Resenha - Luther Lebtag
The Speckled People
de Hugo Hamilton
Gênero: Memórias
Ano: 2003
298 páginas
de Hugo Hamilton
Gênero: Memórias
Ano: 2003
298 páginas
Meus amigos, aqui vou me aventurando novamente pelos meios obscuros e tortuosos da escrita. Meu querido amigo Edu me convenceu. Agora nem tão querido, depois dos miolos perdidos tentando dar sentido a este monte de palavras juntas. Além de tudo ele me convenceu a fazer crítica de livro. Quem diria, eu crítico de livro. Sempre achei que crítico era a pior raça do mundo e deveriam ser todos torturados até a morte (ai meu deus, que exagero). Ô pessoal que tem mania de dar opinião sobre tudo. E o pior é que ainda são pago por isso.
O caminho é tortuoso porém a experiência adquirida é valiosa e engrandece. Durante a busca por informação aprendi que o crítico não tem somente a função de julgar algo como se fosse um jurado de auditório, um cara que faz nada mais do que dar uma nota sobre algo. Ele tenta mostrar as influências que levaram o autor chegar à obra, suas bases e suas prováveis expectativas. É isso que tentarei fazer aqui, numa humildade quase cristã, afinal de contas ainda sou virgem neste negócio de escrever.
The Speckled People, de Hugo Hamilton, foi um livro recomendado como presente para uma amiga alemã vivendo na Irlanda já há sete anos. Aproveitei a ocasião para ler antes de presenteá-la e acabei me apaixonando. Quando me disseram que o livro se tratava de um Irlandês contando sobre sua infância nos anos 60 e 70 em Dublin, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o estilo de Angela’s Ashes com aquela nostalgia sentimental e tristeza melancólica dos tempos difíceis na Irlanda de antigamente. Não pensem que não gosto de Frank MacCourt, o livro é muito interessante, porém triste demais. The Speckled People foi vitorioso como exceção entre tantos outros autores mostrando de forma simples a realidade complexa e triste que os poemas e as músicas irlandesas há muito já retrataram.
O livro é autobiográfico. Hugo Hamilton cresceu em Dublin durante os anos 60 e 70 com seu irmão e irmãs. Sua mãe veio de uma pequena cidade na Alemanha fugindo de terríveis momentos passados nas mãos dos nazistas. Em busca de um novo começo, deixa a Alemanha numa peregrinação pela Irlanda, onde fica. Lá se casa com Jack Hamilton, irlandês fanático de uma região marcada pelo nacionalismo, pobreza e imigração. Seu avô foi um poeta da língua irlandesa e seu pai, renegado por Jack, serviu e morreu na marinha Britânica.
Como engenheiro em Dublin, Jack Hamilton dedicou sua vida na luta contra influência inglesa e acima de tudo na reabilitação da língua irlandesa. Uma das campanhas que estava envolvido era a de tradução dos nomes das ruas para o irlandês. Também enviou seus filhos para escolas onde ensinassem o irlandês. Dizia que seus filhos eram armas na luta contra a dominação inglesa da língua. Se falassem inglês em casa, eram castigados. A intolerância e violêcia do pai em defesa da cultura pátria era extremamente contraditória nos anos 60, num momento em que a cultura anglo-americana começava a invadir Dublin e contaminar todos os nichos sociais. Mas nada disso passava pela porta de casa. Qualquer coisa que não fosse totalmente irlandesa era imediatamente jogada ao fogo pelo pai tirano. Em casa eles podiam somente falar irlandês e alemão – a mãe não falava irlandês. Na escola eles eram incomodados com piadas e brincadeira por outras crianças e chamados de “Nazi”.
Nesta casa de Dublin, o jovem Hugo crescia no meio de uma guerra de intolerância e violência entre o pai e mãe, e a luta de credos e língua entre o pai e seus filhos. Seus pais criavam o tempo todo para seus filhos um paralelo entre a colonização britânica e como os nazistas lidavam com os judeus. Os dois insistem na ligação entre lingua e nação e é nesta conexão em que a parte mais profunda do livro se desenvolve. Pai e mãe não concordam na maneira de viver e lidar com suas crenças. Enquanto o pai se transforma num tirano que não aceita exceções quanto à educação dos filhos, exemplos para os descrentes irlandêses, a mãe prefere manter uma postura de negação e adaptação sem revolta à realidade como maneira de sobrevivência: "My mother just closes the doors... telling everybody that it's no good to win and it's better to pretend that there's no such thing as pain and nobody can make you smile and you should keep saying the silent negative all the time." *
Vocês que estão lendo até agora devem achar que este livro é mais um exemplo triste de uma realidade irlandesa como tantos já escreveram. Mas é aí que está a grande vitória de Hugo. Gradualmente, enquanto a criança Hugo narra a história, o que ele ouve e vê acontecendo ao seu redor, toda esta batalha de crenças, história, segredos e conflitos, tudo começa a formar uma realidade infantil em sua cabeça inocente. Isso, conjugado com um estilo simples e harmonioso de escrever, tornou este livro um dos livros mais bonitos que já li nos últimos anos. Até dei boas gargalhadas com as conclusões de Hugo, e quando a tia alemã vinha visitá-los, com encontros regados a abraços demorados, choros a “ja, ja, ja” e “nei, nei, nei”.
Estive procurando uma tradução para The Speckled People em português. Parece que este livro ainda não foi traduzido. Speckled significa manchado, pintado, marcado com pintas, o que faz sentido, uma vez que sardas é uma característica física dos irlandeses. Mas não é isso que Hugo está querendo dizer aqui. A melhor tradução que achei foi em alemão, “Gescheckte Menschen”, ou em português “Pessoas Presenteadas”.
É mais ou menos a esta conclusão que o menino Hugo chega no final. Que eles são especiais. “We don’t have only one language and history. We sleep in German and dream in Irish. We laugh in Irish and we cry in German. We are silent in German and we speak in English. We are the speckled people.” ** Eu concordo plenamente.
* Minha mãe apenas fecha as portas... dizendo a todo o mundo que não é bom ganhar e que é melhor fingir não existir essa coisa de dor e ninguém pode lhe fazer sorrir e você deveria continuar com seu negativo silêcio o tempo todo. (tradução livre do editor).
** Nós não temos apenas uma língua e história. Dormimos em alemão e sonhamos em irlandês. Rimos em irlandês e choramos em alemão. Nos calamos em alemão e falamos em inglês. Somos pessoas presenteadas. (tradução livre do editor).
O caminho é tortuoso porém a experiência adquirida é valiosa e engrandece. Durante a busca por informação aprendi que o crítico não tem somente a função de julgar algo como se fosse um jurado de auditório, um cara que faz nada mais do que dar uma nota sobre algo. Ele tenta mostrar as influências que levaram o autor chegar à obra, suas bases e suas prováveis expectativas. É isso que tentarei fazer aqui, numa humildade quase cristã, afinal de contas ainda sou virgem neste negócio de escrever.
The Speckled People, de Hugo Hamilton, foi um livro recomendado como presente para uma amiga alemã vivendo na Irlanda já há sete anos. Aproveitei a ocasião para ler antes de presenteá-la e acabei me apaixonando. Quando me disseram que o livro se tratava de um Irlandês contando sobre sua infância nos anos 60 e 70 em Dublin, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o estilo de Angela’s Ashes com aquela nostalgia sentimental e tristeza melancólica dos tempos difíceis na Irlanda de antigamente. Não pensem que não gosto de Frank MacCourt, o livro é muito interessante, porém triste demais. The Speckled People foi vitorioso como exceção entre tantos outros autores mostrando de forma simples a realidade complexa e triste que os poemas e as músicas irlandesas há muito já retrataram.
O livro é autobiográfico. Hugo Hamilton cresceu em Dublin durante os anos 60 e 70 com seu irmão e irmãs. Sua mãe veio de uma pequena cidade na Alemanha fugindo de terríveis momentos passados nas mãos dos nazistas. Em busca de um novo começo, deixa a Alemanha numa peregrinação pela Irlanda, onde fica. Lá se casa com Jack Hamilton, irlandês fanático de uma região marcada pelo nacionalismo, pobreza e imigração. Seu avô foi um poeta da língua irlandesa e seu pai, renegado por Jack, serviu e morreu na marinha Britânica.
Como engenheiro em Dublin, Jack Hamilton dedicou sua vida na luta contra influência inglesa e acima de tudo na reabilitação da língua irlandesa. Uma das campanhas que estava envolvido era a de tradução dos nomes das ruas para o irlandês. Também enviou seus filhos para escolas onde ensinassem o irlandês. Dizia que seus filhos eram armas na luta contra a dominação inglesa da língua. Se falassem inglês em casa, eram castigados. A intolerância e violêcia do pai em defesa da cultura pátria era extremamente contraditória nos anos 60, num momento em que a cultura anglo-americana começava a invadir Dublin e contaminar todos os nichos sociais. Mas nada disso passava pela porta de casa. Qualquer coisa que não fosse totalmente irlandesa era imediatamente jogada ao fogo pelo pai tirano. Em casa eles podiam somente falar irlandês e alemão – a mãe não falava irlandês. Na escola eles eram incomodados com piadas e brincadeira por outras crianças e chamados de “Nazi”.
Nesta casa de Dublin, o jovem Hugo crescia no meio de uma guerra de intolerância e violência entre o pai e mãe, e a luta de credos e língua entre o pai e seus filhos. Seus pais criavam o tempo todo para seus filhos um paralelo entre a colonização britânica e como os nazistas lidavam com os judeus. Os dois insistem na ligação entre lingua e nação e é nesta conexão em que a parte mais profunda do livro se desenvolve. Pai e mãe não concordam na maneira de viver e lidar com suas crenças. Enquanto o pai se transforma num tirano que não aceita exceções quanto à educação dos filhos, exemplos para os descrentes irlandêses, a mãe prefere manter uma postura de negação e adaptação sem revolta à realidade como maneira de sobrevivência: "My mother just closes the doors... telling everybody that it's no good to win and it's better to pretend that there's no such thing as pain and nobody can make you smile and you should keep saying the silent negative all the time." *
Vocês que estão lendo até agora devem achar que este livro é mais um exemplo triste de uma realidade irlandesa como tantos já escreveram. Mas é aí que está a grande vitória de Hugo. Gradualmente, enquanto a criança Hugo narra a história, o que ele ouve e vê acontecendo ao seu redor, toda esta batalha de crenças, história, segredos e conflitos, tudo começa a formar uma realidade infantil em sua cabeça inocente. Isso, conjugado com um estilo simples e harmonioso de escrever, tornou este livro um dos livros mais bonitos que já li nos últimos anos. Até dei boas gargalhadas com as conclusões de Hugo, e quando a tia alemã vinha visitá-los, com encontros regados a abraços demorados, choros a “ja, ja, ja” e “nei, nei, nei”.
Estive procurando uma tradução para The Speckled People em português. Parece que este livro ainda não foi traduzido. Speckled significa manchado, pintado, marcado com pintas, o que faz sentido, uma vez que sardas é uma característica física dos irlandeses. Mas não é isso que Hugo está querendo dizer aqui. A melhor tradução que achei foi em alemão, “Gescheckte Menschen”, ou em português “Pessoas Presenteadas”.
É mais ou menos a esta conclusão que o menino Hugo chega no final. Que eles são especiais. “We don’t have only one language and history. We sleep in German and dream in Irish. We laugh in Irish and we cry in German. We are silent in German and we speak in English. We are the speckled people.” ** Eu concordo plenamente.
* Minha mãe apenas fecha as portas... dizendo a todo o mundo que não é bom ganhar e que é melhor fingir não existir essa coisa de dor e ninguém pode lhe fazer sorrir e você deveria continuar com seu negativo silêcio o tempo todo. (tradução livre do editor).
** Nós não temos apenas uma língua e história. Dormimos em alemão e sonhamos em irlandês. Rimos em irlandês e choramos em alemão. Nos calamos em alemão e falamos em inglês. Somos pessoas presenteadas. (tradução livre do editor).
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