Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá

Marcos Rey
O paulistano Marcos Rey

Todos os sábados, pontualmente ao meio-dia, ia ao seu encontro na Livraria Cultura, na Avenida Paulista. De longe, ainda seguindo pelo amplo corredor do Conjunto Nacional, avistava seus cabelos brancos. Embora fosse 25 anos mais velho, era como um irmão.

Nos últimos tempos, bebia apenas um copo de chope e, às vezes, fumava um cigarro. Riso estampado no rosto, me contava que, quando não aparecia na Cultura, no final da tarde pedia o seu cigarro semanal para a empregada, escondido de sua esposa Palma. E ria.

Sempre gostava de lembrar uma história, um frustrado lançamento de livros em Jundiaí, para o qual foram convidados seu irmão Mário Donato, ele e eu.

Era inverno. Numa velha Variant, seguimos os três para a cidade próxima a São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Os funcionários da livraria já estavam à espera. Tudo armado na ampla praça: livros espalhados, mesa para cada autor, canetas a postos. Escureceu. As luzes se acenderam e, ao longe, víamos grupos de trabalhadores correndo para suas casas, para os pontos de ônibus, encolhidos e fugindo do frio. No final, apenas um leitor se aproximou da barraca e adquiriu um volume do autor que se escondia do vento gelado. Era dele: O enterro da cafetina. Depois, o silêncio e a noite de inverno.

Na viagem de volta, rimos muito com a nossa perseverança na literatura. Para ele, no entanto, encontrar apenas um único leitor não era motivo de tristeza. Sabia de tudo: pela vida afora, vendeu mais de cinco milhões de livros. Num país de poucos leitores, ele era rei.

Durante a semana passada, sobretudo no sábado, lembrei muito de Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, falecido em 1º de abril de 1999, aos 74 anos.

-- Minhas veredas são as do asfalto e iluminadas por lâmpadas de mercúrio -- me disse um dia esse autor nascido no bairro do Brás e criado nos Campos Elíseos. -- O meu único contato com a natureza se deu quando freqüentava a extinta African Boate -- brincava.

Vivia de escrever. Com idéias, fez de tudo: propaganda (ajudou a vender, creia, o Gordini), rádio, novelas de TV e muitos livros, sobretudo infanto-juvenis. Conhecia bem São Paulo e viveu intensamente os anos 50 da explosão urbana da cidade. Por isso mesmo, certa vez lhe perguntei qual era um bom roteiro turístico de São Paulo daquela época. Não titubeou:

-- O grande dia era a sexta-feira -- relatou. -- Quando trabalhava na publicidade, só voltava na segunda. O início da badalação era no Scarabocchio, lugar de fim de tarde, onde se reuniam as mais lindas garotas de programa. Nessas saídas, ia com o meu amigo Cláudio Corimbaba, que me inspirou o romance Memórias de um gigolô. Depois, íamos ao Clube de Paris, que também regurgitava de garotas. Então, do Paris, a primeira parada era no Dom Casmurro, um lugar muito elétrico. Tinha ainda programas opcionais: ir ao Arpège, que era uma boate muito chique na Avenida São Luiz. Ficávamos até as duas da manhã e, depois, sempre dava uma passada no Nick Bar. Uma passada, uma passadinha, para ver o que estava acontecendo ali. A seguir, pegávamos as boates de fim de noite. Havia a chamada Chez Moi, na Rua Augusta; outra se chamava Chez Armand, na Rua Rego Freitas. Havia o Pierrot, um bar-boate; e o Refúgio, na Avenida 9 de Julho, freqüentado por mulheres casadas. Era o lugar mais escuro do mundo, o único lugar onde a Light não ganhava dinheiro. Já no sábado, à tarde, era aquela puta dormida. Mas, já escurecendo, a gente se encontrava nos bares da São Luiz, que eram o Mirim, o Plata e o Paribar. Também se ia muito ao Oásis, quando tinha dinheiro, ou ao African Boate, uma casa de luxo. Sempre passava no Clube dos Artistas para sentir a noite. Se tivesse uma garota especial, a levava ao Je Reviens, lá no final da Avenida Paulista.

-- E no domingo? Você não ia remar ou nadar no Tietê? -- perguntei.

-- Não, não ia. Não tinha forças para isso.

Marcos Rey foi um retratista sincero de São Paulo, a cidade que sempre amou. Por sinal, prometera um livro sobre suas memórias, precisamente sobre tipos curiosos que conhecera na noite. Era uma sugestão, me disse, do escritor João Antônio, que lhe escrevera dizendo que não se esquecesse dos chatos, porque eles davam boas histórias. Um deles, por exemplo, era histórico na vida de Marcos Rey.

-- Quando estávamos para sair da boate, às cinco da matina, ele chegava bem vestido, cheirando a sabonete -- recordava. -- Parecia que tinha saído do banho naquele momento. E ia abraçando todo mundo nas mesas e dizendo: Old friend, old night... (Velho amigo, velha noite...). Era cada abraço dolorido, afogava a gente. Durante uns cinco anos encontramos esse cara e nunca descobrimos quem ele era. Até o dia em que ele desapareceu. Aí, começamos a desconfiar que os velhos tempos, os velhos amigos, as velhas noites estavam acabando.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix