Portrait of Charles Baudelaire, by Gustave Courbet |
Há o poeta Charles Baudelaire e o analista e esteta Charles Baudelaire (em conjunção tensa). Mas há ainda o poeta-crítico Charles Baudelaire (que, em perspectiva, anula o virtual impasse). Sua poesia e a dos seus contemporâneos, mais a arte do seu tempo, são o alvo de sua prática e reflexão. Alguns exegetas dessa obra desenvolvida, digamos assim, nessas frentes que se bifrucam, sustentam que as abordagens críticas do poeta seriam mais avançadas que sua atividade poética. O cotejo entre as duas formas de discursos, visando a ratificar tal suposição, talvez seja descabido.
No entanto − e aqui cometo uma inconfidência −, no meu caso, o contato com seus ensaios, sempre geniais, me conduziu a uma reconsideração mais atenta da sua poesia que, a princípio, tomando por base primeiras leituras, não havia me perturbado, pois ela não parecia representar a figura do moderno que o Baudelaire, crítico cultural, me ensinara a apreciar, e que tão definitivamente plasmara o pensamento das gerações que lhe sucederam. Mas, a figura do “escritor-crítico”, conceito-base de análises de Leyla Perrone-Moisés,1 me auxiliou a entender melhor essa relação entre a obra inventiva e a reflexão estético-crítica baudelairiana. Com efeito, não há uma hierarquia valorativa entre essas duas atividades exercidas com maestria pelo autor. Uma tentativa de resumo das idéias da crítica e professora de literatura, talvez pudesse ser feita nos seguintes termos.
Em primeiro lugar, o escritor-crítico estabelece “um tipo particular de discurso crítico”, ou seja, estamos frente a um discurso que se situa, e que, ao menos provisoriamente, ocupa um campo estético. No entanto, nada impede no momento seguinte o abandono do terreno conquistado. Aliás, Baudelaire defendia a crítica parcial, aquela que toma partido. Como se fora um lance numa partida de xadrez. E a cada intervenção, o escritor-crítico se embrenha (às vezes à revelia do próprio desejo) num debate de formas e ideias que diz respeito a si e aos seus iguais, e que, de outra parte, pede a interferência deles e a sua réplica futura. Esses escritores pensam de maneira interessada, e aquilo que pensam gera “maiores conseqüências: porque orienta a produção de suas próprias obras, dando assim continuação à ‘Literatura’”.
Por outro lado, segundo W. H. Auden2, o escritor-crítico, ou o escritor que começa a dar ouvidos ao seu “censor interno”, sabe que possui um conhecimento limitado, e por isso mesmo sua perspicácia o faz falar de “florestas” e “folhas”, mas o impede de aventurar-se pelo assunto “árvores”. Os escritos críticos dos poetas talvez devam ser lidos como experimentos poéticos e literários de segundo grau, derivações, ficções de cânones precários. Entretanto, isto não quer dizer que seus resultados não precisem ser levados a sério, pelo contrário: apenas que as reflexões promovidas por esses escritores e poetas são desenvolvidas “com vistas a uma ação: sua própria escritura, a dos escritores que trabalham naquele momento ou que trabalharão num futuro próximo”. Quando o poeta resolve escrever crítica, prefácios, ensaios, etc., ele não tem a pretensão de socorrer o leitor − esse é o objetivo da crítica literária institucional, jornalística ou acadêmica.
Para Octavio Paz, exemplo de poeta-crítico, o sentido de um poema está sempre num outro poema. E é a partir dessa perspectiva que entendo a tarefa do escritor-crítico: o discurso crítico engendrado por ele apresenta conexões necessárias com o discurso de invenção. Um está entremeado ao outro por meio de fios não-aparentes. O escritor, por se achar implicado nas imperícias e imposturas que aponta e denuncia, sejam nas suas, sejam em obras alheias, “acha que o poema é sempre mais importante do que qualquer coisa que se possa dizer sobre ele”. Sua leitura não substituirá aquela escritura poético-literária que eventualmente esteja sob os seus olhos. Assim, o discurso crítico do escritor, mesmo o mais aparentemente afinado com a crítica literária institucional, é um discurso do desejo e da preguiça. Ele inventa um texto equivalente, contrabandeando para o interior da sua metalinguagem a beleza capturada no momento em que é levado a erguer a fronte, inclinada, até há pouco, sobre o poema. Ele só admite ler aquilo que lhe agrada. Isto talvez explique o fato de suas abordagens, não obstante serem arduamente trabalhadas, resultarem, o mais das vezes, sincrônicas, lacunares, fragmentárias, carentes de nomes consagrados, etc., e sempre se apresentando em oposição aos “‘quadros completos’ dos manuais de história literária”.
Outra característica desses escritores e poetas críticos é a eventual tematização de questões estéticas em suas peças inventivas, quer seja investigando a linguagem das demais artes ou de algum artista em particular, quer seja considerando os limites do seu próprio gênero ou de sua própria obra. Os escritores-críticos não dissimulam o fato de que escrever sobre escrever sempre fez parte do nosso repertório, desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, pelos sambistas etc., e chegando até aqui. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em xeque ou em movimento esse passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever.
Muito bem, depois dessa interpolação um pouco longa, voltemos a Charles Baudelaire: poeta, resenhista, esteta, etc. Inteligência curtida em anos de estudo vagabundo: “Como escritor, Baudelaire tinha um grande defeito de que ele próprio não desconfiava: era ignorante. O que sabia, sabia profundamente; mas sabia pouco. História, fisiologia, arqueologia, filosofia, permaneceram-lhe estranhas...” (apud Walter Benjamin). Maxime Du Camp, autor do comentário acima, talvez tenha entendido que Baudelaire se pronunciou além do tolerável a respeito de “árvores”. Ironias à parte, está aí patente a objeção, a censura superciliosa da crítica literária institucional com relação ao “estilo de trabalho” do escritor-crítico. A tópica baudelairiana não via disjunção entre ordem e volúpia. O limbo da poesia, acomodado em área nobre do inferno dantesco é um “mundo às avessas”. Como diz Baudelaire em “L’invitation au Voyage”: “Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté” 3.
Se admitirmos sem controvérsias que o autor das Fleurs du mal veste com elegância a casaca do poeta-crítico, não seria despropositado aventar também a hipótese de um Baudelaire “construtivista”. Segundo Walter Benjamin, Baudelaire reivindica para a arte moderna uma “força de expressão” característica da antiguidade, e essa força se limitaria à construção. E Baudelaire, tendo em mira a sua produção e a dos seus pares, afirma: “Ai daquele que estuda outra coisa na antiguidade que não a arte pura, a lógica, o método geral”4. Esse Baudelaire sincrônico, que onera e projeta o passado como uma figura de objetos “arte-feitos”, não se distancia da noção de que a poesia, para a poética clássica, corresponde ao belo imperfeito, pois o que predomina nesse gênero é a disposição para a ficção e modelos imaginativos particulares, portanto não faz sentido que se lhe exija qualquer veleidade pedagógica ou moralizante. Platão, no entanto, tem em mente o belo perfeito, a obra poética em que se realiza a união do útil ao agradável – por seu turno, o poeta francês põe luxe e volupté em relação com a beleza, agora bizarra e esquizo, da modernidade. Como poeta-crítico, Baudelaire quer “as essências e as medulas” da antiguidade, vale dizer, seu apetite crítico e estético ataca a parte viva do acervo; e assim, na verdade, ele a (re)inventa. Como leitor fervoroso (parcial) do passado criativo, tenta ser um intérprete de aspectos bem delimitados do legado, com vistas a transportar para o seu presente, o substantivo de uma tradição em movimento e onde se vê implicado.
1 “Escolher e/é julgar”, Leyla Perrone-Moisés, in Colóquio/Letras (Lisboa), no 65, Janeiro de 1982, pp. 7-8.
2 Fazer, saber e julgar, W. H. Auden; tradução de Angela Melim, Ilha de Santa Catarina, Editora Noa Noa, 1981, pp. 32 a 34.
3 As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 234 a 237.
4 A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 10.
2 Fazer, saber e julgar, W. H. Auden; tradução de Angela Melim, Ilha de Santa Catarina, Editora Noa Noa, 1981, pp. 32 a 34.
3 As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 234 a 237.
4 A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 10.
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Assina o blog www.poesia-pau.zip.net.
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