Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto

Joan Brossa: pistola

Uma Vida Ao Pé Da Letra


Ao contrário do que acontece com a maioria dos escritores e poetas cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma nítida tendência à acomodação – e que devido a tal situação, mais se mostram merecedores de prêmios e comendas –, há uma outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os espécimes de semelhante linhagem preservam, a contragosto do solo, incorruptíveis, sua vitalidade e juventude.

Enquanto os primeiros baixam a guarda a partir do momento em que chegam às portas da “impudente idade do bom senso”, os segundos lesam a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente (Juan Ramón Jiménez dixit). E desde o irredutivelmente pessoal de suas propostas estéticas estabelecem, por assim dizer, uma tradição de ruptura  ou de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos. Enfim, eles conservam intactos dentro de si o jovem poeta e sua ininterrupta curiosidade. A propósito disso, Ezra Pound propõe o seguinte: “Quando a curiosidade do escritor morre, ele está perdido – ele poderá fazer não importa qual acrobacia, mas nada escreverá de vivo se a sua curiosidade estiver morta”.

Numa lista provisória e prospectiva de representantes deste grupo de artistas que não se deixaram apanhar pelos estados frouxos da maturidade amortecida, poderiam ser incluídos, por exemplo, Bob Brown, Pierre Garnier, Nicanor Parra, Edgard Braga e, ainda, Manuel Bandeira e Murilo Mendes (ambos com ressalvas), entre outros. Entretanto, o meu cabeça-de-chave seria o poeta catalão Joan Brossa (1919-1998), de todos o que menos se aferra à figura do cidadão beletrista.

Faço estas considerações, motivado pela leitura do breve, porém instigante volume Poesia Vista, de Joan Brossa, lançamento da Amauta Editorial e da Ateliê Editorial. Como a bibliografia do poeta é vasta e sua curiosidade e atitude de vanguarda, o fizeram aventurar-se pelos mais variados tipos de discursos poéticos – fez “poemas escritos”, poesia visual, poemas-objeto, poesia cênica, roteiros cinematográficos, poesia transitável para espaços públicos e, até mesmo, instalações –, o que se tem traduzido e publicado de sua produção se caracteriza pela seleção daquelas peças mais representativas de cada uma dessas veredas.

Esta é a segunda vez que parte de sua poesia é enfeixada em livro no Brasil. Em 1999 foi lançado Poemas Civis pela Sette Letras, tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. No entanto, João Cabral de Melo Neto foi o poeta descobridor de Joan Brossa e seu primeiro divulgador para uma audiência brasileira. Em 1950, Cabral publica em Barcelona Sonets de Caruixa, do amigo catalão e, no ano seguinte, escreve o prólogo de Em va fer Joan Brossa.

A seleção e tradução do material do presente volume, está a cargo de Vanderley Mendonça e os prefácios de Glòria Bordons e Haroldo de Campos demarcam com precisão o aspecto singular da linguagem de Brossa no quadro mais abrangente das revoltas e subversões político-estéticas do século vinte. Poesia Vista, que tem pouco mais de 120 páginas, está dividido em três seções: (1) A Letra – poemas visuais; (2) A Palavra – poemas escritos; e (3) A Forma – poemas-objeto. A opção pelo fracionamento, além de emprestar à antologia um esquema de orientação e coerência, tenta dar conta dos múltiplos modos de linguagem que estão em jogo nos experimentos de Joan Brossa, bem como sublinhar as particularidades dos procedimentos sígnicos específicos de cada projeto. Não obstante, as três seções podem ser vistas simplesmente como diversões ou traduções possíveis, num lance de fricção, para esta figura transformista que vem a ser a linguagem-brossa-nova, ela mesma, galhofeiramente intersemiótica. Isto é, o indecidível da sua informação estética, o pensamento-arte do poeta-prestigitador da Catalunha é aquilo que aprendemos a perder no processo tradutório da leitura criativa, onde a poesia-coisa é vertida da letra para a palavra e do translado desta para a forma instável.

O poema transversal de Joan Brossa se projeta como protéico ser de linguagem. Agora, o poema se presentifica como objeto, logo depois é traço visual, noutro lugar muda em dactiloscrito. Não raro, a metamorfose do poema se alarga em anamorfose quando, por exemplo, no poema-objeto “Kembo” (pg. 106), nos deparamos com um “relógio” de seis ponteiros, ou, ainda, quando Brossa inventa a (sua) “Roda” (pg. 119) descaradamente quadrada, não obstante o ligeiro arredondado dos seus ângulos. Forma e função se dissipam. O objeto é escovado, lavado de si mesmo. Mas, a deformação radical operada por este artesanato equívoco visa muito mais o âmbito semântico do que a materialidade ludibriada conquistada para o objeto. Por este motivo, me arrisco a dizer que estes poemas-objeto, a rigor, não participam do conceito de objeto trouvé, muito embora se possa aventar alguma afinidade entre Brossa e Duchamp ou denunciar ressonâncias surrealistas em sua poesia.

Na verdade, o poeta trabalha o objeto-clichê. Emblemas e signos do banal: o copo, o martelo, a lâmpada incandescente, o relógio, etc. Através de um rasgo metafórico, espécie de “sorriso sem gato” carrolliano, Brossa desloca o objeto-clichê de sua prisão redundante e o oferece ao apetite do leitor-fruidor como signo aberto ao investimento de sua parcela de pensamento. Mesmo que Joan Brossa se refira aos poemas-objeto como poesia háptica, nossa relação com eles se dá mais pelo lado mental do que pelo lado corpóreo ou físico. As transações são fortemente intelectuais. Então, tudo é símbolo? Devagar com o andor. O objeto-clichê brossiano problematiza esta questão sem chegar, contudo, a uma conclusão decisiva. Para começar, às vezes um charuto não passa de um charuto, isto é, a conotação (viés de leitura que se produz a partir de um dado repertório) depende mais do receptor do que do emissor. O objeto-símbolo não é portador de um manual de instruções capaz de levar o receptor a uma conotação pré-determinada.

A poesia do catalão (seja ela visual, escrita, cênica, etc) compele o leitor a um gesto de interpretação livre, congenial a esta poética de concreções semântico-visuais de “poemas que não geram linguagem, mas a suprimem”. O leitor-visitador, então, tem que se haver com o seu próprio desejo de linguagem se quiser plasmar algum significado provável para as irreverentes signagens de Brossa. Pois, nas lacunas de seus experimentos icônico-verbais, os sentidos se aproximam do limite da desaparição.

Frente a uma poesia que, segundo o seu próprio autor, é um jogo onde, sob uma realidade aparente, aparece uma outra de repente, o leitor se desobriga de qualquer espécie de fidelidade ao conteúdo. O leitor de Joan Brossa deve ser o da traição, às vezes de lápis em punho, mas sempre não-crédulo. Como reza o velho adágio: traduttore traditore. A concepção do “leitor (tradutor) fiel” começa a vacilar. Como exigir fidelidade a um tipo de discurso sempre cambiante como o de Brossa? Discurso afeito ao afásico. Idioma de alguns instantes que nos permite apenas a captação desfocada de sentidos pulverizados, indícios do “conteúdo inessencial” examinado por Walter Benjamin. Embora a particularidade de tal poesia não passa abdicar de sua historicidade ela se configura, em fim de contas, como um gesto fora do lugar, um desvio, algo que não aponta senão para si mesmo. Uma coisa que coiseia.

Agora com vocês, para terminar, Joan Brossa por ele mesmo: “Estes versos, como/ uma partitura, não são mais/ que um conjunto de signos para/ decifrar. O leitor do poema/ é um executante (...)”. E, na íntegra, o poema “Peixe de Cera”: “Por não ter escrito o poema/ o leitor fica sem saber/ em que poderia consistir este/ peixe de cera”.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix