Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José de Geraldo de Barros Martins
A Incrível Estória De Odaire Voltaire

1- Ir

Definitivamente, Odaire Voltaire Itaglianinni Mouzinho não era um pessoa com uma vida comum... nascera em outubro de 1944, durante o bombardeio de Roma... filho do filósofo português Moacyr Mouzinho e da escritora italiana Itala Itaglianinni... seu pai fugira do Portugal salazarista, sua mãe filha de uma condessa russa com um aristocrata genovês, se desiludira da cultura ocidental...

Apesar de uma infância de privações, o nosso protagonista participou como figurante do filme “La Strada” de Frederico Fellini em 1952, onde aparece em uma praça em meio a pessoas que assistiam a um circo de rua... neste dia, durante as filmagens ele fez uma promessa para si mesmo: -”Io diventerò un artista” (*)

Na juventude formou um das primeiros grupos de rock italianos, o “L'effervescente Zucchine” cujo principal sucesso era “Il Tempo È Dalla Mia Parte” uma versão italiana de “Time Is On My Side”... até hoje ele guarda uma foto da banda, e não se cansa de mostrar para seus amigos de bar...

O “L'effervescente Zucchine” fez um enorme sucesso na Itália, seus shows eram sempre espetaculares, desde as apresentações nos ginásios das principais cidades (Roma, Firenze, Milão Turim, etc.) até as pequenas turnês como a da Sicília no verão de 1963 ou a da Costa Amalfitana durante a primavera de 1964.... porém seguindo o caminho oposto ao do grupo de rock brasileiro “Os Incríveis” que estourou na Itália, o “L'effervescente Zucchine” achou que poderia fazer sucesso em Pindorama ...

Ledo engano... a sonoridade da banda era muito avançada... uma espécie de dodecafonismo psicodélico... a turnê foi um fracasso total... talvez se eles tivessem vindo ao Brasil na época da tropicália a estória poderia ser outra... Todos retornaram para o país natal, menos Odaire Voltaire, que familiarizado com a lingua portuguesa (afinal era um Mouzinho), resolveu ficar para ver no que dava...

Largou então a música e passou a se dedicar às artes plásticas, expondo junto com Gershman, Antônio Dias e Maurício Nogueira Lima... participou da exposição de arte “Apocalipopótese” no aterro do Flamengo em 1968, junto com Hélio Oiticica, Lygia Clark, Rogério Duarte, etc... lá conheceu Lúcia Laércia, que no ano seguinte iria tornar-se sua esposa... porém após o casamento rumores e boatos que diziam que ele era um membro das Brigate Rosse, obrigaram nosso protagonista e sua esposa (grávida nesta altura do campeonato) a deixarem Pindorama através da República Oriental (traduzindo: sairem do Brasil através do Uruguai)...

2- Voltar

Uma vez em meados dos anos setenta em um pequeno bar perto da estação de trem de Brindisi, Odaire Voltaire puxou conversa com o famoso cantor Domenico Modugno, e após beber uma longa série de dry-martinis, começou a contar sobre sua vida... disse que vivera no Brasil e que lá havia se casado com uma bella ragazza, mas que havia voltado à Itália onde havia tido uma filha... logo depois se separou... a ex-mulher continuou a morar na Itália, mas nunca o deixou se aproximar da criança...de vez em quando ele ligava fingindo que era engano, só para ouvir a voz da criança no telefone... Domênico Modugno ouviu a estória com lágrimas nos olhos... semanas depois Odaire Voltaire entrou em uma sorveteria perto da Fortezza Vecchia em Livorno e ouviu uma nova canção de Modugno: “Piange il Telefono”... era a sua estória... tempos depois fizerem uma versão brasileira chamada O Telefone Chora” gravada por um cantor chamado Márcio José...

Meses depois do famoso encontro em Brindisi, Lúcia Laércia comecou a enlouquecer e o nosso protagonista conseguiu a guarda da filha, Lauretta Laércia Mouzinho... porém a menina apesar de o ter aceitado como pai (ficara inclusive impressionada em descobrir-se bisneta de uma condessa russa); insistia em ser criada por um figura feminina, sendo que o jeito que o nosso protagonista encontrou para resolver tal questão foi levá-la para passar uma temporada com a tia Elvira (irmã de seu pai) em Sintra...

Em Portugal, Odaire Voltaire participou da agitação decorrente da Revolução dos Cravos, onde conheceu Glauber Rocha que viera para a terrinha, para participar como entrevistador do documentário “As Armas e o Povo” (**), inclusive há nesta película, uma cena no Rocio, onde podemos ver Odaire Volaire em meio a multidão...

3 -Voltar A Ir

Em 1977 ele trouxe sua filha ao Brasil, para conhecer os avós maternos... Em Pindorama voltou a se encontrar com Glauber... desta vez aparece como coadjuvante na entrevista que o General Golbery do Couto e Silva concedeu para quadro do programa “Abertura” que o cineasta baiano fazia na TV Tupy.., Golbery tomando whisky junto a uma parede de tijolo aparente, comentando o golpe de 64...

A partir desta experiência com o cinema, Odaire Voltaire retomou o contato com sua infância, com a precoce participação em “La Strada” de Frederico Fellini... então a estória de nosso protagonista adquire dimensões épicas...

4 – De Volta A Realidade

Seus amigos de bar não se cansam de ouvir seus feitos... muitos sabem que a foto dos “L'effervescente Zucchine” que ele mostra com tanto orgulho é na verdade uma foto dos Rolling Stones no início de carreira, em que os integrantes estão com os rostos meio encobertos pelo ângulo adotado pelo fotógrafo... sabem também que:

- Os aliados libertaram Roma em junho de 1944, por isso não haveria razão para um bombardeio
ter ocorrido quatro meses depois de domínio aliado ;

- Ninguém em sã consciência faria o que Moacyr Mouzinho fez: fugir de Portugal de Salaza para Itália de Mussolini;

- O grupo terrorista de extrema esquerda “Brigate Rosse” (Brigadas Vermelhas) surgiu em 1970, portanto é absurda a estória que um ano após o “Apocalipopótese”, ou seja em 1969, alguém possa acusar Odaire Voltaire de pertencer a um grupo terrorista que nem sequer existia;

- “Piange il Telefono” não foi composta originalmente na língua italiana, na verdade é uma versão
da canção francesa “Le Téléphone Pleure” ( letra de Franck Thomas e música de Jean-Pierre Bourtayre) que por sua vez é baseada (embora com melodia e letra diferentes) na canção country “Telephone Call” (George & Tammy & Tina, Telephone Call;

- O General Golbery do Couto e Silva jamais apareceu no programa “Abertura”... quem apareceu tomando whisky junto a uma parede de tijolo aparente, foi o jornalista e escritor Carlos Castello Branco, e não foi na TV... foi no filme “Terra em Transe”.

Seus amigos sabem, sabem que a lenda é mais divertida do que a realidade, sabem que o que Odaire Voltaire narra, não é sua vida real, mas um sonho, um sonho de pseudo-intelectual urbanóide ... sabem que ele nasceu na verdade foi no bairro paulistano do Cambuci... sabem que sua avó não era condessa russa, mas uma camponesa da Calábria que imigrara para o Brasil... sabem que ele na verdade nunca saiu do estado de São Paulo... Eles sabem, mas deixam Odaire Voltaire contar, contar e contar... suas incríveis estórias... Sem elas a conversa no bar seria um tédio...

(*) “Eu irei me tornar artista”
(**) Filme coletivo realizado e produzido pelo sindicato português “Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica”.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix