Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 14 - Fevereiro 2010


Casa Paterna

Tenho em casa uma fotografia amarelada pelo tempo. É o mais antigo registro da secular família do meu avô paterno. No verso, numa caligrafia bonita, o “velho” anotou uma dedicatória a um parente distante. No final, registra o ano da pose fotográfica: 1937.

Ali está a família reunida na véspera de uma festa em Bananeiras, sertão baiano. Reconheço em sérios semblantes algumas tias já adultas e dois tios, ainda crianças. Um quadro incompleto. A maioria estava longe, muitos haviam sumido em busca de seus destinos pelo mundo.

Sinto a falta, entre as mulheres, de tia Nanã, que há pouco realizara seu casamento. O pai, o mais velho dos homens, já vivia pelas minas do Mimoso, à procura de cristal de rocha e pedras preciosas. O tio Preto, assim apelidado devido à coloração mais escura de sua pele, também seguira as mesmas trilhas do garimpo, mas contam que infernizava a todos pelo vício nos jogos de azar. Na mesma época, o tio Olegário já havia partido para o Rio de Janeiro, fascinado pelo futuro na então Capital Federal, e para onde seguiria, depois, também o tio Deco. A velha foto mostra que, pouco a pouco, a família ia se fragmentando, com cada filho criando asas após a fase adulta.

Leio outro dia que um recente relatório do Eurostat, o instituto de estatísticas da União Européia, revelou o que vem mudando em relação à família. Os jovens europeus relutam em deixar o colo da “mamma”. Segundo um escritor italiano, Piero Citati, eles pertencem a uma geração de eternos adolescentes, que não têm pressa nem interesse em crescer e, ao contrário de seus avós, não querem se tornar adultos tão cedo. Na verdade, retardam o mais que podem o abandono da casa paterna e o casamento.

Os italianos são campeões no chamado mammismo. Em 1987, 60% dos rapazes e moças continuavam a viver – na maioria dos casos, economicamente independentes – na casa dos pais. Oito anos depois, em 1995, aquela porcentagem havia crescido bastante: 71% dos jovens italianos passaram a considerar desnecessário e pouco interessante viver por conta própria, ou seja, longe da saia da mãe.

Também no Brasil, a casa de “painho” e “mainha” também virou refúgio seguro. Antes, sair de casa aos vinte anos era obrigação. Hoje, seja pela acomodação da juventude ou pelo funil cada vez mais estreito no mercado de trabalho, mudou a situação.

– Quem não gosta de chegar em casa e encontrar a comida pronta? – me disse recentemente uma paulistana no restaurante Consulado Mineiro.

Sábia justificativa. Outra amiga tentou sair de casa e, em pouco tempo, se arrependeu.

– Fui morar com um bando de amigas e me sentia muito invadida – me revelou. – As pessoas usavam minhas roupas, comiam aquilo que eu comprava. Na hora de pagar o aluguel, era uma loucura, nem todas tinham dinheiro.

A gota d’água para voltar para a casa dos pais foi o furto de um objeto de estimação.

– É preciso saber a hora certa de sair de casa. Se for para cair fora e não ficar legal, de que adianta?

A primeira vez que deixei a casa paterna tinha 16 anos. Por um longo ano, morei no Rio de Janeiro. Desempregado a maior parte do tempo, foi difícil a distância do lar. No retorno, minha mãe chorou ao me ver magro com cara de faminto. Realmente abatido, por dois meses caminhei solitário pelas margens do rio Aipim, tentando resgatar a tranqüilidade perdida.

A partir daí, chegou o medo. Embora sentisse necessidade de romper os laços com a casa paterna, vinha o receio de encontrar os mesmos obstáculos da primeira viagem. Sofria. Quando imaginava a visão da cidade grande, sentia calafrios e vinha o temor de desistir nos primeiros dias.

Em 1970, depois de dar baixa do Exército em Salvador, finalmente decido viajar para São Paulo. No ônibus, nos caminhos de Minas e Bahia, sentia temores e tremores. Já me via perdido no mundo. Impelido pela velocidade do veículo que percorria a Rio - Bahia, porém, reuni força, fantasias e sonhei.

Muitos anos depois, sou capaz de concordar com os jovens de hoje. Já superei a casa dos 60 anos, mas ainda mantenho a intuição de um adolescente que adora raspar os fragmentos do doce de leite preparado pela mãe numa panela de cobre, no calor fumegante do fogão a lenha.

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, MG, em 1949. Aos 10 anos, migrou com a família para Campo Formoso, sertão da Bahia. Desde 1970 vive em São Paulo. Como jornalista, trabalhou na Editora Abril e Editora Globo. Foi redator dos fascículos Nosso Século e Retrato do Brasil e colaborou em Movimento, Escrita e Versus. Atuou, também, como cronista do Diário Popular. Publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador) e Viagem ao outro lado do mundo (2009). Pela editora Nova Alexandria, publicou Rios sedentos (2006), voltado para o público infanto-juvenil, Contos Antológicos (2009) e, para a coleção “Jovens sem fronteiras”, O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix