n°502 - olio su tela di David Dalla Venezia, 2006
Despojos Canônicos e Poesia Contemporânea
O conceito de cânone como algo incondicional, pressupondo a neutralidade de um conhecimento-catálogo, supostamente desinteressado e que exerce seu poder por meio de uma regra geral de onde se inferem regras específicas, só pode se coadunar (e aqui podemosl embrar Borges) com a idéia de religião e de cansaço. No que respeita à área das letras, hoje, a academia e certa mídia especializada constituem a instância de poder de cuja função se espera a classificação do que é e do que não é canônico, fazendo, assim, em versão secular as vezes da figura do Concílio da Igreja que tem ou tinha como atribuição decidir quais os santos passíveis de canonização. Ora, sob esse aspecto a idéia de cânone reproduz um modelo que mais aprendemos a apreciar do que prestar-lhe respeito crítico.
Analisando o significado do cânone ainda do ponto de vista religioso, sabe-se também que sob tal rubrica era concebida a lista autêntica dos livros considerados inspirados divinamente. Nesta acepção, opõe-se o livro apócrifo. Em outras palavras, o livro apócrifo carece de identidade e não é endossado por sopro divino.
Isso posto, pode-se considerar o seguinte. Ora, a estética da modernidade está calcada, em boa medida, justamente numa espécie de elogio da escritura apócrifa em prejuízo do exemplar canônico, autárquico. Seu interesse se direciona para o texto-colagem, como forma de diversão plagiotrópica, onde a intertextualidade, a metalinguagem e a ironia redimensionam o papel centralizador do autor. A linguagem apócrifa da contemporaneidade embaralha cópia e original e diz que quem engendra o texto de chegada - texto do qual o leitor se ocupa a cada derradeira leitura - é o atrito entre os diversos textos laterais, anteriores e posteriores a ele. O autor é, portanto, a máscara cambiante que afivelamos à tradição para melhor ocultar seu rosto terrível.
Assim, a modernidade, desierarquizando as linguagens, movimenta-se em oposição ao cânone. Na verdade, ela antes treslê do que nega esta forma de condensação da informação. Como transculturação da Ilustração, a modernidade se caracteriza pela secularização total, isto é, investe num questionamento sistemático - não importa em que esfera do saber - daqueles preceitos e conceitos impermeáveis, e cujo efeito sobre nossos afetos e mentalidades é, em muitos aspectos, arrasador. No entanto - e aqui poder-se-ia falar numa contradição entre termos -, a modernidade admite suas investidas canônicas ao mesmo tempo em que opera através de sucessivos lances dessacralizantes.
A impossibilidade de um cânone hegemônico é defendida pela modernidade através do pensamento crítico de artistas e escritores como Duchamp, Nietzsche, Freud e Pound (não obstante o conceito de paideuma do último). Em contrapartida seus epígonos, ou os que se sentem herdeiros dessa linhagem, mais por pragmatismo que por incompetência, tendem a instituir algo como um contracânone, emergente e alternativo, em que os textos desses pais fundadores ocupam o ponto mais alto. Ponto de fuga e de virada, interessado em redefinir posições da força e de dominação. Entretanto, a entronização de uma nova perspectiva canônica patrocinada, por exemplo, pelo relativismo multicultural, relega a segundo plano a pergunta decisiva acerca da razão de ser de qualquer cânone e suas eventuais reencarnações. Até onde podemos supor, parece tratar-se, grosso modo, de convencional substituição, e a esterespeito ocorre-nos o seguinte pensamento de Hannah Arendt, “o substituto ainda tem alguma coisa a ver com aquilo que vai substituir”.
A concepção de cânone como algo culminante, acervo de obras acima de qualquer suspeita, força simbólica capaz de nortear a formação ou o projeto utópico de uma identidade nacional, começa a ceder terreno a uma angulação mais insignificante, menor, ou que retroage até a esfera privada. Os cânones se configurariam, então, a partir do registro doi rredutivelmente pessoal, dos condicionamentos subjetivos. Isso ratifica a noção de que são os poetas que acabam por dar nome às escolas.
Aquela forma exclusivista de cânone não precisa ser necessariamente eludida do nosso horizonte de referências, o que acontece é que seu lugar já não é mais central nem determinante.
Resta dizer que, talvez, ainda seja de alguma utilidade atravessar - mesmo que com certo desconforto - a série dos cânones históricos para se chegar ao entendimento do não-cânone da contemporaneidade, que aceita a parcialidade por se recusar ao consolo metafísico dos modelos consagrados. O objetivo não é mais canonizar, porém passar antropofagicamente através da medula do(s) cânone(s).
Em qualquer âmbito artístico onde atue um olhar crítico, prepondera, quase sempre, afuga da vigilância de uma ordem estética universal, ditada de cima. Como a modernidade notabilizou-se pela prevalência da crítica sobre o cego arranjo místico do instrumento, torna-se perfeitamente plausível a existência de uma pluralidade criadora, arredia às essências ditadas por um conduto estético.
Apesar de se dispor a um jogo mais franco e aberto com a multiplicidade, o artista moderno não abre mão de um comportamento de linguagem particular. Assim, quanto à valoração de uma certa pluralidade (se seria pasteurizante ou não), vale dizer que, se a unicidade estética pretendida (e fundada) pelo cânone frustra a liberdade radical da modernidade, uma pluralidade onde tudo cabe e tudo se aceita, por sua vez, soa como um comportamento acrítico ou, pior, como um atestado de limitação e impotência de se levar a termo um projeto estético mínimo.
A suposição de que a contemporaneidade preconiza o ecletismo regressivo, ou o pluralismo anódino, faz sentido na medida em que estamos experimentando, como nunca, o assomo de realidades híbridas e narrativas históricas cada vez mais polifônicas e fragmentárias que requerem, portanto, abordagens inconclusivas e indecidíveis. Tudo isso também deita raízes num estado de espírito, digamos, finissecular e um tanto retrospectivo tendente a desbastar o gume dos impasses e dos atritos em benefício da negociação e da tolerância - às vezes puritana, como é o caso do viés politicamente correto dos fast thinkers. Assim, haveria tempo e vozes para tudo sem o risco da superficialidade? Acreditamos que não, pois o projeto poético parte de uma condensação da linguagem, decorrente de um rigoroso processo de escolha e configuração de signos.
A antinomia entre novo e velho é tipicamente modernista. De outra parte, a contemporaneidade pós-moderna dispõe deste oximoro de modo diferente. O novo e o velho convergem para um presente sem margens, eterno, que os anula. O tempo se espacializa, não é mais sucessão. É mosaico simultaneísta. Assim, o novo não se concebe mais como reação ao convencional, ao perempto; o novo - agora um fait accompli - se detém apenas como mais uma possibilidade performativa tão válida como qualquer outra: pressauro (Augusto de Campos dixit).
Por isso, não é raro ocorrer na poesia de agora-agora o pastiche do passado assim como do futuro. O fato é que, oscilando para trás ou para frente, a poesia contemporânea incorpora como um fim aquilo que, seja para a tradição, seja para a modernidade, era tão-só um meio, a saber, sua mise-en-scène reivindicativa de lances utópicos: um novo éden, um canto contra a usura, um mundo antes icônico que canônico.
Evidente que o poeta pode manejar um cânone das mais variadas formas. Indício de atualidade, isto é: se o fizer com radicalidade, fazendo-o alcançar uma transitividade, uma vez que a pregnância, a intransitividade e a suficiência estão na raiz do cânone. Um projeto radical e novo de linguagem respiraria dentro de uma forma cristalizada? Seria possível o acróstico, o epinício, a sextina, o soneto, senão como reutilização desconstrutiva, irônica e auto-referente?
Os poetas contemporâneos não se envergonham de um virtuosismo técnico a que se submetem ludicamente. Transitam com leveza pelo círculo vicioso da competência. Sua erudição é um banquete após uma expedição de conquista. O refinamento é tudo. Numa espécie de réplica soft ao politicamente correto, re-instauram o poeticamente correto. Se a geração anterior, representada pelos escritores do alto modernismo e dasvanguardas de 50 / 60, não dominava a arte extremamente difícil de ser sincero sem ser ridículo, esta, pelo contrário, domina-a, mas com tal virtuosismo que chega até o ponto de transformá-la em algo empetecado, uma variedade de cinismo fashion, um esnobismo. A força de se desfazer dessa forma de ingenuidade (à qual se entregou o modernismo, e do mesmo modo as vanguardas), paga-se um tributo cruel a esta inteligência saturada, secular, mundana; forma rarefeita do impacto uniformizante da tecnologia digital.
O conceito de cânone como algo incondicional, pressupondo a neutralidade de um conhecimento-catálogo, supostamente desinteressado e que exerce seu poder por meio de uma regra geral de onde se inferem regras específicas, só pode se coadunar (e aqui podemosl embrar Borges) com a idéia de religião e de cansaço. No que respeita à área das letras, hoje, a academia e certa mídia especializada constituem a instância de poder de cuja função se espera a classificação do que é e do que não é canônico, fazendo, assim, em versão secular as vezes da figura do Concílio da Igreja que tem ou tinha como atribuição decidir quais os santos passíveis de canonização. Ora, sob esse aspecto a idéia de cânone reproduz um modelo que mais aprendemos a apreciar do que prestar-lhe respeito crítico.
Analisando o significado do cânone ainda do ponto de vista religioso, sabe-se também que sob tal rubrica era concebida a lista autêntica dos livros considerados inspirados divinamente. Nesta acepção, opõe-se o livro apócrifo. Em outras palavras, o livro apócrifo carece de identidade e não é endossado por sopro divino.
Isso posto, pode-se considerar o seguinte. Ora, a estética da modernidade está calcada, em boa medida, justamente numa espécie de elogio da escritura apócrifa em prejuízo do exemplar canônico, autárquico. Seu interesse se direciona para o texto-colagem, como forma de diversão plagiotrópica, onde a intertextualidade, a metalinguagem e a ironia redimensionam o papel centralizador do autor. A linguagem apócrifa da contemporaneidade embaralha cópia e original e diz que quem engendra o texto de chegada - texto do qual o leitor se ocupa a cada derradeira leitura - é o atrito entre os diversos textos laterais, anteriores e posteriores a ele. O autor é, portanto, a máscara cambiante que afivelamos à tradição para melhor ocultar seu rosto terrível.
Assim, a modernidade, desierarquizando as linguagens, movimenta-se em oposição ao cânone. Na verdade, ela antes treslê do que nega esta forma de condensação da informação. Como transculturação da Ilustração, a modernidade se caracteriza pela secularização total, isto é, investe num questionamento sistemático - não importa em que esfera do saber - daqueles preceitos e conceitos impermeáveis, e cujo efeito sobre nossos afetos e mentalidades é, em muitos aspectos, arrasador. No entanto - e aqui poder-se-ia falar numa contradição entre termos -, a modernidade admite suas investidas canônicas ao mesmo tempo em que opera através de sucessivos lances dessacralizantes.
A impossibilidade de um cânone hegemônico é defendida pela modernidade através do pensamento crítico de artistas e escritores como Duchamp, Nietzsche, Freud e Pound (não obstante o conceito de paideuma do último). Em contrapartida seus epígonos, ou os que se sentem herdeiros dessa linhagem, mais por pragmatismo que por incompetência, tendem a instituir algo como um contracânone, emergente e alternativo, em que os textos desses pais fundadores ocupam o ponto mais alto. Ponto de fuga e de virada, interessado em redefinir posições da força e de dominação. Entretanto, a entronização de uma nova perspectiva canônica patrocinada, por exemplo, pelo relativismo multicultural, relega a segundo plano a pergunta decisiva acerca da razão de ser de qualquer cânone e suas eventuais reencarnações. Até onde podemos supor, parece tratar-se, grosso modo, de convencional substituição, e a esterespeito ocorre-nos o seguinte pensamento de Hannah Arendt, “o substituto ainda tem alguma coisa a ver com aquilo que vai substituir”.
A concepção de cânone como algo culminante, acervo de obras acima de qualquer suspeita, força simbólica capaz de nortear a formação ou o projeto utópico de uma identidade nacional, começa a ceder terreno a uma angulação mais insignificante, menor, ou que retroage até a esfera privada. Os cânones se configurariam, então, a partir do registro doi rredutivelmente pessoal, dos condicionamentos subjetivos. Isso ratifica a noção de que são os poetas que acabam por dar nome às escolas.
Aquela forma exclusivista de cânone não precisa ser necessariamente eludida do nosso horizonte de referências, o que acontece é que seu lugar já não é mais central nem determinante.
Resta dizer que, talvez, ainda seja de alguma utilidade atravessar - mesmo que com certo desconforto - a série dos cânones históricos para se chegar ao entendimento do não-cânone da contemporaneidade, que aceita a parcialidade por se recusar ao consolo metafísico dos modelos consagrados. O objetivo não é mais canonizar, porém passar antropofagicamente através da medula do(s) cânone(s).
Em qualquer âmbito artístico onde atue um olhar crítico, prepondera, quase sempre, afuga da vigilância de uma ordem estética universal, ditada de cima. Como a modernidade notabilizou-se pela prevalência da crítica sobre o cego arranjo místico do instrumento, torna-se perfeitamente plausível a existência de uma pluralidade criadora, arredia às essências ditadas por um conduto estético.
Apesar de se dispor a um jogo mais franco e aberto com a multiplicidade, o artista moderno não abre mão de um comportamento de linguagem particular. Assim, quanto à valoração de uma certa pluralidade (se seria pasteurizante ou não), vale dizer que, se a unicidade estética pretendida (e fundada) pelo cânone frustra a liberdade radical da modernidade, uma pluralidade onde tudo cabe e tudo se aceita, por sua vez, soa como um comportamento acrítico ou, pior, como um atestado de limitação e impotência de se levar a termo um projeto estético mínimo.
A suposição de que a contemporaneidade preconiza o ecletismo regressivo, ou o pluralismo anódino, faz sentido na medida em que estamos experimentando, como nunca, o assomo de realidades híbridas e narrativas históricas cada vez mais polifônicas e fragmentárias que requerem, portanto, abordagens inconclusivas e indecidíveis. Tudo isso também deita raízes num estado de espírito, digamos, finissecular e um tanto retrospectivo tendente a desbastar o gume dos impasses e dos atritos em benefício da negociação e da tolerância - às vezes puritana, como é o caso do viés politicamente correto dos fast thinkers. Assim, haveria tempo e vozes para tudo sem o risco da superficialidade? Acreditamos que não, pois o projeto poético parte de uma condensação da linguagem, decorrente de um rigoroso processo de escolha e configuração de signos.
A antinomia entre novo e velho é tipicamente modernista. De outra parte, a contemporaneidade pós-moderna dispõe deste oximoro de modo diferente. O novo e o velho convergem para um presente sem margens, eterno, que os anula. O tempo se espacializa, não é mais sucessão. É mosaico simultaneísta. Assim, o novo não se concebe mais como reação ao convencional, ao perempto; o novo - agora um fait accompli - se detém apenas como mais uma possibilidade performativa tão válida como qualquer outra: pressauro (Augusto de Campos dixit).
Por isso, não é raro ocorrer na poesia de agora-agora o pastiche do passado assim como do futuro. O fato é que, oscilando para trás ou para frente, a poesia contemporânea incorpora como um fim aquilo que, seja para a tradição, seja para a modernidade, era tão-só um meio, a saber, sua mise-en-scène reivindicativa de lances utópicos: um novo éden, um canto contra a usura, um mundo antes icônico que canônico.
Evidente que o poeta pode manejar um cânone das mais variadas formas. Indício de atualidade, isto é: se o fizer com radicalidade, fazendo-o alcançar uma transitividade, uma vez que a pregnância, a intransitividade e a suficiência estão na raiz do cânone. Um projeto radical e novo de linguagem respiraria dentro de uma forma cristalizada? Seria possível o acróstico, o epinício, a sextina, o soneto, senão como reutilização desconstrutiva, irônica e auto-referente?
Os poetas contemporâneos não se envergonham de um virtuosismo técnico a que se submetem ludicamente. Transitam com leveza pelo círculo vicioso da competência. Sua erudição é um banquete após uma expedição de conquista. O refinamento é tudo. Numa espécie de réplica soft ao politicamente correto, re-instauram o poeticamente correto. Se a geração anterior, representada pelos escritores do alto modernismo e dasvanguardas de 50 / 60, não dominava a arte extremamente difícil de ser sincero sem ser ridículo, esta, pelo contrário, domina-a, mas com tal virtuosismo que chega até o ponto de transformá-la em algo empetecado, uma variedade de cinismo fashion, um esnobismo. A força de se desfazer dessa forma de ingenuidade (à qual se entregou o modernismo, e do mesmo modo as vanguardas), paga-se um tributo cruel a esta inteligência saturada, secular, mundana; forma rarefeita do impacto uniformizante da tecnologia digital.
Ronald Augusto - Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992) e Confissões Aplicadas (2004).
Cândido Rolim - Poeta e ensaísta. É autor de, entre outros, Pedra Habitada (2002), Exemplos Alados (1997). Tem artigos publicados em sites de literatura.
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