Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Cesar Cruz

Photo-manipulation by Eduardo Miranda
over painting by Bill Sharp
A Cadeira Cor-de-Rosa

Depois do almoço, passeando a pé pelas imediações do escritório, passei em frente a uma loja de móveis para escritório, dessas estreitas em que os móveis ficam empilhados uns sobre os outros. Quase posta na calçada como mostruário, vejo uma bela cadeira giratória de assento de couro, estilo simples e honesto. Apalpei, girei e concluí: forte e confortável. E eu ando mesmo precisando de uma boa cadeira pra substituir esta lástima que agora me encontro sentado, que comprei num brechó, quase de graça, num momento da mais pura escassidão de recursos financeiros. Além de ranger e ser toda desconjuntada, traz escondida por debaixo da espuma magra uma saliência pontuda que me espeta a nádega direita, o que tem me deixado ultimamente com as crônicas tortas.

“Alguém pode me dizer o preço dessa cadeira?” – gritei, com a cara metida pra dentro da loja escura.

Lá do fundo um vendedor se levantou da sombra e veio vindo, moroso.

“Cento e cinquenta reais” – ele resmungou, chupando o dente do almoço.

“Ah, obrigado” – eu disse, já saindo.

“Mas se for essa aí mesmo do mostruário te faço a setenta”

Parei e me voltei pra ele.

“Setenta me interessa. Mas queria em outra cor...”

“Por setenta só essa peça mesmo, meu chapa”

“Mas é que essa é cor-de-rosa...”

“É o que temos nessas condições. Aproveita o preço! Te faço em três vezes no cartão”

“Não dá, cara”

“Por que não dá?”

“É que fica complicado colocar uma cadeira cor-de-rosa lá no meu escritório de casa, que é todo no estilo sóbrio”

“E que que tem?”

“Tem que as pessoas vão achar que além de careca agora dei pra veado”

“Será?”

“Claro que sim! Pensa comigo: se eu simplesmente puser a cadeira lá e não disser nada, no estilo tudo-muito-natural, as pessoas vão achar que uma cadeira assim, brutalmente cor-de-rosa, só pode ter um propósito: o de transmitir uma sutil mensagem das minhas preferências sexuais secretas para eventuais interessados. Sacou?”

“Huum... – ele pareceu pensar, chupando agora o dente do outro lado”

“Porém, se eu tentar o caminho da verdade, explicando que havia uma certa promoção exclusiva pra cadeiras cor-de-rosa, vão sair de casa cochichando e espalhando por aí que sou um desses caras que querem esconder o óbvio ululante, como diria o Nelson Rodrigues, e que além de não aceitar a própria homossexualidade, ainda fica tentando iludir os outros”

Deixei o vendedor pensativo na penumbra da loja e fui-me, caminhando pela rua, travando uma luta interna contra o irremediável corderrosismo daquela beleza de cadeira que pedia para ser comprada.

Mas como levá-la para casa sem perder a dignidade, a boa reputação, o respeito dos amigos, da sociedade?

De repente me veio uma ideia que me pareceu ótima: escrevo uma crônica engraçadinha relatando todas as minhas dúvidas diante da cadeira cor-de-rosa, depois envio pra coluna do jornal. Quando for publicada, recorto, mando pôr num quadrinho bacana e coloco na parede bem do lado da cadeira. Simples!

Dali em diante, sempre que um incauto chegar em casa e direcionar olhos condenativos para minha cadeira cor-de-rosa, depois pra minha cara, direi: “Meu caro, não se apresse nos pré-julgamentos, antes leia esta crônica aqui, ó!”.

Feliz com meu próprio brilhantismo fiz meia volta em direção à loja.

Então meus pensamentos foram adiante e passei a imaginar o dia em que haveria uma festa lá em casa, com um monte de gente que eu não conheceria misturada aos meus amigos, todos bebendo, inclusive eu, e as sensibilidades à flor da pele dado o álcool e a música, e num súbito eu juraria ter ouvido um sujeito dizer ao outro que “o dono dessa casa deve ser bicha, veja essa cadeira cor-de-rosa!”, e eu me achegaria à roda, sangue fervendo, e diria, copo na mão, “o dono da casa sou eu, algum problema?”, e diante de uma risada de escárnio do elemento, que olharia pra minha cadeira e pra minha cara, e, em um breve instante, do qual eu me arrependeria pelo resto da vida, o copo da minha mão se quebraria na borda da mesa e as paredes brancas e a própria cadeira cor-de-rosa seriam manchadas com espirros de um líquido rubro-negro, grosso. Mais tarde, diante de um júri popular, eu ouviria minha própria voz de homem banal que cometeu um grave erro a lamentar o irremediável; agora, mero espectador de mim mesmo, só me restaria contar os anos que me separariam de novo da luz do sol, da minha mulher e filha, toda uma vida desperdiçada graças à cabeça perdida numa repentina explosão de ira, vã, desatinada, a mesma ira incontrolável que já mudou o destino de tanto homem justo e bom na história da humanidade. E, mais tarde, numa cela imunda e lotada, eu escolheria morrer a um dia ter passado defronte àquela maldita loja com a cadeira cor-de-rosa exposta na calçada.

Melhor aguardar a cadeira azul marinho entrar na promoção.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix