Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 8 - Agosto 2oo9
Releitura - Mário de Sá-Carneiro
Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890 - Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu, grupo responsável pela introdução do Modernismo nas artes e letras portuguesas, seguindo as vanguardas europeias do início do século XX, nomeadamente o Futurismo.
Poetas como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, e pintores como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor reuniram-se em volta duma revista de arte e literatura cuja principal função era abanar as águas, agitar, subverter, escandalizar o burguês e pôr todas as convenções sociais em causa: o próprio nome "Orpheu" não fôra escolhido por obra do acaso - Orpheu era o mítico músico grego que, para salvar a sua mulher Eurydice do Hades, teria de a trazer de volta ao mundo dos vivos sem nunca olhar para trás. E era essa metáfora que importava aos homens da Orpheu, esse não olhar para trás, esse esquecer, esse olvidar do passado para concentrar as atenções e as forças no caminho para diante, no futuro.
Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias, como o decadentismo, o simbolismo, ou o saudosismo, então em franco declínio; posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como o interseccionismo, o paulismo ou o futurismo.
Notória a confusão dos sentidos e o delírio, quase a raiar a alucinação, em seus poemas; também um certo narcisismo e egolatria, o sentimento da solidão, do abandono e da frustração. A crise de personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota uma tendência para a aniquilação do eu. As cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o 1916, são como que um autêntico diário onde se nota paralelamente o crescimento das suas frustrações interiores, o que acabaria por contribuir para o seu suicídio.
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sôbre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias...
Tu sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Oue te abismaste nas ânsias.
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espêlho, erro —
Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro., da vida,
A morte da minha alma.
Saüdosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
F-u nunca vi... mas recordo
A sua bôca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saüdades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saüdades
Dos sonhos que não sonhei!...)
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saüdade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar.. .
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas.. .
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal ?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!..
Desceu-me nalma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma oulonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge, vivida;
Eu sigo-a, mas permaneço...
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Castelos desmantelados,
Leãos alados sem juba...
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