Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 3 - Março 2009Conto - Roniwalter Jatobá
Depois da tempestade
Para Gey Espinheira
LEILA
O avião girou para o lado direito como se fosse riscar a asa direita sobre o azul do mar, mas depois tomou o rumo certo da cabeceira da pista, preparando-se para descer no aeroporto de Salvador. Era uma manhã quente e, do alto, o homem avista com nitidez terrenos desabitados e dunas de areias brancas próximos à área de pouso.
Sentado numa poltrona próxima à cabine, ele vê ainda avisos iluminados para não fumar e apertar os cintos, escuta pneus em atrito no asfalto, a força dos reversos das turbinas -- termina assim o tranqüilo vôo São Paulo-Salvador.
Ele traz apenas uma bolsa de mão e, dentro, uma troca completa de roupa branca, afinal a estada ali era de apenas uma noite, a passagem do ano de 1971.
O homem pergunta a si mesmo, o que vim fazer num lugar tão longe para, numa viagem corrida, voltar no dia seguinte?
Ele mesmo responde bem devagar, enquanto percorre os corredores envidraçados, o amor.
Conheceu Leila no final de 1969. A primeira vez que a viu ela estava sentada numa velha canoa de pescador na praia da Boa Viagem, numa tarde de pôr-do-sol luminoso que caía pelos lados da Ilha de Itaparica. Os lábios grossos realçavam a pele bronzeada de sol. Vestia um maiô azul com pintinhas vermelhas, que ampliava a robustez dos seios.
Na época, ele servia o exército no Forte de São Joaquim, de frente para a antiga Feira de Água de Meninos, bem ali perto, e ia àquela praia nos domingos de folga. Trajava um calção de banho meio desbotado. Aproximou-se dela com suave timidez.
Leila morava numa travessa da rua Roma, perto da praia. A partir daí, quando folgava no quartel, ela era uma companhia agradável e festeira.
Por precisão, ele quis fazer a vida em São Paulo. A despedida dos dois foi numa noite já bem alta, na frente da casa de Leila, um mês depois das festas de fim de ano. Na rua morta de gente e iluminada por uma lua crescente de início de janeiro, prometeram se encontrar dali a um ano, na virada de outro janeiro, naquele mesmo lugar.
Ele caminha agora pelo aeroporto de Salvador e pensa que quando se é jovem e apaixonado, fazemos as mais absurdas promessas e, mais absurdo ainda, quase sempre as cumprimos.
Ele vai de ônibus para o centro, até o Elevador Lacerda. Na Cidade Baixa, segue noutra condução rumo ao bairro da Ribeira. Quando chega em frente à casa da rua Roma, às onze horas do dia 31 de dezembro de 1970, Leila estava à sua espera.
Ele voltou à São Paulo no começo da tarde do dia seguinte. Nunca mais viu Leila. A distância, dizem, é muitas vezes inimiga do amor. Anos depois, um amigo lhe contou que viu Leila uma vez no barco que faz a travessia para a Ilha. Estava bem mais gorda e acompanhada de três crianças.
Era uma escadinha, disse brincando, e as crianças pareciam pertencer à sua imensa prole.
Disse ainda que Leila o cumprimentou de longe com um breve aceno de cabeça e, depois, ela e a criançada se perderam no meio da multidão.
JANICE
Ele era um faz-tudo. Aprendeu no mar a fazer o badejo ou a corvina assados na brasa. Viera de uma cidadezinha do litoral do Ceará, onde ainda vivia a família. O pai era pescador, a mãe cuidava da casa e de uma turma de filhos. Chegou de ônibus e desceu no Brás. Seu primeiro emprego foi na padaria do bairro, serviço que nunca tinha feito antes em sua terra. Não ganhava muito, mas gostava do lugar quentinho nas noites frias na cidade.
Anos depois, seus pratos simples, preparados com apuro num boteco do Itaim Bibi, eram disputados entre meio dia e duas da tarde por esfomeados peões da construção civil e até mesmo metidos executivos engravatados. Se tivesse um pouco de sorte, dividiria a sociedade com o dono do boteco e, em pouco tempo, talvez pudesse figurar entre os donos de restaurante de origem nordestina que começaram como lavadores de pratos e se deram bem na metrópole.
Ele conheceu Janice numa confeitaria. Seis meses depois, entre risos e beijos, casaram se na igrejinha localizada ao lado da avenida Santo Amaro.
A mãe da moça foi a grande ausência na cerimônia.
A gente já é pobre e você vai se casar com um rapaz mais pobre ainda?, disse à filha na época apaixonada.
Veio a resposta inevitável, ele é trabalhador.
Sem dinheiro ninguém vale nada hoje, afirmou a mãe com suave crueldade, casar com gente pobre hoje não é bom negócio.
Não era. Janice o deixou numa véspera de Ano-Novo. Arrumou suas coisas e sumiu no mundo.
Ele voltou ao trabalho no Itaim Bibi cada vez mais dedicado à profissão. Tomou gosto pela gastronomia. Sabia que tinha outro futuro. Leu até Michel Onfray. Nunca comentou das dificuldades de viver sob o mesmo teto com uma sogra que vivia cobrando para que ele fosse rico.
Num fim de tarde, ele encontrou um amigo na rua Joaquim Floriano. Na esquina com a Bandeira Paulista, o amigo perguntou por Janice. Ele não respondeu e, sem olhar para trás, atravessou cauteloso a via tomada de trânsito. Deu para entender que Janice era, realmente, coisa do passado.
LUIZA
De repente, os dois se deixaram de ver.
Ela, atarefada pelo trabalho, chegava sempre tarde da noite no apartamento alugado. Ouvia música na sala em volume bem baixo, ora buscava com raiva os destroços do silêncio.
Ele, também cheio de compromissos, esquecia ou queria esquecer de tudo e tardava na hora de chegar em casa.
Também nos fins de semana, os dois não mais se viam.
Ela ficava no apartamento e, quando cansava de ler ou ficar em frente à televisão, cuidava das plantas medicinais que cultivava num vaso de madeira na sacada do apartamento.
Ele pegava o carro bem cedo e, nas manhãs de sábado, dirigia pela rodovia Ayrton Senna, depois Dutra, até o centro de Jacareí. Sentava-se à mesa do restaurante Beira-Rio, ao lado do Paraíba do Sul, e ficava observando a paisagem já urbana, mas tranqüilizadora pela presença do curso d’água. Embora já mostrando sinais de poluição -- teria peixes? --, o rio possuía uma vegetação rasteira de moitas de capim e flores, onde às vezes surgiam filhotes de capivaras brincalhonas, mas arredias com a presença humana. Corriam pela beirada do rio. Depois, apareciam mais à frente, ainda na margem, para tomar sol.
Ele voltava já de madrugada e dormia até o começo da tarde de domingo. Ela havia tomado o rumo da casa materna e, na segunda-feira, ia direto para o trabalho.
Toda manhã, fazendo sol ou chuva, ele acompanhava pelas marginais a trajetória do rio Tietê e, depois, do Pinheiros. Embora com águas tão sujas quanto as do Tietê, o Pinheiros sempre tinha sinais de vida. Ele sabia que à sombra de uma torre de energia elétrica na Usina da Traição viviam centenas de preás, espécies de mamíferos roedores da família dos cavídeos, conforme aprendeu na enciclopédia. Antes, habitavam em tocas do outro lado do rio. Migraram todos, buscando o sossego da Usina. No outro lado, os meninos de uma antiga favela os caçavam para comer.
Nesse tempo, ele viu uma capivara, também da família dos preás, e considerada o maior dos roedores atuais, enfrentando as águas poluídas do Tietê. Depois, o animal descansou nas proximidades da ponte do Piqueri. Fugidia, mergulhou no rio em direção ao Pinheiros. O jornal divulgou na manhã seguinte que um casal de capivaras e quatro filhotes viviam às margens do rio na altura da ponte Cidade Jardim, mas seu habitat natural era no Oeste paulista, onde costumavam multiplicar-se nas barrancas dos rios.
Ao ler a notícia, ele se perguntou o que há muito vinha à mente, o que buscam em São Paulo?, fogem em busca de melhores dias?
Sozinho, sentado à mesa do café da ampla cozinha do apartamento, olhar fixo na página impressa do diário, ele desconhece o nível de inteligência das capivaras, mas o que vem em seu pensamento são algumas mulheres que se foram depois da tempestade.
Agora, pensa em Luiza, já separados há anos. Ele tem apenas uma vaga idéia de que ela mora na Vila Madalena, junto com a mãe, e aos sábados freqüenta a feira da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde compra bugigangas e coleciona réplicas de cavalos-marinhos.
O avião girou para o lado direito como se fosse riscar a asa direita sobre o azul do mar, mas depois tomou o rumo certo da cabeceira da pista, preparando-se para descer no aeroporto de Salvador. Era uma manhã quente e, do alto, o homem avista com nitidez terrenos desabitados e dunas de areias brancas próximos à área de pouso.
Sentado numa poltrona próxima à cabine, ele vê ainda avisos iluminados para não fumar e apertar os cintos, escuta pneus em atrito no asfalto, a força dos reversos das turbinas -- termina assim o tranqüilo vôo São Paulo-Salvador.
Ele traz apenas uma bolsa de mão e, dentro, uma troca completa de roupa branca, afinal a estada ali era de apenas uma noite, a passagem do ano de 1971.
O homem pergunta a si mesmo, o que vim fazer num lugar tão longe para, numa viagem corrida, voltar no dia seguinte?
Ele mesmo responde bem devagar, enquanto percorre os corredores envidraçados, o amor.
Conheceu Leila no final de 1969. A primeira vez que a viu ela estava sentada numa velha canoa de pescador na praia da Boa Viagem, numa tarde de pôr-do-sol luminoso que caía pelos lados da Ilha de Itaparica. Os lábios grossos realçavam a pele bronzeada de sol. Vestia um maiô azul com pintinhas vermelhas, que ampliava a robustez dos seios.
Na época, ele servia o exército no Forte de São Joaquim, de frente para a antiga Feira de Água de Meninos, bem ali perto, e ia àquela praia nos domingos de folga. Trajava um calção de banho meio desbotado. Aproximou-se dela com suave timidez.
Leila morava numa travessa da rua Roma, perto da praia. A partir daí, quando folgava no quartel, ela era uma companhia agradável e festeira.
Por precisão, ele quis fazer a vida em São Paulo. A despedida dos dois foi numa noite já bem alta, na frente da casa de Leila, um mês depois das festas de fim de ano. Na rua morta de gente e iluminada por uma lua crescente de início de janeiro, prometeram se encontrar dali a um ano, na virada de outro janeiro, naquele mesmo lugar.
Ele caminha agora pelo aeroporto de Salvador e pensa que quando se é jovem e apaixonado, fazemos as mais absurdas promessas e, mais absurdo ainda, quase sempre as cumprimos.
Ele vai de ônibus para o centro, até o Elevador Lacerda. Na Cidade Baixa, segue noutra condução rumo ao bairro da Ribeira. Quando chega em frente à casa da rua Roma, às onze horas do dia 31 de dezembro de 1970, Leila estava à sua espera.
Ele voltou à São Paulo no começo da tarde do dia seguinte. Nunca mais viu Leila. A distância, dizem, é muitas vezes inimiga do amor. Anos depois, um amigo lhe contou que viu Leila uma vez no barco que faz a travessia para a Ilha. Estava bem mais gorda e acompanhada de três crianças.
Era uma escadinha, disse brincando, e as crianças pareciam pertencer à sua imensa prole.
Disse ainda que Leila o cumprimentou de longe com um breve aceno de cabeça e, depois, ela e a criançada se perderam no meio da multidão.
JANICE
Ele era um faz-tudo. Aprendeu no mar a fazer o badejo ou a corvina assados na brasa. Viera de uma cidadezinha do litoral do Ceará, onde ainda vivia a família. O pai era pescador, a mãe cuidava da casa e de uma turma de filhos. Chegou de ônibus e desceu no Brás. Seu primeiro emprego foi na padaria do bairro, serviço que nunca tinha feito antes em sua terra. Não ganhava muito, mas gostava do lugar quentinho nas noites frias na cidade.
Anos depois, seus pratos simples, preparados com apuro num boteco do Itaim Bibi, eram disputados entre meio dia e duas da tarde por esfomeados peões da construção civil e até mesmo metidos executivos engravatados. Se tivesse um pouco de sorte, dividiria a sociedade com o dono do boteco e, em pouco tempo, talvez pudesse figurar entre os donos de restaurante de origem nordestina que começaram como lavadores de pratos e se deram bem na metrópole.
Ele conheceu Janice numa confeitaria. Seis meses depois, entre risos e beijos, casaram se na igrejinha localizada ao lado da avenida Santo Amaro.
A mãe da moça foi a grande ausência na cerimônia.
A gente já é pobre e você vai se casar com um rapaz mais pobre ainda?, disse à filha na época apaixonada.
Veio a resposta inevitável, ele é trabalhador.
Sem dinheiro ninguém vale nada hoje, afirmou a mãe com suave crueldade, casar com gente pobre hoje não é bom negócio.
Não era. Janice o deixou numa véspera de Ano-Novo. Arrumou suas coisas e sumiu no mundo.
Ele voltou ao trabalho no Itaim Bibi cada vez mais dedicado à profissão. Tomou gosto pela gastronomia. Sabia que tinha outro futuro. Leu até Michel Onfray. Nunca comentou das dificuldades de viver sob o mesmo teto com uma sogra que vivia cobrando para que ele fosse rico.
Num fim de tarde, ele encontrou um amigo na rua Joaquim Floriano. Na esquina com a Bandeira Paulista, o amigo perguntou por Janice. Ele não respondeu e, sem olhar para trás, atravessou cauteloso a via tomada de trânsito. Deu para entender que Janice era, realmente, coisa do passado.
LUIZA
De repente, os dois se deixaram de ver.
Ela, atarefada pelo trabalho, chegava sempre tarde da noite no apartamento alugado. Ouvia música na sala em volume bem baixo, ora buscava com raiva os destroços do silêncio.
Ele, também cheio de compromissos, esquecia ou queria esquecer de tudo e tardava na hora de chegar em casa.
Também nos fins de semana, os dois não mais se viam.
Ela ficava no apartamento e, quando cansava de ler ou ficar em frente à televisão, cuidava das plantas medicinais que cultivava num vaso de madeira na sacada do apartamento.
Ele pegava o carro bem cedo e, nas manhãs de sábado, dirigia pela rodovia Ayrton Senna, depois Dutra, até o centro de Jacareí. Sentava-se à mesa do restaurante Beira-Rio, ao lado do Paraíba do Sul, e ficava observando a paisagem já urbana, mas tranqüilizadora pela presença do curso d’água. Embora já mostrando sinais de poluição -- teria peixes? --, o rio possuía uma vegetação rasteira de moitas de capim e flores, onde às vezes surgiam filhotes de capivaras brincalhonas, mas arredias com a presença humana. Corriam pela beirada do rio. Depois, apareciam mais à frente, ainda na margem, para tomar sol.
Ele voltava já de madrugada e dormia até o começo da tarde de domingo. Ela havia tomado o rumo da casa materna e, na segunda-feira, ia direto para o trabalho.
Toda manhã, fazendo sol ou chuva, ele acompanhava pelas marginais a trajetória do rio Tietê e, depois, do Pinheiros. Embora com águas tão sujas quanto as do Tietê, o Pinheiros sempre tinha sinais de vida. Ele sabia que à sombra de uma torre de energia elétrica na Usina da Traição viviam centenas de preás, espécies de mamíferos roedores da família dos cavídeos, conforme aprendeu na enciclopédia. Antes, habitavam em tocas do outro lado do rio. Migraram todos, buscando o sossego da Usina. No outro lado, os meninos de uma antiga favela os caçavam para comer.
Nesse tempo, ele viu uma capivara, também da família dos preás, e considerada o maior dos roedores atuais, enfrentando as águas poluídas do Tietê. Depois, o animal descansou nas proximidades da ponte do Piqueri. Fugidia, mergulhou no rio em direção ao Pinheiros. O jornal divulgou na manhã seguinte que um casal de capivaras e quatro filhotes viviam às margens do rio na altura da ponte Cidade Jardim, mas seu habitat natural era no Oeste paulista, onde costumavam multiplicar-se nas barrancas dos rios.
Ao ler a notícia, ele se perguntou o que há muito vinha à mente, o que buscam em São Paulo?, fogem em busca de melhores dias?
Sozinho, sentado à mesa do café da ampla cozinha do apartamento, olhar fixo na página impressa do diário, ele desconhece o nível de inteligência das capivaras, mas o que vem em seu pensamento são algumas mulheres que se foram depois da tempestade.
Agora, pensa em Luiza, já separados há anos. Ele tem apenas uma vaga idéia de que ela mora na Vila Madalena, junto com a mãe, e aos sábados freqüenta a feira da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde compra bugigangas e coleciona réplicas de cavalos-marinhos.
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