Morning Post, de Londres, onde o escritor publicava seus relatos de viagem, seria excelente negócio para a empresa canadense, já que seu capital era também inglês e suas ações, negociadas na Bolsa de Londres.
Desde o início dos anos 20, a Light buscava uma fonte de energia hidrelétrica na serra do Mar. Em 1923, a empresa resolve topar o desafio do Projeto Cubatão, ou seja, encaminhar vários rios (o Tietê, por exemplo) próximos à capital para a serra e aproveitar suas águas na encosta. Ao invés de irem para o interior, seguiriam para o Atlântico, aproveitando a bacia do rio das Pedras como canal natural. Na crista da serra, seriam construídos túneis por onde passariam as águas em direção aos tubos adutores e, dali, na queda de 750 metros, até as turbinas instaladas no sopé da serra (a casa de força). Obra inédita na engenharia do país e de alto custo financeiro, havia ainda a malária, como impedimento brutal à permanência de trabalhadores na serra. O local, considerado pelos engenheiros como o "mar Morto", estaria condenado eternamente à morte de germes e absolutamente inaproveitável para qualquer empreendimento. A Light, no entanto, conseguiu convencer os acionistas a investir no plano. Logo, contratou o sanitarista Arthur Neiva – que acompanhou as obras do canal do Panamá, onde a malária atingiu não só os trabalhadores mas também a população local -- para tratar da endemia. Em 10 de outubro de 1926, foi inaugurado o primeiro gerador. Um enviado especial do Diário da Noite (13/10/1926) desceu a serra e anotou: “Quem viu um faroeste pode fazer idéia perfeita das duas cidades improvisadas em madeira e folha de zinco que S.P. Light Power criou para os seis mil trabalhadores e trezentos e cinqüenta empregados de escritórios que seus serviços ali reclamavam".
Certamente, Alexander Mackenzie não poderia deixar de mostrar tudo isso ao autor dos versos de The Five Nations (1903), inspirados nas empresas britânicas espalhadas "por todos os lugares da Terra". Kipling veio e viu. E ficou deslumbrado com o potencial energético da serra do Mar ("generosas tempestades tropicais"), mas nem tanto com o complexo hidrelétrico construído pela Light. "Ridiculamente fácil", escreveu no Morning Post, impressões também traduzidas pelo diário carioca O Jornal, de Assis Chateaubriand.
Diário De Viagem
Chegamos a Santos, porto de São Paulo, sob a claridade bronzeada de um céu da África Ocidental, subimos um tortuoso rio holandês por entre planícies verdes. Atracamos a um cais onde todos os vapores do mundo descarregavam artigos de luxo, mecanismos e aparelhos e carregavam sacos de café (...).
Montões de bananas desciam o rio em barcaças e se juntavam às cargas verdes de vapores cremes com chaminés pretas e vermelhas. A atmosfera é a do Sul da Índia (...).
Saímos da cidade por uma estrada vermelha, ao lado de uma estrada de ferro de pista dupla, e atravessamos uma região com grandes plantações de bananeiras rumo a uma serra de cimos cobertos de nuvens que levantam uma muralha atrás de Santos, como acontece no Rio e em toda a costa, da Bahia para baixo. Um espigão mostrou uma escoriação rósea dividida por uma linha vertical.
É a nova usina de energia, para onde vamos (...).
O carro entrou por uma estrada lateral que lembrava o sopé do Himalaia, embora o clima fosse tão quente quanto o de Madrasta. Sentiam-se trabalhos de construção nas barreiras e cortes sob a florida vegetação purpúrea da montanha. As valas de terras ao lado fluíam vermelhas e cheias. Paramos numa depressão vermelha aos pés de enormes pinheiros que desciam de um teto plano de nuvens quinhentos metros acima. Bangalôs de telhas e concreto se elevavam por todos os lados. Eram uma prova de que aquilo seria uma sede permanente, embora houvesse também construções de madeira e zinco. Um deles era um refeitório inconfundível e agradável, que lembrava o Canadá, com a nota estranha dos grous que se debruçavam sobre um riozinho espantado, que evidentemente rolava mais água do que aquela para a qual fora feito.
A mistura de países e associações se dividiu por ocasião da comida. A conversa se distribuiu entre homens que tinham vivido pendurados diante da face do penhasco cheio de vegetação acima deles nos últimos dois anos. Tinham sofrido muitas coisas, espantosas, especialmente com o solo traiçoeiro, que é parecido com o queijo Roquefort (...).
Fomos para a nova usina de energia, onde se usam algumas centenas de litros da água represada acima (...).
Há um andar tranqüilo neste edifício onde o ronco das águas liberadas das rodas mal é ouvido. As luzes aqui mudam de cor, caem números como num quadro de hotel mas não podem ser apagados. Os números sobem a certas alturas e ali registram os seus máximos indeléveis. Governadores comunicam aos governados as concessões permitidas e que vantagens foram tomadas. As formas mais grosseiras de pecado elétrico são marcadas em silêncio e desaparecem. Tudo isso se destina a fazer que nada em toda a instalação se arrogue por um só instante o direito de desprender-se das necessidades da carga ou sofra um acidente momentâneo e isso - aí é que está o toque infernal - sem esperar que o Espírito Superior conserte as coisas. Chama-se a isso de ciência! Mas, de vez em quando, as generosas tempestades tropicais mostram o que realmente significa a "produção de energia" (...).
Fomos depois olhar as águas acima do firmamento que parece tão baixo acima de nós. Fomos içados para o alto da montanha num bondinho suspenso ao lado dos canos e toda a vívida paisagem, caindo como o fundo de uma caixa, ficou abaixo até que pudemos avistar a quente Santos e os seus diminutos navios seiscentos metros abaixo (...).
Nosso bondinho nos levou montanha acima para a densa invisibilidade de nuvens mais espessas. À direita, havia a sombra de longas florestas. À esquerda, uma claridade sinistra que sugeria longas chuvaradas. O engenheiro estava um pouco aborrecido com isso porque queria que víssemos a sua cadeia de lagos. Mas como poderia ser de outra maneira? A serra detém e extrai chuva de todas as nuvens que vêm do mar e fazem cair por ano três metros e meio de água. Se não fosse isso, não haveria represa e, tanto quanto nos interessava, não haveria mais que uma lavanderia em ação. Os deuses estavam à procura de efeitos mais requintados (...).
O engenheiro estava, pois, aborrecido. Mas o trabalho dele até então tinha sido ridiculamente fácil. O platô no alto da serra se afasta da costa em pequenos morros que não são muito bons para a agricultura. Tudo o que ele tinha de fazer era fechar o colo de certos vales com concreto e esperar até que a precipitação de três metros e meio por ano os enchesse. Enquanto tratava disso, encontrou um rio e o sistema que seguiam o seu curso pré-histórico para o sul até Buenos Aires. Notando que a bacia do rio não era grande coisa, dragou-a e represou-a um pouco e encaminhou as águas de cheia (pois era um rio temperamental) para as suas represas e, através das suas Rodas Pelton para o pé da serra e, depois, através da planície, para Santos -- para leste e não para o sul. Creio que houve necessidade de um túnel ou dois. Mas, de qualquer modo, ele tem agora uma rede de lagos e mares interiores ligados por seus encanamentos e com uma capacidade de infinita extensão mediante o fechamento de novos vales. As necessidades estão sempre em expansão à medida que São Paulo descobre que pode fazer as coisas por si mesmo e mais uma estrada de ferro é eletrificada para que as greves nas minas de carvão inglesas não a venham fechar. E a coisa mais simples do mundo é colocar alguns “Abu Bijl” a mais nas suas prisões de concreto (...).
Mas esqueceram que o mistério que agora anda para cima e para baixo pelos fios poderá daqui a alguns anos ser transmitido pelo ar para navios e a indústria marítima será representada por peritos diante de painéis de instrumentos, distribuindo em ondas direcionais a energia contratada por várias linhas de navegação. Nesse tempo, as tempestades dos mares serão traduzidas em linhas ascendentes e descendentes nos indicadores. Nessa época, os distantes comandantes se limitarão a regular a energia de que precisam, do mesmo modo que os seus guinchos hoje tratam os cabos de atracação.
Nessa época, que será anunciada pelo haraquiri dos barões do petr6leo, o Brasil, com o seu potencial ilimitado de energia elétrica, venderá eletricidade dos 25 graus de Latitude Norte aos 60 de Latitude Sul de ambos os lados do seu continente, até ao meridiano 180 a oeste e a leste, até o outro lado da árida África.
Explico tudo isso ao engenheiro em breves palavras. Mas ele, que passou a vida fazendo coisas inconcebíveis, disse que eu era "visionário" e continuou a falar do seu mísero meio milhão a mais de cavalos.
Milhões De Eucaliptos
Na verdade, o engenheiro F.S. Hyde, que viabilizou o projeto e acompanhou Kipling, esteve chateado o tempo inteiro. Para Kipling, "as generosas tempestades tropicais" mostravam o que realmente significava "a produção de energia". "A grande obra" da Light não havia sido tão notada pelo famoso autor. "A coisa mais fácil do mundo é colocar alguns “Abu Bijl” a mais nas suas prisões de concretos", escreveu Kipling.
O técnico lightiano também não gostou de outro fato acontecido durante a visita. Empregados da Light contaram a Kipling que "tinham tido algumas dificuldades com aquela encosta depois de havê-la desmatada para o assentamento dos canos". No momento, plantavam milhões de eucaliptos para dar mais coesão ao solo, mas as formigas tinham gostado também da nova árvore e estavam pensando em matá-las com gases. "Quando se começa a interferir com a natureza, não se pode mais parar", acrescentaram.
Subúrbios Paulistanos
Em São Paulo, Rudyard Kipling ficou hospedado no Hotel Esplanada, um dos mais chiques da cidade, localizado na praça Ramos de Azevedo (atrás do Teatro Municipal), onde está hoje a sede do grupo Votorantim. Foi a uma recepção no São Paulo Athletic Clube e visitou, "na extremidade de um dos intermináveis subúrbios de São Paulo, uma fazenda de criação de cobras onde se preparam e distribuem soros contra as dentadas das cobras venenosas, que são abundantes por aqui” -- o Instituto Butantã. Rodou de carro pela cidade: "O trânsito -- muitas das ruas internas são de mão única -- é regulado por homens da polícia, de cassetete e caderno na mão (esta última parte é uma fraqueza dos latinos no mundo inteiro), encarregados dos sinais luminosos. Deixam o trânsito ultrapassar de um lado para outro indiferentemente, e se espantam de que o índice de acidentes não baixe". Viajou para uma fazenda de café, no interior paulista. Escreveu um poema sobre a usina de Cubatão ("Canção do dínamo") e, entre outros, a "Canção das bananas". Antes de seguir para o Uruguai e Argentina, conversou muito: "O brasileiro diz que o seu país é cheio de corrupção". But that is another story (mas isto é outra história), como terminam muitos contos de Kipling.
Quem Foi Kipling
Rudyard Kipling nasceu em Bombaim, Índia, em 1865. De uma família de origem inglesa, viveu ali até os seis anos de idade, quando foi enviado à Inglaterra para estudar. Em 1882, retomou ao seu país e dedicou-se ao jornalismo e à ficção. Em 1907, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Considerado o romancista e poeta do "triunfante imperialismo britânico da época vitoriana", escreveu uma vasta obra. Viajante incansável, percorreu países da África, Ásia e Américas, deixando suas impressões em volumes como O livro da selva (1894), Kim (1901), ambos traduzidos por Monteiro Lobato, Histórias para crianças (1902) e muitas outras narrativas como Cenas brasileiras (1927). "Grande repórter, observador agudo dos fatos sem muita penetração psicológica, tomou-se o poeta do Império Britânico”, observou o crítico Otto Maria Carpeaux. "O seu ideal era a disciplina do exército colonial, que garante o domínio da raça superior dos ingleses. Loyalty é o seu lema, bem diferente da Fidelity de Joseph Conrad (1857-1924): certa brutalidade que se julga heróica. É o feudalismo das classes médias, o futuro fascismo (...). Kipling impõe-se à sua época pela atitude de professeur d' energie e pela arte que tem toda a frescura do plein air".
O escritor argentino Jorge Luis Borges o admirava e até justificou suas afirmações ("raça superior", "eleição dos anglo-saxões por Deus", o Império como "burden of the white man - o fardo do homem branco") dizendo que um escritor não deveria ser julgado por suas idéias. "Ele deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém", disse Borges. "Quanto a idéias, afinal de contas não é muito importante se um escritor tem esta ou aquela opinião política, porque uma obra se sairá bem apesar delas, como no caso de Kim, de Kipling. Considere a idéia do Império Britânico: bem, em Kim, penso que as personagens a quem o leitor realmente se afeiçoa não são inglesas, mas muitos dos indianos, dos muçulmanos. Acho que são pessoas mais agradáveis. E isso é porque ele as considerava - não! não! não porque as considerava mais agradáveis - porque as sentia mais agradáveis".
Rudyard Kipling ficou no Brasil entre fevereiro e março de 1927. Depois, seguiu para outros países, entre eles Argentina e Uruguai. Segundo R. Magalhães Júnior, da Academia Brasileira de Letras, a sua viagem "parece ter tido como principal conseqüência a promoção de sua obra, com mais de quarenta volumes, em nosso país, onde até então só era conhecida através de edições inglesas, francesas ou espanholas, ou de um outro trabalho avulso, traduzido e estampado em publicações literárias".
Kipling faleceu em Sussex, Grã-Bretanha, em 1936.
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