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O desejo de saber das crianças sempre faz a gente ir fundo na memória. Há anos, fui indagado cara a cara por meus dois filhos sobre como tinha sido minha infância. Conto que só fui ver luz elétrica com doze anos de idade. E assim mesmo do escurecer às 10 horas da noite. Era quando o gerador movido a diesel, da minha cidadezinha no sertão baiano, produzia com força de vaga-lumes um fio de energia apenas capaz de encher casas e ruas de luzes amarelas e fracas.
-- Foi a partir daí que, como um personagem de Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Marquez, vim a conhecer o gelo.
Totalmente urbanos, os dois meninos não me levaram muito a sério. Em seguida, juro que era a mais pura verdade. Acostumados à tecnologia eletrônica, disponível em seus apartamentos na metrópole, relegaram meu relato à imaginação do ficcionista.
-- Ah, pai, um contador de histórias.
Continuo em frente. Digo que naquela época vi o primeiro filme, aquele que a gente dificilmente esquece: um policial chamado A Estrada 301. Televisão só mais tarde, uma única vez, numa rápida viagem a Salvador, quando também me deslumbrei com o mar.
Não éramos tão pobres, no entanto. O pai tinha um rádio a pilha, caixote de madeira que captava vozes, melodias, chiados e ruídos estáticos diretamente do céu, naquele fim do mundo.
A luz elétrica, evidentemente, foi o primeiro contato com a modernidade. A partir daí, tive muitos sonhos na vida. Um deles era ir para a cidade grande e ser motorista de táxi. A idéia havia surgido após leitura de O fio da navalha, do escritor inglês Somerset Maugham. O livro narra a história de um homem em busca da fé. Assustado pela presença da morte durante uma guerra, ele abandona uma oportunidade de riqueza e prestígio para procurar, em viagens pelo mundo, sabedoria, paz e felicidade. Ao final do aprendizado, ele vai ser taxista em Nova York. Seu argumento para a escolha era simples.
-- Sou muito sensato e muito prático -- concluía em seu raciocínio desprendido de dinheiro. -- Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro.
Fui, porém, por outros caminhos. De uma infância sem luz, hoje navego na Internet. Se Cabral levou meses para chegar ao Brasil há 500 anos, posso em minutos saber como estão as águas do rio Tejo, em Lisboa.
Mas, às vezes, não sou tão moderno assim e busco a lição do passado. Sei que cada infância é diferente como as águas que rolam num rio.
Muitas vezes, só, vou à procura do tempo de menino, para mergulhos no tempo.
Abro a janela do velho apartamento, cubro o computador com a capa preta, apago todas as luzes e olho para o lado mais escuro de minha rua.
Ali, sinto a antiga visão do anoitecer, em esquinas perdidas na bruma. O mesmo negrume que fascinou uma criança acostumada com suaves remansos de riachos ou a distante estrela que pulsa nos confins do universo.
Nessas noites fictícias, mas recheadas de esperanças, sigo com o pensamento longe, na vida, em algum lugar do futuro.
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