Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - Roniwalter Jatobá

(C) All rights reserved by Chihilo Mathui
O Pano Vermelho

"panos herdados de murchos caminhos
rostos sombrios de migrações cinzentas."

Arnaldo Xavier

1952 -- Na minha pele refletia a mocidade, quem via dizia: tão novo, burrego ainda. Tinha: um sonho de pai tão antigo como ele, que passou por toda aquela vida de sustento, vendo os filhos que nasciam no todo sempre em todo ano. E: mãe enrodilhada na cama no resguardo de filho novo, na mesma pequenez quanto as palavras dela, relutando, pra que ir tão longe? Eu: ali, sempre vendo aquela velhice que vinha no correr dos anos trazida quem sabe por quem, que ia entrando nas pessoas. Como ser tão parado no viver? Esperando pai morrer, mãe morrer, aqui, tudo miúdo, até a vida.

1953 -- O caminhão não esperou a claridade despontar. Dormindo, uns. Maldizendo, chorando, outros. Calado, eu. A lona marrom cobrindo as pessoas da chuva, do sol e guardando poeira. A Bahia, grande. Minas: serras, lama, ladeiras, o caminhão lotado de gente chapiando terra, voando areia, pedra, por estes caminhos pobres. São Paulo: como nos velhos sonhos de pai, vermelho tal São Miguel, onde aportei em janeiro de tarde com um sol miúdo. A grande fábrica de química me acenando pelos dias seguintes, chamando. Fichado fui. Perto do ano findar voltei à Bahia em dias de folga. Trouxe Adelina, ela preencheu o vazio de uma mulher.

1954 -- Comprei um terreno no Jardim Helena. No passar do ano fiz em oito domingos seguidos um quarto e uma cozinha, fiz moradia desse começo de casa. Nas noites como uma roça, sapos cantavam longe na vargem do Tietê, Adelina, sempre dizendo, sinto saudade. Nasceu Reinaldo. Getúlio morreu.

1955 -- Não nasceu João Batista que já tinha nome e quase leva pra cova a fraca Adelina que muito sofreu nesse passar de ano. Por mão própria, demorosa, a notícia assim veio: "pai morreu afogado, tentando salvar um bezerro do coronel Gercílio Batista nas profundezas do rio Bananeiras".

1956 -- Nasceu um menino: Getúlio Vargas.

1957 -- Nasceu uma menina: Maria Aparecida.

1958 -- Puxei mais um quarto. Adelina ajudando, Reinaldo se lambuzando de barro, a casa tomando outra forma. Outras casas começavam a levantar em volta. Adelina no entrar de setembro foi operada. Avexei: cuidei da casa, saía cedo pra fábrica, voltava no rastro, pedi ajuda, os poucos vizinhos favoreceram.

1959 -- Apertou saudade, viajei pra Bahia, só. Adelina ficou. Vi: Bananeiras tinha a mesma cara, tudo igual, tudo mais velho, só a água que corria sempre naquele rio que me banhei vinha mudada nas corredeiras.

1960 -- No começo desse ano: nasceu Roberto. No fim: Adelina caiu perto do poço d'água, escorregou carregando um balde cheio, perdeu um menino que desabrochava nela. Ela definhou, a pele se colou aos ossos; no chegar, toda tarde, via Adelina viva pelas graças de Deus.

1961 -- Comprei uma bicicleta.

1962 -- Reinaldo começou a trabalhar no Brás, engraxando sapatos num ponto da estação de trem, levantava bem cedo, todo dia escuro ainda. Quase no fim do ano compramos uma televisão, fazendo sacrifício.

1963 -- Adelina acorda numa noite, soltando gritos pela escuridão, sonhando num presságio triste, como se mil homens lhe estivessem estrangulando, amedronta a casa inteira e ela pare, morto e minguado, um ente, nem homem nem mulher, de três meses.

1964 -- Chegou uma carta, dizendo: "mãe tinha morrido e, antes, viva ainda, mandou fazer um vestido com o pano vermelho que lhe mandei de presente e pediu, como se adivinhasse a morte que logo apontaria, que lhe vestisse como mortalha". Assim foi feito.

1965 -Getúlio morreu na primeira rua de asfalto, aqui, debaixo dum carro ligeiro, que se sumiu pra sempre nas ruas de poeira.

1966 -- Adelina entristeceu nesse correr de ano todo, andava pelas tardes de domingo, comparando: "miséria aqui, miséria lá, aqui é cativeiro".

1967 -- A mãe de Adelina morreu. Ela botou luto fechado por seis meses e dias, batendo com as palavras sempre dizia: "que sua sina era viver aqui nesse cativeiro".

1968 -- Vieram uns soldados. Bateram na porta, abri. Iam me levar. Adelina me segurou, um soldado bateu nela com o fuzil. Ela me soltou. Voltei, solto, era engano, mas por meses não olhei frente a frente nos olhos baixos de Adelina.

1969 -- Adelina morreu. Sina mais triste pra quem fica, sina de todo vivente. Ano inteiro, em juízo: solidão pesando, filhos crescendo, Jardim Helena inchando de gente.

1970 -- Maria Aparecida chorava sempre no negar das coisas que nunca, ninguém aqui, podia nem ter. Pedia que ela esperasse, se botasse mais moça, até poder trabalhar. Num dia não amanheceu em casa. Sumiu na sua sina.

1971 -- Reinaldo encegueirou, quis casar. Trouxe a mulher pra morar aqui. Construí um quarto pra eles no fundo da casa.

1972 -- Maria Aparecida tinha sumido de verdade. Nunca ninguém mais ouviu falar dela. Cada dia mais apertava a falta de Adelina. Um ano triste.

1973 -- Me ofertaram uma medalha pelos vinte anos de trabalho. Reinaldo brincou: "o que vale isso, pai?" Respondi: "num brinca com as coisas do governo!" Guardei a medalha num malote, outro dia, vi: enferrujada.

1974 -- A profissional se esfiapava no passar do tempo, suada, molhada, seca, no bolso traseiro da calça.

1975 -- Fiz acordo na fábrica. Saí de lá. Abri esse bar que aqui se vê. Pequeno, freguesia pouca por enquanto, mas vai melhorar. Sei.

1976 -- Fico nesse bar de noite a dia, de dia a noite, como se procurasse um arremediamento do ficar só. Rita, mulher de Reinaldo, quem imaginava aquele corpo fraco, se tornou mãe, esperança deste corpo, sonho novamente começado em fim de vida. Vem pena de Reinaldo: esperançoso ele. Dou fé.

Red Material

Material bequeathed by withering
highways dusky faces
of greying migrations
(Arnaldo Xavier)

1952 -- Youthfulness shone from my skin, anyone seeing if would say: so young, and bit daft still. What I had: one of my father's dreams as old as himself who had spent all that life of grit as he saw the children who were born in each and every year. And too: mother curled up on the bed shielding the child which was as tiny as her words resisting me, why are you going so far away? I: as I saw aiways there the ageing which came down the passing years brought unbeknownst by whom but which kept entering into people. How could I remain so stranded in life. Waiting for father to die, for number to die, here everything's so paltry -- even life itself.

1953 -- The lorry didn't wait for the light to come. Some sleep. Others, cursing or weeping. Myself, in silence. Brown canvas keeping rain and sun off people and catching the dust. Bahia, so big. Minas, mountains, mud and sleep hills, the lorry laden with people chumming the earth up with sand and stones flying down those poor roads. São Paulo: like in father's old dreams, red like São Miguel where on January afternoon I docked by a now small sun. The big chemical works was beckoning me over the following days, calling me in. I was taken on. Towards the year's end, I went back to Bahia for the holidays. I brought Adelina back with me and she filled the gap for a woman.
 

1954 -- I bought a plot in Jardim Helena. In the course of the year I built one room and a kitchen on eight Sundays at a stretch and I made this start of a home into somewhere to live. Like on a rural patch, toads sang by night far away on the banks of the Tiete. Adelina's aiways saying I feel homesick. Reinaldo was born.
 

1955 -- João Batista wasn't born though he had already a name and all but took that weak Adelina to the grave and how she suffered over the year. The following news arrived by hand and belatedly: "Father drowned as he was trying to save one of Colonel Gercílio Batista's calves in the depths of Bananeiras river."
 

1956 -- A boy's born: Getúlio Vargas.
 

1957 -- A girl's born: Maria Aparecida.
 

1958 -- I knocked up another room. With Adelina giving a hand and Reinaldo getting caked in mud and the house changing shape. Other houses started to go up around. At the beginning of September Adelina had an operation, was overwrought: I kept house and would rise early for the works and come back by the path, I asked for help and the few neighbors came to my aid.
 

1959 -- I was stricken by homesickness and travelled to Bahia on my own. Adelina stayed on behind. I could see: Bananeiras looked just as before, everything the same, everything older, only the water flowing in the river where I bathed had changed through the rapids.
 

1960 -- At the beginning of the year: Roberto was born. At the end: Adelina fell down at the well, she slipped carrying a pailful and lost a child which miscarried. She wasted, her skin gripped her bones; as every evening I got home I found Adelina still alive thanks be to God.
 

1961 --I bought a bike.
 

1962 -- Reinaldo started working at Brás shining shoes on a pitch at the railway station, he'd get up really early every day when still dark. When the year was nearly over we bought a television at great sacrifice.
 

1963 -- Adelina wakes up one night screaming into the dark, having dreamt a nightmare, seemingly a thousand men were strangling her, it terrifies the entire household and she gave birth to an object, dead and slight, neither man nor woman, just three months gone.
 

1964 -- A letter arrived saying: "mother has died and before, when still alive, she got me to make her a dress in red material which I sent her as a present and asked me, with a foreboding of the death that was about to mark her out, that I make it like a shroud for her. And so I did."
 

1965 -- Getulio was killed in the first asphalt street here, under a light vehicle which vanished into the streets of dust for ever.
 

1966 -- Adelina grew so sad trough the year, she would drift around on Sunday afternoons, comparing "so wretched here, so wretched there, this is pure bondage."
 

1967 -- Adelina's mother dies. She went into six month's and six days morning, every time she spoke mumbling that it's my fate to be living here in this prison camp."
 

1968 -- Some soldiers came. They banged at the door and I opened. They were going to take me away. Adelina clung on to me, one soldier hit her with his rifle. She let me go. I got back, it was a mix-up, but for months I couldn't look Adelina's downcast eyes head on.
 

1969 -- Adelina has died. A worse fate for the one who's left, the fate of everyone alive. The whole year long, in purgatory, with loneliness weighing me down, the children growing up and Jardim Helena filling up with folk.
 

1970 -- Maria Aparecida would sob when refused things that no one could ever ever have here. I asked her to wait till she was a bigger girl and could go out to work. One day at home it didn't down. She vanished to her fate.
 

1971 -- Reinaldo fell madly in love and wanted to get married. He brought the wife to live here and I built a room for them on the back of the house.
 

1972 -- Maria Aparecida has vanished for good. Nobody has ever again mentioned her. Everyday Adelina's absence was ailing me more. A sad year.
 

1973 -- I was awarded a medal for twenty years service. Ronaldo scoffed; "what's the good of that, dad?" I answered: "Just don't scoff at things from higher management!" I put the medal away in a trunk and the other day I found it: gone rusty.
 

1974 -- My trade card was falling to bits with the passage of time, sweaty, soaked and dried in my back trouser pocket.
 

1975 -- My resignation was accepted at the works. I left the place. I opened the bar you can see here. 
A small one, not too many customers so far but it'll pick up. I'm sure of that.
 

1976 -- I keep in the bar from night till morning and from morning till night as if seeking treatment for being all alone. Rita, Reinaldo's wife, and whoever would have thought it of that frail body, has become a mother, the hope of this body, a dream newly restarted at a life's end. I'm sorry for Reinaldo: so full of hopes he is. Honest to God.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix