Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 13 - Janeiro 2010
Crônica - Roniwalter Jatobá

Olnib Olmedo, Untitled


A filha do príncipe

Chamava-se Leididai. Contaram outro dia, em São Miguel Paulista, que esse não era o seu nome verdadeiro. O escrivão do registro civil, ciente da lei, não quis aceitar o que era desejo da família. Com o consentimento amuado do pai, o oficial marcou no papel Eva ou Maria Aparecida. Na morada à beira do riacho Jacuí, porém, a menina foi sempre chamada – e agora lembrada – do jeito que todos gostavam: Leididai.

Nascera em 1982. Três meses depois do casamento do século, aquele que uniu o príncipe de Gales e a jovem Diana Spencer, a menina foi batizada numa cerimônia coletiva num galpão comunitário do Jardim Pantanal. O padre abençoou a todos e os pais da menina, Aírton e Ester Silveira Lima, se sentiram também nas graças de Deus, naquele domingo.

Ester era mulata, beirava os trinta anos, ágil como um demônio. Diarista de segunda a sábado, limpava com presteza e dignidade as sujeiras de um asilo para idosos ricos numa travessa da rodovia Raposo Tavares. Aírton era loiro, tinha ainda entranhado nas veias os resquícios das noitadas sexuais dos colonizadores holandeses no Ceará do século 17. Pelo porte, era chamado de Príncipe, apelido que o deixava orgulhoso, mas triste pela sua contínua e hereditária pobreza. Trabalhava de borracheiro numa travessa da avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, mãos calejadas de recauchutar precários pneus de caminhão.

– É a minha princesa – exaltava o pai quando passeava aos domingos com a menina já grandinha, toda arrumada pelas mãos da mãe que lhe fazia todas as vontades. – Veja... – e mostrava aos amigos os seus cabelos loiros e crespos, herdados dos dois, artisticamente trançados e bem penteados.

Embora fosse uma menina graúda, de aparência saudável, mostrava-se frágil com as mudanças do tempo. Nos meses de chuva, quando as águas do Tietê avançavam pela região insalubre, ela passava as noites com a respiração ofegante como se um ser fantasmagórico apertasse a sua garganta. No decorrer de sua vivência, a menina teve cachumba e outras doenças, e no primeiro aniversário quase morre de desidratação. Resistiu, no entanto. Quando completou cinco anos, já se virava sozinha na pequena moradia, apenas com a ajuda de uma vizinha prestativa. Enquanto os pais corriam por São Paulo durante o dia, ela brincava de boneca em frente à velha TV sempre ligada ou, em raras tardes, se juntava às dezenas de crianças de sua idade à beira de uma lagoa, onde se divertia com uma alegria inocente.

– Leididai não anda nada boa – disse a mãe num frio anoitecer quando Aírton pisou na soleira da porta.

Era sábado, tinha chegado de pouco. Cansado, dia inteiro no trabalho, ainda vinha com o corpo frio do chuvisquinho que pingava lá fora. Nesse instante, Ester correu para o cômodo dos fundos sem ninguém chamar, preocupada, apressada, limpando as mãos no avental claro e úmido.

O Príncipe só estranhou. Depois, correu para lá quando sentiu os gritos da menina. Assim mesmo pensou em gritos de medo ou podia mesmo ser divertimento em frente à televisão. Mas não, muito pior.

A menina, deitada no sofá que servia de cama, enrolada num cobertor grosso, se estrebuchava como se estivesse mordida de cobra. Gritava de fazer dó, chorava um choro pesado, choro sofrido de muita dor e fraqueza. O Príncipe então agarrou Leididai, jogou uma toalha por sobre sua cabeça, jeito de se livrar da chuva.

– Fique aí – ele disse para a mulher.

Correu pela rua se livrando das poças d’água e montes de lixo. Atravessou a estrada de ferro, cortando caminho entre fios elétricos e canos de água clandestinos. Seguiu pelos trilhos, ouvidos atentos para o barulho de uma noturna composição. Cruzou uma pinguela no riacho Jacuí e, em passos largos e encharcados, pisando forte agora nas manchas de chuva sobre o asfalto, alcançou a antiga estrada São Paulo-Rio.

Entrou no hospital ao lado do Mercado Municipal, molambo molhado de gente. Na sala de espera, olharam para ele assustados. Parou. Depois, o Príncipe esperou zanzando de um lado para outro, filha no colo. Cadeiras ocupadas, tremura nas pernas. A enfermeira, sentada, cega para eles, parada. Ele chamou um doutor que passava apressado, roupa branca de cima a baixo, que pusesse na frente sua filha, Leididai.

– É doença da brava – o Príncipe implorou. – Veja... – mostrando as manchas que começavam no pescoço e desciam, cada vez mais vermelhas, até os dedos nas unhas.

Ficou ali segurando a menina com a mão e, com outra, suplicando que dessem um jeito rápido, levassem logo ela para dentro.

De repente, sentiu o coração de Leididai palpitar no seu peito, descobriu a toalha do rosto dela, suor marejando. Enxugou o rosto da menina, que nem abriu os olhos, ficou tresvariando, mexendo a boca. Calada. A respiração foi ficando mansinha como se tivesse dormindo. Depois, sumindo de vez. O corpo dela se esfriando, gelando, mais um óbito de sarampo na abandonada cidade de São Paulo.

Eva ou Maria Aparecida? A princesinha estava morta.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix