Peace, 2009, Watercolour on Canvas, by River Hunt
Caminhos do sonho
Durante muitos anos, tive dúvida sobre em qual direção corriam as águas poluídas do Tietê. Acostumado desde a infância com cursos d’água de acentuados desníveis, o rio de São Paulo por muito tempo enganou meus olhos com sua morta mansidão ao cruzar trechos da metrópole. Fui descobrir o rumo certo quando pesquisei sua história e a peculiaridade de ser um dos poucos rios no mundo a seguir caminhos que não levam ao mar, mas ao sertão. Ou “à terra dos homens”, como queria o escritor Mário de Andrade.
Quando vivi em São Miguel Paulista, no começo dos anos 70, cheguei a pescar no Tietê. Às vezes, fisgava um ou outro peixe. Passatempo domingueiro, apenas. Os pescados retirados da sujeira, aparentemente normais, eram impregnados do cheiro de gás e poluição. Naquele tempo, já pareciam diferentes, pois só algumas espécies mais resistentes ainda teimavam em navegar em suas águas.
Anos depois, por um longo período, tive pesadelos com o rio antigamente chamado pelos índios tupi-guarani de verdadeiro: (T)i = água e etê: verdadeiro. Tudo começou após ter visto, numa tarde de domingo, bombeiros içarem um cadáver na altura do que hoje denominam Jardim Pantanal. Era o corpo disforme de um nordestino. Vizinhos dele me contaram que, acuado pelo desemprego e assolado pela loucura, pulou em suas águas como estivesse se banhando no açude de sua aldeia.
Por algum tempo, como já disse, tive pesadelos – e ainda os tenho. A história tem sempre o Tietê como tema e as mesmas variações de coreografia. De repente, ando por uma cidade desconhecida e suja. Começa a chover forte aguaceiro de verão. Logo, um rio de tonalidade escura cresce de volume, inicialmente invadindo asfaltadas marginais. Carros impedidos nas pistas, motoristas ilhados. Depois, o líqüido imundo vai penetrando nas casas próximas ao seu leito, avançando, derrubando moradias como tentáculos de um polvo gigante. As águas invasoras entram na casas, destruindo tudo. À frente, corpos bóiam semi-encobertos pelas águas.
Outro dia, por telefone, toco no assunto com o poeta Ruy Espinheira Filho, e ele fica abismado com o sonho tão paulistano.
- Talvez seja uma lembrança de vida muito forte em São Paulo - diz.
- Certamente – respondo, e me vem à mente a figura do migrante afogado no passado e, hoje, o descaso dos governantes com o Tietê e outros rios.
Quanto ao sonho, ele fala de sua própria experiência.
- Também já tive muitos pesadelos. Lembro bem: às vezes, do fundo do escuro, grandes e viscosas serpentes surgiam para me enlaçar. Outras noites eram aranhas, peludas e repugnantes, que vinham passear sobre meu peito, provocando um gelado suor de medo e náusea. Sem falar nos grandes animais ferozes que estavam sempre ameaçando cravar seus chifres, garras e dentes no meu corpo que se contorcia sobre o leito.
Imagino o terror noturno que afligia o amigo. Impávido, ele continua:
- Felizmente, quando tudo parecia perdido, eu acordava. Os bichos, abandonados pela magia do sono, retornavam às lúgubres cavernas da noite, onde ficavam aguardando o chamado para outro pesadelo. Então, salvo mais uma vez, sentava na cama e fitava, com os olhos esbugalhados, as paredes cinzentas do quarto.
Devo confessar, fascinava-me seu fantástico relato.
- Acabei, com o tempo, me acostumando com tudo isso. Passei a encarar os pesadelos com naturalidade, de uma forma serena, chegando mesmo a controlá-los, ou quase. Aprendi a conservar acesa, mesmo no mais profundo sono, uma pequena chama de consciência. Assim, quando os monstros se aproximavam, a pequena chama crescia em seu brilho e eu despertava.
- E aí? – queria saber mais.
- Também desenvolvi outros truques – continuou Ruy. – Sem ser preciso sair do sono, conseguia transformar os animais ferozes ou repelentes em pássaros cândidos ou borboletas coloridas.
Desligo o telefone e penso que aí estava o remédio ou a poção mágica para domar pesadelos. Fico tão convencido da artimanha mental do amigo que, já num próximo pesadelo, comecei a praticar a lição. No silêncio ou quase silêncio do meu apartamento, treinei para transformar, nos sonhos, o Tietê num rio de águas limpas e serenas ou os pernilongos do rio Pinheiros em suaves beija-flores. Tudo tem ido às mil maravilhas. O difícil, mesmo, é quando encaro o dia-a-dia normal - e real.
Durante muitos anos, tive dúvida sobre em qual direção corriam as águas poluídas do Tietê. Acostumado desde a infância com cursos d’água de acentuados desníveis, o rio de São Paulo por muito tempo enganou meus olhos com sua morta mansidão ao cruzar trechos da metrópole. Fui descobrir o rumo certo quando pesquisei sua história e a peculiaridade de ser um dos poucos rios no mundo a seguir caminhos que não levam ao mar, mas ao sertão. Ou “à terra dos homens”, como queria o escritor Mário de Andrade.
Quando vivi em São Miguel Paulista, no começo dos anos 70, cheguei a pescar no Tietê. Às vezes, fisgava um ou outro peixe. Passatempo domingueiro, apenas. Os pescados retirados da sujeira, aparentemente normais, eram impregnados do cheiro de gás e poluição. Naquele tempo, já pareciam diferentes, pois só algumas espécies mais resistentes ainda teimavam em navegar em suas águas.
Anos depois, por um longo período, tive pesadelos com o rio antigamente chamado pelos índios tupi-guarani de verdadeiro: (T)i = água e etê: verdadeiro. Tudo começou após ter visto, numa tarde de domingo, bombeiros içarem um cadáver na altura do que hoje denominam Jardim Pantanal. Era o corpo disforme de um nordestino. Vizinhos dele me contaram que, acuado pelo desemprego e assolado pela loucura, pulou em suas águas como estivesse se banhando no açude de sua aldeia.
Por algum tempo, como já disse, tive pesadelos – e ainda os tenho. A história tem sempre o Tietê como tema e as mesmas variações de coreografia. De repente, ando por uma cidade desconhecida e suja. Começa a chover forte aguaceiro de verão. Logo, um rio de tonalidade escura cresce de volume, inicialmente invadindo asfaltadas marginais. Carros impedidos nas pistas, motoristas ilhados. Depois, o líqüido imundo vai penetrando nas casas próximas ao seu leito, avançando, derrubando moradias como tentáculos de um polvo gigante. As águas invasoras entram na casas, destruindo tudo. À frente, corpos bóiam semi-encobertos pelas águas.
Outro dia, por telefone, toco no assunto com o poeta Ruy Espinheira Filho, e ele fica abismado com o sonho tão paulistano.
- Talvez seja uma lembrança de vida muito forte em São Paulo - diz.
- Certamente – respondo, e me vem à mente a figura do migrante afogado no passado e, hoje, o descaso dos governantes com o Tietê e outros rios.
Quanto ao sonho, ele fala de sua própria experiência.
- Também já tive muitos pesadelos. Lembro bem: às vezes, do fundo do escuro, grandes e viscosas serpentes surgiam para me enlaçar. Outras noites eram aranhas, peludas e repugnantes, que vinham passear sobre meu peito, provocando um gelado suor de medo e náusea. Sem falar nos grandes animais ferozes que estavam sempre ameaçando cravar seus chifres, garras e dentes no meu corpo que se contorcia sobre o leito.
Imagino o terror noturno que afligia o amigo. Impávido, ele continua:
- Felizmente, quando tudo parecia perdido, eu acordava. Os bichos, abandonados pela magia do sono, retornavam às lúgubres cavernas da noite, onde ficavam aguardando o chamado para outro pesadelo. Então, salvo mais uma vez, sentava na cama e fitava, com os olhos esbugalhados, as paredes cinzentas do quarto.
Devo confessar, fascinava-me seu fantástico relato.
- Acabei, com o tempo, me acostumando com tudo isso. Passei a encarar os pesadelos com naturalidade, de uma forma serena, chegando mesmo a controlá-los, ou quase. Aprendi a conservar acesa, mesmo no mais profundo sono, uma pequena chama de consciência. Assim, quando os monstros se aproximavam, a pequena chama crescia em seu brilho e eu despertava.
- E aí? – queria saber mais.
- Também desenvolvi outros truques – continuou Ruy. – Sem ser preciso sair do sono, conseguia transformar os animais ferozes ou repelentes em pássaros cândidos ou borboletas coloridas.
Desligo o telefone e penso que aí estava o remédio ou a poção mágica para domar pesadelos. Fico tão convencido da artimanha mental do amigo que, já num próximo pesadelo, comecei a praticar a lição. No silêncio ou quase silêncio do meu apartamento, treinei para transformar, nos sonhos, o Tietê num rio de águas limpas e serenas ou os pernilongos do rio Pinheiros em suaves beija-flores. Tudo tem ido às mil maravilhas. O difícil, mesmo, é quando encaro o dia-a-dia normal - e real.
Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006, voltado para o público infanto-juvenil), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Para a coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).
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