Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá


O Natal de Doralice

Num ameno domingo de dezembro, véspera de Natal, a dona-de-casa Doralice Carvalho estava sentada na pequena varanda de sua moradia na rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel. Olha o bairro conhecido que já principia a esmorecer de movimento, sossegando no começo da noite. Ao seu lado, também ocupando uma cadeira de plástico branco, seu marido e químico aposentado, Josué Carvalho, faz parte do silêncio. Filhos já criados e casados, os dois já entravam na casa dos 60.

– Dora, qual a cor do vestido que você está hoje?

Fogem os devaneios de Dora. Naquele preciso momento, a mulher pensava numa longínqua data de setembro de 1973, dia de seu casamento. Então, ela responde uma cor qualquer que tinha retida na memória – azul –, que Josué gostava na vida de outros tempos.

Retoma-se o mesmo silêncio de muitos casais antigos. Ela olha em direção as curvas do rio Tietê e, depois, volta para suas antigas lembranças. Numa tarde, estava no Clube da Nitro. Uma fita amarela, que lhe prendia os cabelos, foi o começo de tudo. Quando ela se desprendeu, arrancada pelas mãos ágeis de Josué, os seus cabelos esvoaçaram-se ao vento. Ele acalmou-os, depois desfez o nó do laço e jogou a fita sobre as águas. A fita, então, rodopiou na beira da murada da ponte, caiu, teimou em afundar e ficou boiando.

– O que fiz? – ele se assustou.

Os dois jovens ficaram olhando a fita pegando o rumo da correnteza, até o último momento. Depois, olharam-se parados, sonhando. E riram.

A partir daí, sempre aquela impressão que eram namorados, mesmo. Dora sabia amá-lo. Sorria, sempre, contente. Ele fantasiava histórias, imaginava casos e vestia-os de engraçado. Contava, ria também.

Casaram-se na antiga igreja de São Miguel e, durante os cinco dias seguintes, se conheceram mais intimamente num pequeno apartamento emprestado por um colega de trabalho na praia do Gonzaguinha, em São Vicente.

Depois, o dia após dia. Muitas vezes, nalguma tarde, andava apressada – cheia de compras, o dia tão curto –, quase correndo no meio da rua, para esperá-lo. Labutava duro nos cuidados com a casa, mudava, trocava os móveis toda semana de canto. Ele chegava, olhava, aprovava, dizendo bonito. Outros dias, em começos de anoitecer, se assustava em imaginar que aquele seria o instante em que não veria mais o bater do trinco no portão, o limpar de sapatos no capacho, o girar da chave na fechadura. E Dora na sala esperando-o mesmo sabendo que ouviria apenas o seu cansado boa-noite.

Uma noite esperou. Espera fora de costume. Deu para reparar em tudo que era gente que passava na rua. Na cozinha, imaginava ouvir o trinco no portão. Corria à janela, de onde podia vê-lo passar pela varanda. Mas, ele não chegava. Então, o trouxeram da fábrica de química. Havia passado a noite no hospital. Ataduras cobrindo-lhe a face, se maldizia:

– Maldito acidente. Onde meus olhos ficaram?

Não se conformava:

– Antes a morte. Sem vista no mundo, pra quê?

Calada, ela ouvia tudo aquilo e sabia que na vida, em muitos de seus meandros, não há caminhos de volta. Para confortá-lo, sempre respondia:

Nessa tarde de domingo em que abre suas lembranças no vazio de seu bairro, ela sabe que os móveis, faz muito tempo, permanecem intocados. Mãos espalmadas no braço da cadeira, ela sabe que Josué nunca será o mesmo.

Agora, como faz sempre, ele chama:

– Dora, me ajuda a ir ao quarto.

Ela desvia o olhar da rua vazia. Levanta. Puxa as sandálias debaixo da cadeira. Chora penosa e limpa as vistas no vestido, que é azul mesmo. Aproxima-se dele e pousa a mão em seu ombro.

Ele levanta seguindo a mulher. Ela guia seu corpo, livrando-o dos baques no sofá, na mesinha de televisão, na porta do quarto.

Junto à cama, ela ajeita o lençol e o travesseiro. Ele senta. Tateia e segura sua mão. Há um sinal de amor antigo e gratidão. Não dá para ver seus olhos.

Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Da coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix