Roberto Aguerre Ravizza, Acordes En Rojo, olio su tela, 200x150 cm |
Antes de tratar da linguagem contida em Córrego de amarras, que é o que de fato interessa, abro aqui um intervalo para discutir um aspecto, no meu entender, secundário, porém não irrelevante, do percurso poético de Deisi Beier que se apresenta ao público a partir de 2007 com Tramas de orvalho, também um livro de poemas. O sucinto comentário diz respeito ao modo como a poeta aborda a imagem cambiante do feminino em sua poesia.
Na direção oposta da relativa pureza do espaço interior, espiritual, onde a autonomia discursiva deveria reinar, o poderio da estruturação social exerce sua força. Até certo ponto, a literatura atual procura atender às demandas da dinâmica social em curso, votada a reparar injustiças e exclusões, já nem tanto de um ponto de vista politicamente correto, mas a partir de sua versão diluída, a saber, ratificando uma espécie de etiqueta da boa convivência étnica, multicultural, e, ainda, entre os gêneros. Não pretendo afirmar que o livro de Deisi Beier seja sinédoque textual de alguns aspectos dessas questões — as de gênero, principalmente. Não obstante, essas perspectivas sobre o texto literário representam, hoje, o reconhecimento da legitimidade de uma série de discussões radicadas no espírito de nossa época. A reivindicação das diversidades se associa a um relativismo hipoteticamente progressista, e, sob tal rubrica, as linguagens analógicas tendem a ser reduzidas, por assim dizer, a dois modos de ser: num caso (a), restam como um sistema autista que mais se presta à omissão alienada; e em outro (b), emprestam eventualmente seu caráter sugestivo às causas ideológicas, dando outra coloração ao desempenho destas na efetivação dos seus resultados. Isto é, de um lado ou de outro, a palavra é considerada como sobra e/ou sombra da ação. Despojo dos conflitos político-sociais. O “domínio próprio” não se encontra isento nem livre do imperativo dessas temáticas e questões que definem uma parte da nossa existência. No entanto, mesmo concordando com a eventual pertinência das pulsões ideológicas envolvidas na sondagem do texto criativo, não se pode perder de vista que isto ainda é uma parcela da situação ou um dos muitos meios de fruição do indeterminado do discurso literário.
Desde sua estréia, a poeta Deisi Beier busca essa indeterminação na sua interação complexa com o pano de fundo da sociedade. Sua poesia, a par de uma obstinada pesquisa semântica, convida o leitor a abandonar-se, por sua vez, a uma deriva semântica. É o que, felizmente por outros meios, diz um dos fragmentos de “Relicário de nadeiras”, primeira seção do livro:
repetir, repetir, repetirPor meio desse movimento reiterativo (conceito-chave da função poética), no qual as estruturas verbais se conformam de maneira a sugerir certas idéias ou assuntos mais pelas relações musicais que as ligam do que pelo sentido lexical com que são admitidas pelo senso comum, Deisi Beier segue o percurso iniciado em sua obra anterior, e alcança uma imprecisão virtuosa pulverizando qualquer pretensão de um “conteúdo duro” que se queira propor para os seus poemas. Um exemplo dessa deriva semântica a que o leitor é instado a se lançar, se acha no último escrito (de três linhas apenas) ainda da mesma seção, na qual Deisi Beier põe em causa a autoridade do texto oracular ou vaticinante, propondo as suas anti-sentenças, seus provérbios improváveis, enfim, enunciados equívocos porque não são o decantar dos saberes coletivos colecionados no tempo, mas sim a sua instável e particular “contribuição milionária” a este estado de indagação permanente que às vezes nos atormenta, mas sem o qual não pode haver o humano. Diz, assim, o fragmento de sabor brossiano: “agora meu dedo indicador/ está em minha têmpora/ fazendo algumas voltinhas”. O poema-terceto encerra a seqüência cancelando as possibilidades de extração, por parte do leitor, de qualquer essência filosofal canônica capaz de orientá-lo em sua busca de conhecimento ou de desfechos.
até perder o senso e parar de doer
Em paralelo, de modo um pouco mais renitente, na segunda parte do livro, “Do córrego”, acompanhamos as senhas alusivas ao feminino: “perdoa essa ambígua essência”; “úmida planta no escuro de si”; “o zinabre no fundo esquecido de tanto jogar-se por águas ao poço”; “à noite viro brinquedo da morte”, etc. Deste ponto em diante — e se quisermos colocar as coisas na perspectiva da consciência de gênero —, Deisi Beier tenta situar sua poesia, numa zona esteticamente funcional, isto é, os poemas ensaiam o negaceio e a negociação entre o “a autonomia do espaço interior” e as restrições da controversa trama social a exigir-nos papéis e/ou máscaras bem afiveladas. Entretanto, a consciência da poeta em relação à condição feminina transposta ao poema e depois ao apetite do leitor, participa dessa mesma analogia do “perder o senso”. Portanto, Córrego de amarras representa uma experiência de linguagem que não se ressente de concordar, inclusive, com aquelas leituras adversas que eventualmente provenham da recepção a propósito “do que quis dizer a poeta” em tal poema. Porque (e aqui recorro a Paul Valèry), Deisi Beier não quis dizer, mas quis fazer, e foi a intenção de fazer que quis o que ela disse. A “desvantagem” de não ser óbvia faz com que seus poemas abordem o tópico “o que é uma mulher” e a relação amorosa, de maneira que essas coisas, por meio da reiteração de formas, “parem de doer” no nosso automatismo psíquico. Mais um movimento nesse:
caminho por escritoChamo a atenção do leitor para os sintagmas “caligrafia coreografada”, “o prumo do riso”, e o “dizer sempre o oblíquo”, já que esses compósitos, ao menos provisoriamente, me autorizam a ler a representação da mulher em Córrego de amarras, de um ponto de vista em que os traços do histrio (fingidor, ator de mimos, etc) na dicção de Deisi Beier se projetam sobre a convenção do hister-o (do gr. hustéra,as “útero”). Isto é, graças ao riso oblíquo da consciência de formas e de linguagem, Deisi Beier consegue não participar de uma restritiva “poética do feminismo” que, até agora, só serviu para sustentar uma espécie de teoria histérica da literatura.
nessa caligrafia coreografada
em casa larga
boca-traço sem nome
o prumo do riso
de um dizer sempre oblíquo
A estética do esboço, do lacunar, que sublinha a primeira seção é compensada com a série de poemas de “Do córrego” que a segue, e onde Deisi Beier como que começa a preencher os intervalos vazios do seu constructo. De todo modo, a elipse é mantida e permanece sendo diagramada, inclusive, na eventualidade da página onde a brancura e o espaço mallarmeano comunicam a impossibilidade, em termos conteudísticos, de um sentido completo. Porque seu texto, que fala lateralmente, se recusa a coincidir com as regras públicas do discurso que moldam os atos comunicativos da vida cotidiana. Cada verso da poeta desborda em liame, linha, fio de sangue que é símbolo “e corre em pacto/ íntimo e insondável”.
Deisi organiza seu acervo de imagens e achados verbais de maneira que o conjunto de poemas apresenta uma alternância de peças mais breves e outras mais longas. Nestes poemas mais afeitos a uma discursividade aproximada do vertiginoso, do monólogo interior, Deisi estabelece delicadas conjunções e disjunções com o Cântico dos Cânticos ou Canto dos Cantares, representante máximo de hino nupcial, e texto modelar da literatura ocidental. Dentro de certos limites, a aproximação não é descabida.
Se, descartando outras camadas de significação, o cantar bíblico trata do amor natural e, sem muito esforço, caberia na figura de um conjunto de poemas eróticos, já a atmosfera de fundo de muitos poemas da segunda metade de Córrego de amarras, por contraste, aponta, por assim dizer, para um virtual cântico do desencanto amoroso (não definitivo!) relativamente aos impasses do jogo conjugal. Para não ficarmos apenas nas diferenças, lembro, ainda, que um ou outro tradutor do livro sagrado, aponta a sua “poesia por vezes desconexa”. Ao transpor tal avaliação para o caso de Deisi Beier, leio o qualificativo desconexo em termos de parataxe. Deisi cria poemas que se justapõem num inventário-discurso de compósitos imagéticos, um verdadeiro cine-sintagmas. Uma fala em simulação de transe. Vejamos alguns excertos de quatro poemas:
minha nau partidaPor outro lado, em contracanto com Salomão, a morena dos Cânticos também se expressa como se estivera levemente perturbada, não só por eros, mas no sentido em que, à diferença de uma sacralidade iluminadora e judicativa, a consorte fala (em versos) desde a ambigüidade da analogia e das imagens que, por essência, implicam uma dose de escureza ou de veladuras metafóricas. Mais uma vez a deriva semântica retorna ao foco, e a poeta Deisi Beier, por seu turno, fala através de alguém que sussurra, por exemplo: “encosto minhas dúvidas no ombro/ dos lençóis que não respondem”. Miragem de significação: o leitor frente à mancha gráfica do poema na página, lençóis e dobras que emudecem.
sob as velas de hibiscos rosados
(...)
beijo onde não queres beijo
a ferida aberta a fórceps
a decência escancarada
tua alma teu trauma
(...)
o tanto quanto de mim
te mostrei
áspero o toque dos dedos
da ausência
(...)
a urgência da falta
o desconsolo do breve
a razão não resiste
Não me lembro em que prólogo a um dos seus livros escreve Jorge Luis Borges que toda leitura implica uma colaboração. O leitor deve suprir as ausências constitutivas do texto literário — inventando as suas próprias respostas —, mesmo porque são elas, as lacunas, que tornam possível o prazer poético. Borges, comparando o seu escrito a uma milonga executada com languidez, diz: “La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los acordes”. Tomo esta imagem como a minha divisa de leitura de Córrego de amarras. Deisi Beier abala o leitor com acordes inauditos.
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