Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá


O pesadelo do 25º soldado

Certa noite, Antônio Assis de Ângelo, sargento aposentado da antiga Guarda Civil de São Paulo, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, muitos e muitos anos depois de ter participado de um batalhão que lutou na guerra, na Itália.

A primeira coisa que ouviu foi o som de tambores: um desfile militar se aproximava. Apoiado em muletas de pontas de cobre - toc, toc, toc, toc -, saiu à rua, depois de transpor os degraus da porta. Era uma clara manhã de setembro, bonita manhã de setembro, mas ele sentia um opressivo aperto no coração.

Com dificuldade, deu meia-volta na calçada esburacada e voltou à casa, um sobrado de paredes descascadas e janelas grandes.

Na sala, deixou o corpo cair na poltrona, como um animal gravemente ferido. Estava cansado. Respirou fundo como se fosse a última golfada de ar no mundo, pensou em chegar pelo menos em alguma janela para ver a marcha dos militares, mas faltou-lhe vontade. Ia fazer 72 anos. Os cabelos já claros lembravam tufos de algodão, e o rosto, uma maçã assada. Tinha um semblante moldado em grossa argila, mas transfigurado pela amargura.

Não tinha amigos. Há anos, quando findara guerra, um homem o procurou naquele mesmo sobrado. Ao chegar, supondo um alegre reencontro, disse-lhe com afeto e animação: “Como na história do fabulista Hans Christian Andersen, o soldadinho de chumbo foi jogado fora de casa, caiu em um rio, foi engolido por um peixe, o peixe foi pescado e o destino o levou ao lar de origem. Aí está você. Aqui estou eu também. Venho reatar nossa antiga e inesquecível amizade.”

Fez de conta que não ouviu nada. Nem se dignou a olhar no rosto gordo do homem. “Por quê, filho?”, disse a mãe, logo depois. “Já me bastam as minhas lembranças”, respondeu com rudeza.

Agora, procura lembrar um pouco da mãe, já morta. Da rua, ecoa a passagem do desfile militar e humilham-no os passos fortes e a cadência dos soldados. Decide, então, penetrar mais nos labirintos da casa, quartos e corredores que ele conhece tão bem: as mínimas saliências do assoalho; os vãos das portas; os espaços entre os móveis e as paredes.

O som de suas muletas ecoa pela casa adentro, enquanto o barulho vindo da rua vai, pouco a pouco, diminuindo. Ele atravessa estreitos corredores, onde vasos guardam ainda ressequidas mudas de plantas. As paredes estão impregnadas de mofo e solidão.

Ali está o quarto, o seu quarto. Por hábito, passa o trinco na porta. A cama continua desarrumada. Sobre a penteadeira, tem uma fotografia emoldurada de uma bailarina, vestida em uma saia da mais pura gaze, num flagrante dela apoiada numa perna só. Parecem duas bailarinas gêmeas, pois a fotografia reflete, mesmo ao contrário, no espelho da penteadeira. Ao lado, tem uma caixinha triangular, também dupla, embrulhada em papel celofane.

- Soldadinhos de chumbo! - ele chama baixinho, muitas vezes, enquanto retira o papel e abre a tampa da caixa.

Era um batalhão de vinte e quatro soldadinhos de chumbo que, um dia, ele ganhara de presente de aniversário. Vestiam uniformes verde-oliva e capacetes de guerra. Portavam fuzis nos ombros. Eram todos igualzinhos, feitos num molde só. Mas ele os diferenciava pelo modo de olhar; pelo jeito de sentir as reações às suas ordens; ou mesmo pela maneira como reagiam quando ele lembrava os horrores de uma guerra.

- Covardes! - gritava quando estava irritado.

Ele, então, colocou todos os soldadinhos de pé, sobre a cama. Deitou-se ao lado, com o rosto apoiado no amassado travesseiro. Dali, ele podia ver em detalhes as duas imagens da bailarina.

- Esta teria sido a mulher ideal para mim - pensa ele. - Mas foi impossível.

À noite, recolheu os soldadinhos à caixa. Apoiado na cabeceira da cama, despiu a túnica militar e, depois, toda a roupa. Sentia-se um homem incompleto. Então, lembrou com absoluta nitidez da última batalha, entre gritos e estampidos, quando pela primeira vez acreditou que tudo era obra do destino.

Apanhou a fotografia com mãos trêmulas, sentindo-se mais calmo. Releu a dedicatória no verso do retrato: “Para quando o coração esquecer, os olhos lembrarem. Com amor, Júlia”. E, como num pesadelo, viu a fotografia dela, seu grande amor, consumir-se no meio do inferno.

Ao baixar a fumaça difusa, viu Júlia, de cabelos longos e sexo coberto de pêlos claros e ralos, debruçar-se sobre o corpo coberto de sangue e segurar em seu membro inutilizado pela explosão de uma mina, em novembro de 1944, nos campos da Itália.

Nesse exato momento, Antônio, o sargento aposentado, acordou. Estava, como sempre esteve nas noites de inverno, na cama de sua casa, à rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel Paulista, ao lado da mulher.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix