Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 9 - Setembro 2009

Conto - Murilo Carvalho


CANDIDO PORTINARI, Colheita de Café, 1958
Óleo sobre madeira, 60 x 73 cm


Chorar em silêncio

"Craquenta, mão craquenta, craquenta, craquenta", e as lágrimas arrebentavam, grossas e mornas e ela enterrava os olhos na fronha e queria morrer e sofria todas as dores, porque ela tinha acabado de fazer quinze anos, amava e estava ali, no quarto frio do barraco, chorando, enquanto ele estava na festa e ela ali, com suas mãos craquentas, chorando lágrimas que nasciam ardidas, fruto de fogo brotando dos olhos azuis, sem agüentar a ausência, arrebentando de raiva das mãos: craquentas, craquentas. Vontade de acabar com tudo, ser diferente, não ter que ir panhar o café mal debruçava a madrugada, os braços rijos de frio, a boca abrindo de sono, o chacoalhar enjoado do caminhão, a comida velha, as costas doendo, o cheiro do melado do café escorrendo viscoso pelos dedos, entrando debaixo das unhas, pretejando a mão, ressecando a pele macia, transformando sua mão em coisa velha, antiga, enrugada como caroço de pêssego. Mas o trabalho era a vida. Dela, ali chorando, da mãe, do pai, dos irmãos. E tinha que chorar baixo, muito baixo para que ninguém escutasse, mas não encontrava o rumo do silêncio e o choro saía aos arrancos, como arrotos, e todos ouviam, deitados no escuro, a mãe, o pai, os irmãos, todos ouviam seu choro, mas todos estavam silenciosos, cansados demais para fazer ou dizer alguma coisa. Esperavam calados que ela dormisse, pesada das lágrimas e então tudo ficasse em silêncio de novo, como todas as noites. Mas aquela era uma outra noite, mais fria, mais escura, em que ela chorava de ódio, de desespero, chorava pelas mãos craquentas que não tinha coragem de mostrar na festa, não tinha coragem de deixar que ele pegasse nelas, as acariciasse. Como poderia sentir-lhe a pele, o bigode macio, as ondas do cabelo, com aquelas mãos grossas do melado do café, aquelas mãos de unhas escuras, incapazes de alguma doçura, ríspida, rascante? Chorava porque ele estava na festa, esperando por ela, mas doía a vergonha das mãos escuras e não tinha coragem de pegar nas mãos dele, na hora da dança, talvez ele preferisse outra, de mãos mais suaves, que não trabalhasse como ela, madrugada atrás de madrugada, gastando as mãos no melado do café maduro. As lágrimas vinham e era como se uma dor funda cortasse o silêncio em pedaços gelados e os fosse enfiando no coração de todos os que, deitados, escutavam o choro dela. Era escuro, muito escuro, e vinha o vento e dava o vento e dava o fino das montanhas, rinchando pelas frinchas, cavalo doido e negro a galopar entre as camas do quarto estreito, gelando as orelhas mal tapadas pelos cobertores encardidos. Todos estavam com muito frio, aquela noite. Ela chorava, pensando na festa, na alegria, nos olhos dele, na roupa azul que talvez estivesse usando, no vestido branco que ela ia usar, que a mãe tinha costurado nos pedaços de tempo sobrados do trabalho na roça, do cozinhar da comida, do lavar da roupa, do cuidar dos filhos. Pensava nele, na voz que apenas entreouvira, no cheiro que decerto recenderia de seus cabelos. Pensava nas amigas divertindo-se na festa, nos perfumes que elas estariam usando, no perfume que ela mesma usaria e sentia ódio e vergonha misturados ao desejo de levantar-se, vestir o vestido e ir, correndo ir, até o baile, e que as mãos fossem outras, macias, que ela não precisasse esconder, que pudesse usá-las sem medo, para acariciar de leve o rosto dele, sentir a textura da pele onde a barba nascia, e quem sabe correr com as pontas dos dedos as curvas do queixo, as curvas dos lábios e quem sabe... Mas ela estava ali, encolhida de frio e vergonha, as mãos craquentas agarrando o travesseiro e em volta o cheiro do suor dos irmãos, da mãe, do pai, que esperavam em silêncio que ela dormisse. Mas aquela noite ela não ia dormir, porque aquela era uma noite grande demais para ela, que acabara de fazer quinze anos e estava apaixonada.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix