Diante do genocídio judaico perpetrado pelo regime nazista em escala industrial, o filósofo marxista T. W. Adorno disse – talvez não exatamente nesses termos –, que depois de Auschwitz, seria impossível escrever poesia.
Há, me parece, uma dose de eurocentrismo implicada nesta afirmação. Pois ela reforça uma constatação que se pode fazer a respeito do narcisismo da civilização moderna e tecnológica, a saber, a de que graças aos muitos meios de representação surgidos no século 20, tendemos a superdimensionar todos os eventos ocorridos no seu interior. Eles se tornam como que “mais” reais, ou mais pertinentes para a nossa disposição moderna, porque estão documentados para além da memória verbal escrita. O filme e a fotografia dos acontecimentos têm o poder de substituí-los. A memória e a recepção tornam-se mais frias e consensuais à medida que a realidade vai sendo capturada de modo peremptório por esses e outros meios. Entretanto, antes de continuar, abro parênteses para dizer que não se trata aqui de negar o acontecimento do crime nazista, isto é, o comprovado genocídio hebraico, pelo contrário, esta tragédia, tal como outras em que populações inteiras desapareceram e ainda desaparecem, não pode passar em branco. Assim, o tema de fundo deste texto que submeto à reflexão do leitor, se restringe tão-só a problematizar o que há de espetaculoso ou de efetivamente crítico na sentença adorniana. Fecho parênteses.
Mirando outros eventos do passado – digamos que por um viés politicamente correto, para o desespero de alguns –, poderíamos parafrasear a frase de Adorno na análise, por exemplo, do massacre dos povos indígenas levado a efeito por espanhóis e portugueses na conquista do novo mundo. E a lógica da mesma frase se aplicaria à história da escravidão negra e à devastação étnica e cultural do continente africano — e que persiste até hoje. Como dar crédito à poesia depois da passagem desse verdadeiro “carro da miséria” por sobre tantas vidas? Contudo, todos esses dramas passaram em brancas nuvens, ou foram jogados no fundo do atlântico. A corda rebentara do lado mais fraco. Porque, neste caso, as vítimas eram os “outros”. Os poetas não estavam atentos às impurezas da poesia. Os Lusíadas, de Camões, representam o elogio épico dessas empresas imperiais, cujo processo civilizatório não esconde um apetite sicário.
Lances históricos muitos remotos, às vezes falseados, às vezes escassamente documentados, nos são antipáticos, ou seja, temos dificuldade de nos identificar com eles. Por outro lado, o acervo do passado é compilado e organizado de maneira a nos convencer de que é uma “perda de tempo” dispormos da nossa liberdade de dúvida questionando, eventualmente, as versões dos acontecimentos que os compêndios acadêmicos nos oferecem em edições tão ricamente ilustradas.
Muito se discutiu a respeito da afirmação polêmica do filósofo alemão. Aos que nunca foram grandes apreciadores de poesia, a máxima adorniana tem o condão de ser um golpe de misericórdia contra os impotentes poetas, esta espécie em extinção.
Outros se rejubilam de provar o contrário, isto é, que Adorno se precipitou, que foi severo demais com a “mãe” das demais artes, etc. Eles argumentam que a poesia ainda tem muito a dizer, pois, é justamente quando o homem parece ceder ao seu impulso de morte e destruição, retroagindo à condição bárbara, que ela se faz mais necessária: a poesia se eleva como o derradeiro reduto do humano. A “infelicidade” da visão de Adorno não se sustentaria para os que suportam uma noção de poesia como lenitivo, com bálsamo divino às aflições da finitude, transcendência através da palavra fundadora do ser.
Mas, para além das mistificações de um lado e de outro, o importante é considerar que talvez T. W. Adorno quisesse dizer que, após aquele marco histórico, a poesia (linguagem que, a partir de sua lógica interna, e como qualquer outra, pretende re-nomear o mundo) começava a entrar em crise. E a poesia, como discurso metalingüístico, autocrítico, enfim, como linguagem engendrada sobre a consciência de que “palavra e coisa jamais serão a mesma coisa” (Ricardo Silvestrin dixit), não poderia ficar indiferente ao que se passava em seu redor. O tempo exigia outros paradigmas poéticos, e outras filosofias.
O filósofo acertou: uma concepção de poesia – já bastante retardatária, poder-se-ia dizer – foi enterrada junto com os mortos de Auschwitz. Hoje, a poesia parece estar mais atenta aos seus limites. E mesmo a sua propalada inutilidade, em contraste com o mundo da mercadoria, pode ser interpretada como um sinal de distinção ou de resistência – ainda que involuntária. Os poetas sabem da dificuldade de representar um mundo cada vez mais cinematográfico e dependente dos media. A subjetividade e a esfera privada se dissolvem frente à obsessão generalizada de expor as entranhas às luzes do espetáculo público.
Não há mais sentido para a “poesia do heroísmo”, porque “a febre digital/ das transferências bancárias” (João Ângelo Salvadori dixit) emasculou o que ainda restava entre nós de um “eco épico”. O mundo moderno e contemporâneo sepultou seus guerreiros e seus celebrantes. Estamos condenados, ao que parece, à idade da impertinência da poesia.
Há, me parece, uma dose de eurocentrismo implicada nesta afirmação. Pois ela reforça uma constatação que se pode fazer a respeito do narcisismo da civilização moderna e tecnológica, a saber, a de que graças aos muitos meios de representação surgidos no século 20, tendemos a superdimensionar todos os eventos ocorridos no seu interior. Eles se tornam como que “mais” reais, ou mais pertinentes para a nossa disposição moderna, porque estão documentados para além da memória verbal escrita. O filme e a fotografia dos acontecimentos têm o poder de substituí-los. A memória e a recepção tornam-se mais frias e consensuais à medida que a realidade vai sendo capturada de modo peremptório por esses e outros meios. Entretanto, antes de continuar, abro parênteses para dizer que não se trata aqui de negar o acontecimento do crime nazista, isto é, o comprovado genocídio hebraico, pelo contrário, esta tragédia, tal como outras em que populações inteiras desapareceram e ainda desaparecem, não pode passar em branco. Assim, o tema de fundo deste texto que submeto à reflexão do leitor, se restringe tão-só a problematizar o que há de espetaculoso ou de efetivamente crítico na sentença adorniana. Fecho parênteses.
Mirando outros eventos do passado – digamos que por um viés politicamente correto, para o desespero de alguns –, poderíamos parafrasear a frase de Adorno na análise, por exemplo, do massacre dos povos indígenas levado a efeito por espanhóis e portugueses na conquista do novo mundo. E a lógica da mesma frase se aplicaria à história da escravidão negra e à devastação étnica e cultural do continente africano — e que persiste até hoje. Como dar crédito à poesia depois da passagem desse verdadeiro “carro da miséria” por sobre tantas vidas? Contudo, todos esses dramas passaram em brancas nuvens, ou foram jogados no fundo do atlântico. A corda rebentara do lado mais fraco. Porque, neste caso, as vítimas eram os “outros”. Os poetas não estavam atentos às impurezas da poesia. Os Lusíadas, de Camões, representam o elogio épico dessas empresas imperiais, cujo processo civilizatório não esconde um apetite sicário.
Lances históricos muitos remotos, às vezes falseados, às vezes escassamente documentados, nos são antipáticos, ou seja, temos dificuldade de nos identificar com eles. Por outro lado, o acervo do passado é compilado e organizado de maneira a nos convencer de que é uma “perda de tempo” dispormos da nossa liberdade de dúvida questionando, eventualmente, as versões dos acontecimentos que os compêndios acadêmicos nos oferecem em edições tão ricamente ilustradas.
Muito se discutiu a respeito da afirmação polêmica do filósofo alemão. Aos que nunca foram grandes apreciadores de poesia, a máxima adorniana tem o condão de ser um golpe de misericórdia contra os impotentes poetas, esta espécie em extinção.
Outros se rejubilam de provar o contrário, isto é, que Adorno se precipitou, que foi severo demais com a “mãe” das demais artes, etc. Eles argumentam que a poesia ainda tem muito a dizer, pois, é justamente quando o homem parece ceder ao seu impulso de morte e destruição, retroagindo à condição bárbara, que ela se faz mais necessária: a poesia se eleva como o derradeiro reduto do humano. A “infelicidade” da visão de Adorno não se sustentaria para os que suportam uma noção de poesia como lenitivo, com bálsamo divino às aflições da finitude, transcendência através da palavra fundadora do ser.
Mas, para além das mistificações de um lado e de outro, o importante é considerar que talvez T. W. Adorno quisesse dizer que, após aquele marco histórico, a poesia (linguagem que, a partir de sua lógica interna, e como qualquer outra, pretende re-nomear o mundo) começava a entrar em crise. E a poesia, como discurso metalingüístico, autocrítico, enfim, como linguagem engendrada sobre a consciência de que “palavra e coisa jamais serão a mesma coisa” (Ricardo Silvestrin dixit), não poderia ficar indiferente ao que se passava em seu redor. O tempo exigia outros paradigmas poéticos, e outras filosofias.
O filósofo acertou: uma concepção de poesia – já bastante retardatária, poder-se-ia dizer – foi enterrada junto com os mortos de Auschwitz. Hoje, a poesia parece estar mais atenta aos seus limites. E mesmo a sua propalada inutilidade, em contraste com o mundo da mercadoria, pode ser interpretada como um sinal de distinção ou de resistência – ainda que involuntária. Os poetas sabem da dificuldade de representar um mundo cada vez mais cinematográfico e dependente dos media. A subjetividade e a esfera privada se dissolvem frente à obsessão generalizada de expor as entranhas às luzes do espetáculo público.
Não há mais sentido para a “poesia do heroísmo”, porque “a febre digital/ das transferências bancárias” (João Ângelo Salvadori dixit) emasculou o que ainda restava entre nós de um “eco épico”. O mundo moderno e contemporâneo sepultou seus guerreiros e seus celebrantes. Estamos condenados, ao que parece, à idade da impertinência da poesia.
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.zip.net
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