Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - José Miranda Filho

Alex da Silva, "Lhe Falo do Sertão", 2009, acrylic on canvas, 32" x 32"


O Retrato do Sertão - 1

O sertão brasileiro, recanto imensurável de planícies desertas é a região que ostenta o menor índice pluviométrico do país. A escassez de chuvas deve-se a influência nefasta do relevo. Entre os meses de outubro e março, ocasionalmente pode ocorrer chuvas em algumas áreas. Mas são os ventos alísios que sopram do hemisfério norte que trazem perspectivas de chuvas entre os meses de dezembro e abril. Porém, nem sempre isso acontece e a estiagem pode se prolongar por meses e anos, dando origem à seca e causando tragédias cíclicas, tempo em que o sertanejo com o coração partido, abandona suas terras, sua família e migra para outras regiões em busca da sobrevivência. O imbuzeiro e o mandacaru começam a dar sinais de cansaço, enquanto o urubu revigora seus vôos à procura de carcaças de animais abatidos pela sede e escassez de alimento. Alguns frutos sobrevivem para não estarrecer de vez a esperança do sertanejo.

O sertão brasileiro abrange grande parte dos Estados do Nordeste, região que nos inspirou esta narrativa. Nesse rincão de antigo domínio europeu surgiram as primeiras revoltas de inconformismo do povo nordestino: Desde o motim dos Quilombos à revolta de Canudos, até o cangaço de Lampião. Dos inúmeros rios, riachos, açudes e brejos existentes, alguns são temporários, enquanto outros sobrevivem graças à benesse da natureza que lhes dá origem em Estados de maior relevância e de alto índice pluviométrico. Assim vive o sertanejo cercado de lendas e de lutas.

Apoiada numa bengala de pau com solado de couro de boi para não escorregar, ela se dirigiu ao alpendre da casa construída de taipas, e sob a janela sentou-se num banquinho de madeira de três pés feito por um dos filhos. De lá observava e comandava todo o movimento do roçado. Com mãos trêmulas pegou o cachimbo de barro, colocou o pouco do tabaco que ainda restava do bornal, deu duas baforadas esfumaçadas que se esvaíram rapidamente no ar e cuspiu longamente sobre o piso de chão de barro empedrado pelo tempo. Ao seu redor algumas galinhas ciscavam a procura de restos de alimento que se juntou na toalha retirada da mesa de madeira e lancada no terreiro. Sentiu-se Nhá Marina naquele momento aliviada dos percalços da vida. Prendiam lhes os cabelos brancos e escassos que ainda lhes restavam, um atavio de chifres de boi, enfeado, velho e descorado, recordação dos tempos de mocinha.

Nhá Marina, como todos a conheciam, cujo nome de batismo era Maria Ferreira de Albuquerque Santiago tinha 102 anos de idade. Nasceu em 1908, nos arredores do município de Angico, sertão de Alagoas, no sitio Poços dos Anjos. Viúva por duas vezes, teve dez filhos e oito netos. Bisnetos estavam por vir, filhos de Agamenon e Giselda. Ao anoitecer, sob a luz das estrelas e da lua quando era verão bruto no sertão, rodeada pelos filhos e netos gostava de contar a saga de Lampião que o conheceu quando tinha doze anos de idade.

Naquele pedacinho de terra, cizânia do sertão bravio esquecido de todos e longe da civilização, ela criou os filhos com ajuda do segundo marido, Zé da Vila, cabra macho por quem se apaixonou quando o conheceu numa festa de São João. “O primeiro marido, pai de sete dos seus dez filhos, havia morrido por uma chifrada do boi “cabreiro”,um dos zebus mais ferozes do “seu” Quincas”, fazendeiro, compadre e amigo para quem trabalhava.

-Bás tarde Nhá Marina, como vai? Disse Zequinha da venda.

Ergueu os olhos assustada, e num ímpeto de curiosidade, indagou:

- Quem é você?

- Sou o Zé, filho de Maninha...Zequinha da venda. Vim trazer umas coisinhas que a mãe mandou pra Senhora.

-Senta aqui, meu fio. Como vai sua mãe?

- Ela lhe mandou lembranças e recomendou-lhe repouso.

- Pois diga pra sua mãe que é ela quem precisa de descanso. Eu tô muito bem, de manhã já dei mio pras galinhas, pras cabras, rocei, cuidei do terreiro, da chafurda, fiz o armoço prus fios, e agora tô baforando meu cachimbo.

Diante disso, Zé da venda, entregou-lhe a encomenda e se mandou, mais ligeiro do que chegou.

Catou os óculos de casca de tartaruga confeccionados por um artesão local, o mesmo que talhava as peças de Lampião, e colocou-os sobre os olhos verdes e grandes, até que pudesse abrir pacientemente a sacola com as mãos rígidas e calosas que os anos lhe proporcionaram.

Nhá Marina contava que quando tinha doze anos, Lampião e seu bando chegavam de repente nas redondezas e aliciavam jovens como ela e as levavam ao acampamento para participarem das rodilhas que costumavam fazer depois de investidas vitoriosas aos sítios da região.

Certo dia já tardezinha, os cabras de Lampião vieram à sua casa e com a permissão do pai, levou-a com os olhos vendados para não identificar o lugar.

- Numa noite linda de lua cheia, eu, Izilda, Mariinha, Elzirinha, Manelita e Estelinha, estávamos brincando de rodas no terreiro quando ouvimos o tropel de cavalos se aproximando - contava Nhá Marina aos filhos e netos.

- Chegaram na maior confusão e foram logo apeando dos cavalos e perguntando pelo pai.

- Cadê o compadre Zé? Quis saber um dos cabras de nome Colchete.

- Ele está na chafurda cuidando dos porcos, respondeu Nhá Marina, enquanto as outras meninas correram para o jirau temerosas de serem molestadas.

Com o consentimento de Zé Ferreira, pai de Nhá Marina, elas foram levadas ao esconderijo de Virgulino para participarem da festa de seu casamento com Maria Bonita.

Dançaram e se divertiram a noite toda com os “cabras” que chalaceavam ao redor da fogueira ardente, no esconderijo, em meio a mata virgem.

- Naquela noite, sob estrelas luzentes no meio da caatinga ao entorno da fogueira, dançamos com os cabras, alguns já embriagados de tanto beberem – prosseguia Nhá Marina com suas estórias. No dia seguinte, ninguém queria voltar pra casa. Queríamos que a festa continuasse, de tão boa que estava. Comida não faltava, tinha de tudo: bode assado, cabrito, carne de boi, feijão, doce de mandioca, milho assado...e a sanfona adoidada que Corisco escorregava nos dedos, contava baforando o cachimbo de barro que rolava de um canto ao outro da boca desdentada.

Quando alguém lhe perguntava se não sentiram receio de serem molestadas, ela respondia com um sorriso maroto que ia de um canto ao outro da boca:

- O capitão Virgulino era um homem sério, honesto e de palavra. Em nenhum momento fomos “bulidas”, graças à vigilância que ele sempre mantinha sobre seus cabras. Terminada a festa, ele ordenou que nos trouxessem de volta para casa, cada uma montada na garupa de um cavalo. Recomendou aos cabras que não esquecessem de agradecer a nossos pais pela confiança e o respeito que tinham por ele.

Cada menina recebeu um mimo do Capitão, contava Nhá Marina. O dela era uma tiara confeccionada em chifre de boi ornada com pequenas estrelas de prata que guardava cuidadosamente num baú de madeira debaixo da cama, ao lado do pinico de zinco. Tanto se orgulhava de usá-lo que ao colocá-lo sobre os escassos cabelos brancos, ficava horas e horas diante do pequeno espelho pendurado à cabeceira de sua cama. Usava-o notadamente nas festas de São João e cantorias de rodas nas noites de lua cheia no terreiro de chão seco...

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix