Bald Girl Shaving - 2004
Charles Alexander Moffat
Máquina zero na cabeça
Os mais arrivistas estão convencidos de que o alto modernismo chegou ao seu limite, e com atraso. No entanto, o baixo modernismo (como contemporaneidade diluidora) a que estamos sujeitos, é experimentado − ou, melhor dizendo −, degustado com uma indulgência de tal ordem, que só seria de causar estranheza se não a entendêssemos como uma espécie de cópia carbono, mas pelo avesso, de um mesmo estado de espírito que, com relação ao modernismo, sempre se mostrou supercilioso, quando não contrário.
Sobre Máquina Zero (Scriptum Livros, 2004), entre tantas outras coisas, uma poderia ser adiantada: é um livro não-indulgente com relação ao seu entorno político-sócio-cultural. Contudo, Ricardo Aleixo, coeso com essa apetência mefistofélica que conquista para si na fatura da obra em apreço, sabe que a crítica e o escárnio que a animam só ganham sentido porque ele se reconhece implicado nos horrores dos espetáculos cult e provinciano que traz à baila. Ou melhor, como escreve Sebastião Nunes no posfácio, Máquina zero é “de uma dureza, de uma pureza, de uma firmeza e de um lirismo”, incomuns no quadro – e no tratamento – das poéticas e das visões contemporâneas.
Ricardo Aleixo, esse poeta de extração valeriana, aqui, em seu Máquina Zero, resolve trilhar o caminho oposto: o poema nasce do assunto. O autor exercita o gesto hard necessário num percurso textual onde procedimentos anteriores de linguagem aludiam a uma idéia de poesia como software, abreviação e eficiência estético-informacionais; a conquista para a arte de altas doses de desmaterialização (refiro-me, aqui, a uma das “propostas” de Ítalo Calvino: a leveza). Mas, Ricardo Aleixo, desfecha, agora, “a porrada certa”, inclusive contra si e os seus iguais: “Putas, como deuses,/ vendem quando dão./ Poetas, não./(...)/ Poetas se gabam do limbo, do veto/ do censor.../(...)/ Poetas (posto que vivem/ de brisa) fazem do No, thanks/ seu refrão”. Máquina zero, a contrapelo das espertas filosofias publicitárias, não “pega leve” com quem quer que seja.
Com efeito, se alguém tem que fazer o trabalho sujo e pesado, que seja alguém com aquela indispensável consciência de linguagem capaz de nutrir um tranco de pensamento a ponto de corroer os limites e as imposturas com que o senso-comum representa o mundo. Máquina perversa de linguagem, cujo lastro etimológico que recupero ao qualificativo (“perverso”, do latim perversus = posto às avessas), elucida, eviscera alguns pontos, e nos franqueia outros. Tangendo sua “lira maldizente” Ricardo Aleixo esculhamba, por exemplo, a paróquia belo-horizontina e o bardo branquelo Nelson Ascher e sua expertise neoparnasiana. O poeta de Trívio (2001) lesa as normas política e poeticamente corretas. Dirigindo-se aos seus pares: “De tanto impostor e tanta impostura,/ o que diria o Boca, aqui e agora?// Restrinjo-me à República das Letras/ − só em pensar na outra já me assalta/ a bílis, a cabeça dói, as tripas/ revoltam-se, e até o ar me falta”. E quando se detém sobre sua urbs positivista, increpa: “Belzebu em Belo Horizonte/ nem abanaria o rabo;/ ei-lo:/ um pobre-diabo/ − iguais à ele há um monte”. A contragosto do solo, e, ao mesmo tempo, deslizando um pouco acima (ou melhor: tirando proveito) dele, numa dança de idéias entranhada no esqueleto memorioso do seu corpo que dança, o poeta esbanja inteligência e acídia. Ou seja, Ricardo Aleixo sempre diz bem, mesmo quando maldiz.
E desdiz, mesmo, o seu corpo, quando o submete a uma interferência disruptiva à maneira de Marcel Duchamp: os fotogramas do moleque negro (vendado e vedado) engomado para presente, encomendado ao apetite divino. Ricardo perverso, pervertido (vale dizer, corrompido por meio de uma tradução/operação semiótica) desde o seu olhar de agora, isto é, ao revés, voltado ao pequeno que comungou: biografema (a alvura da meia ¾) do acervo pessoal. Confidência e inconfidência incrustadas no tríptico “Teofagia”, “Antropofagia” e “Autofagia”. Arquivo esquivo: “...consumada falha/ de papai e mamãe”, “...as conas e os/ cus que já/ não como...”, homenageados através da apropriação antropofágica de afetos, afecções e ficções sígnicas.
As palavras (ou sua condição fantasmática hipostasiada na ordem consagrada da reprodutibilidade do sistema tipográfico) suportam e premem o mundo. É como leio − literalmente, isto é, a um tempo, cego e háptico −, o poema-objeto estampado na capa de Máquina Zero: a pequena esfera da Terra pousada na garra dos tipos da máquina de dactiloscritos. Seu peso intolerável. A “máquina do mundo” − como lembra Marçal de Aquino na orelha do livro − na palma férrea da engrenagem-moagem gutenberguiana. O martelar sacrílego dos tipos móveis escarificando a noosfera babélica. Um mundo de pernas para o ar, que caminha ou troteia sobre o andor de uma linguagem produtora de discursos da suspeição; “mundo às avessas”, segundo a tópica barroca.
E desde aí, para um ensaio ou um anseio de tresleitura, escolho ver no poema que dá título ao livro (pág. 9), por assim dizer, o take imediato, ou o quadro que secunda a reprodução da imagem da capa. Ou seja, bolino com a ponta dos dedos (senso ludodáctilo) os fonemas-letras agora impressos e que, por seu turno, marcam, cortam a própria carne do poema procedendo de maneira que cada verso se desmembra em dois, e em cujas terminações irrompe o letrismo de rimas-fake:
É como se Ricardo Aleixo nos dissesse: “Vocês querem poesia? Então, tomem isso!”. Anômalos simulacros de sinais-rima. Fracasso de uma figura aliterante. Paralelismo do absurdo e expressionismo tipográfico que apontam para as tortografias cummingsianas. Reiteração perversa, afazer da afasia como ruído que se vinga da estetização e da reificação do poema. Pois, em Máquina Zero, Ricardo Aleixo parece preferir “a paciente/ proeza das traças,/ meu rapaz,/ aos versinhos/ bem traçados/ dos quais/ te mostras capaz”.
Sobre Máquina Zero (Scriptum Livros, 2004), entre tantas outras coisas, uma poderia ser adiantada: é um livro não-indulgente com relação ao seu entorno político-sócio-cultural. Contudo, Ricardo Aleixo, coeso com essa apetência mefistofélica que conquista para si na fatura da obra em apreço, sabe que a crítica e o escárnio que a animam só ganham sentido porque ele se reconhece implicado nos horrores dos espetáculos cult e provinciano que traz à baila. Ou melhor, como escreve Sebastião Nunes no posfácio, Máquina zero é “de uma dureza, de uma pureza, de uma firmeza e de um lirismo”, incomuns no quadro – e no tratamento – das poéticas e das visões contemporâneas.
Ricardo Aleixo, esse poeta de extração valeriana, aqui, em seu Máquina Zero, resolve trilhar o caminho oposto: o poema nasce do assunto. O autor exercita o gesto hard necessário num percurso textual onde procedimentos anteriores de linguagem aludiam a uma idéia de poesia como software, abreviação e eficiência estético-informacionais; a conquista para a arte de altas doses de desmaterialização (refiro-me, aqui, a uma das “propostas” de Ítalo Calvino: a leveza). Mas, Ricardo Aleixo, desfecha, agora, “a porrada certa”, inclusive contra si e os seus iguais: “Putas, como deuses,/ vendem quando dão./ Poetas, não./(...)/ Poetas se gabam do limbo, do veto/ do censor.../(...)/ Poetas (posto que vivem/ de brisa) fazem do No, thanks/ seu refrão”. Máquina zero, a contrapelo das espertas filosofias publicitárias, não “pega leve” com quem quer que seja.
Com efeito, se alguém tem que fazer o trabalho sujo e pesado, que seja alguém com aquela indispensável consciência de linguagem capaz de nutrir um tranco de pensamento a ponto de corroer os limites e as imposturas com que o senso-comum representa o mundo. Máquina perversa de linguagem, cujo lastro etimológico que recupero ao qualificativo (“perverso”, do latim perversus = posto às avessas), elucida, eviscera alguns pontos, e nos franqueia outros. Tangendo sua “lira maldizente” Ricardo Aleixo esculhamba, por exemplo, a paróquia belo-horizontina e o bardo branquelo Nelson Ascher e sua expertise neoparnasiana. O poeta de Trívio (2001) lesa as normas política e poeticamente corretas. Dirigindo-se aos seus pares: “De tanto impostor e tanta impostura,/ o que diria o Boca, aqui e agora?// Restrinjo-me à República das Letras/ − só em pensar na outra já me assalta/ a bílis, a cabeça dói, as tripas/ revoltam-se, e até o ar me falta”. E quando se detém sobre sua urbs positivista, increpa: “Belzebu em Belo Horizonte/ nem abanaria o rabo;/ ei-lo:/ um pobre-diabo/ − iguais à ele há um monte”. A contragosto do solo, e, ao mesmo tempo, deslizando um pouco acima (ou melhor: tirando proveito) dele, numa dança de idéias entranhada no esqueleto memorioso do seu corpo que dança, o poeta esbanja inteligência e acídia. Ou seja, Ricardo Aleixo sempre diz bem, mesmo quando maldiz.
E desdiz, mesmo, o seu corpo, quando o submete a uma interferência disruptiva à maneira de Marcel Duchamp: os fotogramas do moleque negro (vendado e vedado) engomado para presente, encomendado ao apetite divino. Ricardo perverso, pervertido (vale dizer, corrompido por meio de uma tradução/operação semiótica) desde o seu olhar de agora, isto é, ao revés, voltado ao pequeno que comungou: biografema (a alvura da meia ¾) do acervo pessoal. Confidência e inconfidência incrustadas no tríptico “Teofagia”, “Antropofagia” e “Autofagia”. Arquivo esquivo: “...consumada falha/ de papai e mamãe”, “...as conas e os/ cus que já/ não como...”, homenageados através da apropriação antropofágica de afetos, afecções e ficções sígnicas.
As palavras (ou sua condição fantasmática hipostasiada na ordem consagrada da reprodutibilidade do sistema tipográfico) suportam e premem o mundo. É como leio − literalmente, isto é, a um tempo, cego e háptico −, o poema-objeto estampado na capa de Máquina Zero: a pequena esfera da Terra pousada na garra dos tipos da máquina de dactiloscritos. Seu peso intolerável. A “máquina do mundo” − como lembra Marçal de Aquino na orelha do livro − na palma férrea da engrenagem-moagem gutenberguiana. O martelar sacrílego dos tipos móveis escarificando a noosfera babélica. Um mundo de pernas para o ar, que caminha ou troteia sobre o andor de uma linguagem produtora de discursos da suspeição; “mundo às avessas”, segundo a tópica barroca.
E desde aí, para um ensaio ou um anseio de tresleitura, escolho ver no poema que dá título ao livro (pág. 9), por assim dizer, o take imediato, ou o quadro que secunda a reprodução da imagem da capa. Ou seja, bolino com a ponta dos dedos (senso ludodáctilo) os fonemas-letras agora impressos e que, por seu turno, marcam, cortam a própria carne do poema procedendo de maneira que cada verso se desmembra em dois, e em cujas terminações irrompe o letrismo de rimas-fake:
Quarto dia: entendo q
ue o que preciso, se q
uero mesmo continuar a p
erambular com alguma chance de êxito p
or uma cidade (duas) como Berlim, é
de sapatos de largo fôlego. Caminho (penso e
(...)
É como se Ricardo Aleixo nos dissesse: “Vocês querem poesia? Então, tomem isso!”. Anômalos simulacros de sinais-rima. Fracasso de uma figura aliterante. Paralelismo do absurdo e expressionismo tipográfico que apontam para as tortografias cummingsianas. Reiteração perversa, afazer da afasia como ruído que se vinga da estetização e da reificação do poema. Pois, em Máquina Zero, Ricardo Aleixo parece preferir “a paciente/ proeza das traças,/ meu rapaz,/ aos versinhos/ bem traçados/ dos quais/ te mostras capaz”.
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.zip.net
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