Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto



O menos vendido e suas partituras

Na abertura de O menos vendido (Nanquin Editorial, 2006), podemos ler um poema - espécie de pórtico - pertencente à família daquelas peças poéticas que discutem a tópica clássica segundo a qual a arte é simbolizada como um monumento resistente à inclemência do tempo e das intempéries. O poema, assim como “uma música [que] não precisa mais que três minutos./ Um haicai, alguns segundos”, é arte que perdura  e se dá  no tempo. Ricardo Silvestrin, como se lê num poema do seu livro Palavra mágica (1994), mais do que moderno, está no nervo do seu tempo e desde “a nave do novo” de sua viagem textual eterna, inscreve na caverna o vir-a-ser da sua linguagem. E é por esta razão que Silvestrin, mesmo sem dar as costas à dimensão espacial conquistada para a poesia a partir de Un Coup de Dés, de Mallarmé (1897), jamais se esquece de que a poesia ainda é uma arte temporal; ritmo para uma partitura vocal, ou, outra vez, como a música, um som e uma pausa; a sílaba tônica e a sílaba átona. A terra pulsando sob os pés, a voz que voa.


Este poema também representa a outra face da “moeda” que se estampa na capa do livro. Com efeito  e não se deve desprezar, mesmo, a sugestão de efígie: ao poeta o que é do poeta , o artigo / o /, ou o “zero” em cujo centro lemos o poema que dá título ao livro, rodopia diante do leitor fazendo-o pensar, talvez, o seguinte: se é verdadeiro que um poema de verdade, poema bom, pode atravessar séculos e séculos sem perder seu tônus de beleza, por outro lado, pode-se constatar que “às vezes passa um século [ou mais]/ e nenhum fica pronto”, ou nenhum se nos entesoura na memória. O preço pago, portanto, à dureza sempiterna dos grandes poemas, são os longos trechos de tempo em que temos de suportar uma grande massa de obras literárias desprovidas do menor toque de classe. Mas, para a nossa alegria, de quando em quando, exsurgem, do fundo insondável dos infernos da invenção, obras como O menos vendido.

No poema seguinte de “Manchas”, que integra a primeira seção-livro do conjunto de O menos vendido, temos a imagem do leitor como um executante da partitura-poema. Fruindo a chance de ficar de boca fechada, o intérprete dessa “música calada” não obedece a “Nenhuma outra lei/ além da leitura”. A dança das palavras se desenvolve na cabeça do leitor por meio de uma coreografia resumida de gestos, não-figurativa: “Nada soa/ além do silêncio”. Mas o leitor-executante  antípoda do apreciador da prosa de entretenimento sempre submetido à hipnose romanesca  não fica inteiramente alheio, pois na economia da leitura criativa e crítica exigida pela poesia de Ricardo Silvestrin este silêncio com que o leitor tem de se haver, mostra-se ativo, intratável. Portanto, cabe aqui, lembrar e ler o contra-acento, a pausa, esse nada que soa, como um “contratempo”, isto é, podemos fazê-lo participar das acepções de obstáculo, imprevisto, etc., além de “forma rítmica em que o som é articulado sobre um tempo fraco, átono”. Ou seja, lendo às cegas, fora do tempo ou no contrapé, abandonado apenas à lei da leitura, lúcido salvo que fabuloso, o leitor colhe no ar ou num “alugar” a chance de ficar calado enquanto percebe a cada virar de página que “Vão-se os papéis,/ ficam os textos.”

Ficam. Mas, aonde? O poema está sempre num outro lugar: “ponte pênsil do pensamento” ligando o desejo àquilo que não se acha à mão. Assim como o poeta, também o leitor de O menos vendido se rejubila de andar “fora do ponto”. Nenhum dos dois está pronto. Pois, como nos ensina Roman Jakobson, “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável” da poesia. Portanto, continua o lingüista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. Veja-se este excerto do poema da página 35: “e diante de algo tão vago/ passo a me pintar/ num desenho abstrato/ aos poucos/ dilui-se a figura/ traços que lembram/ quem sou ou o que fui/ agora uma mancha/ branca sobre o branco”.

Enquanto isso, a dessarrumação e a desmesura do mundo servem tão-só de tema ou de signo à fatura do poema: “Algumas palavras/ e tudo se transforma em leveza.” (“Desgramas”, pág. 34). O mundo (do poeta) é apenas povoado de “famílias de palavras”  em que pese, às vezes, ele se achar a muitas palavras de distância. A instabilidade do tecido de fundo do real, esse tablado móvel, não permite que o sentido caia duas vezes no mesmo lugar. Em que bases, então, se dá a experiência simbólica do homem sobre a superfície dissolvente do mundo? Não se espere de Silvestrin uma resposta de enciclopedista a esta questão tão remota quanto kitsch. Sem muitos circunlóquios o poeta nos propõe isso: “a ação [sobre o mundo] é o raio/ o sentido, o trovão/ que às vezes chega anos depois” (pág. 53). Mas, se e quando o sentido chegar, não nos encontrará, isto é, não seremos mais os mesmos, mesmo. Servirá a outro: “estou aqui/ por um tempo/ uma hora/ vou embora/ deixo escrito/ gravado/ algum pensamento/ que seja mais forte/ que a carne/ o sangue/ o osso/ que viva/ no corpo/ de outro”. O poema como estrutura viva ou ultima verba, não dura, em fim de contas, o tempo do monumental granito, nem do monólito; dura o tempo do corpo e seus tendões; o intervalo de suas espiras que constituem idéias.

Volto mais uma vez à metáfora do poema como partitura e de cujo silêncio o leitor-executante obtém a sua irredutível logopéia. Essa metáfora também é cara a Joan Brossa, para o poeta catalão os versos compõem “uma partitura” e “não são mais/ que um conjunto de signos” para a decifração do leitor colaborador. Do ponto de vista de Silvestrin, o silêncio que é sentido, vale dizer, significado ou quase-signo, é o melhor amigo do homem. Ouçamo-lo: “e o silêncio/ é o companheiro/ do homem/ seu fiel confidente/ escuta suas dores/ seus projetos/ é para ele/ que o homem/ fala/ e fala/ tudo o que sente/ o silêncio cala/ e consente” (pág. 63). Na palavra imantada de pausa, silêncio, onde podemos apreciar “os traços fonológicos da pessoa”, Ricardo Silvestrin destaca o humano das entranhas da humanimaldade. Volição e volatilidade do pensamento. Falar sem fabular é a coisa mais tediosa que pode acontecer ao homem, este animal que produz e consome símbolos. Ricardo Silvestrin desentranha o homem do poeta sem nenhuma veleidade moralizante: “preciso de água, luz, pátio, casa, família/ e também de símbolo, coisa que a planta/ e o cachorro/ não sabem/ que precisam” (pág. 57).

E é a partir desta perspectiva da celebração ou da “cerebração” (Alexandre Brito dixit) do pensamento-arte, “o que nasce da cabeça do homem”, que Silvestrin plasma o jornal íntimo de “A poesia de cada dia”, última parte de O menos vendido. Talvez seja esse o momento mais “ex, Peri, mental” do livro. Um poema para cada dia ganho/perdido. Cada poema a consagrar o dia que se dissipa na corrente do presente irredimível. Silvestrin usa a dosagem necessária de antipoesia. Lancinantes anotações à margem do instante precário. Um olhar de flâneur para as coisas belas e feras que se encontram entre ele e o mundo: shows, livros, praia cheia de argentinos, filmes, um lapso como desempregado, um programa de TV, etc. Uma cortina de fumaça (ou de bambu?) diarístico-verbal oscila entre o poeta e o entorno espetacularizado. Num andamento de prosa, Ricardo Silvestrin nos “passa a sua conversa”. Seus filosofemas capturados “na trilha trivial do cotidiano”, como refere Antonio Carlos Secchin no prólogo de O menos vendido. Mas, aqui, em “A poesia de cada dia”, não se trata, a rigor, da fala do poeta ou de suas metáforas: “Que poeta? É só um escritor”, mas sim das notas do escritor, ou, melhor, das cogitações de um ego scriptor, na tenção quase obsedante de transformar a coisa em palavra, mas ao mesmo tempo consciente de que o que ele representa e nomeia não se ajusta à perfeição à bitola do representado e do nomeado. Coisas e palavras falam de lugares divergentes, sua relação é duradoura porque “ambas só conseguem viver na intransigência”. Assim, nesse deambular pelas minudências de um epos do fútil e do útil, onde “tudo é motivo de celebração”, a linguagem continua sendo a viagem. Recordação na tranqüilidade daquilo que, por um momento, intranqüilizou Ricardo Silvestrin com sua maravilha ou sua injúria.

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