Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Editorial

Guillaume Le Tual
Digital painting - Photoshop CS 2, Wacom intuous 2 6x8 digital art tablet.


TUDA Maio! Com ares primaveris há muito despontados cá nas Terras da Cólera mas quase recobertos pelas fuligens vulcânicas das Terras do Gelo, aproveito o mote inter-nacional para trazer o poeta islandês Matthías Johannessen, em versão para o português deste que vos escreve. Homenageio também a mudança - a morte e o renascimento - no mito do Último Canto do Cisne, no belo madrigal The Silver Swan de Orlando Gibbons.

E já que Maio é mês de mudança - desta vez foi o QG da TUDA que se mudou de computador - em tempos de colaboracionismos e virtualidades melhor mesmo é se manter local. É como diria (ou poderia ter dito) o famoso neo-ludista Nicholas Carr, "nada como ter o seu próprio disco rígido"! Ao menos dá um ar de inocência a toda esta promiscuidade tecnológica! Como qualquer mudança física, esta mudança lógica também trouxe muitas intempéries, que juntando com todas aquelas outras já costumeiras (olha a ladainha novamente), venho mais uma vez apelar aos colaboradores que se atentem às REGRAS ao colaborarem com TUDA. Uma pequena ajuda no árduo trabalho deste que vos chega, assim podemos continuar tocando... barcos, cornetas, pianos, baixos, baterias & guitarras... mas aquelas idéias de um novo layout para TUDA ainda ficarão na cabeça por mais algum tempo!

E deixando as ladainhas de lado, TUDA Maio vem com tudo! DEMOCRÁTICA, INCLUSIVA & ABRANGENTE como sempre! Este mês TUDA traz as Palavras Quebradas de Arnaldo Xavier, Souzalopes, Orides Fontela, Santiago de Novais, Pedro Du Bois e Marly D'Agostini. As Palavras Contínuas de Roniwalter Jatobá, José Geraldo de Barros Martins, Mariângela de Almeida, José Miranda Filho e Fernando Portela. Nas Palavras Alheias, o poeta e escritor islandês Matthías Johannessen e o músico e compositor inglês Orlando Gibbons. Fernando Pessoa está em Foreign Words, e também nas Palavras Já Ditas. As Palavras Mostradas de José Geraldo de Barros Martins, A Mente Pela Lente de Matilde Damele, e nas Palavras Ensaiadas, Ronald Augusto.

Agora, como de costume, é só degustar, deglutir, triturar... TUDA à vontade. Pode até lamber os dedos que TUDA é limpinha... limpinha mas contagia. E como contagia! Por isso, aprecie TUDA SEM NENHUMA MODERAÇÃO. Ela só é contra a INDIFERENÇA!!!

Na luta, companheiros... e TUDA de bom!

Dívida Interna


Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Teresa Thinen & Eduardo Miranda

Revisão
Túlia Lopes, Eduardo Miranda & Teresa Thinen

Colaboradores
Arnaldo Xavier, Eduardo Miranda, Fernando Pessoa, Fernando Portela, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Mariângela de Almeida, Marly D'Agostini, Matilde Damele, Matthías Johannessen, Orides Fontela, Orlando Gibbson, Pedro Dubois, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá , Santiago de Novais e Souzalopes.

E-mail

Poesia - Arnaldo Xavier

Kandinsky, Black Lines, 1913


(...)

10

Serpente
luminoso sinal
til de tigre
recorte louco
despido
se move no prato raso

Sopa de ser
Cálice
se interrogando?

A vida

11

Como
A pedra
ajoelhou-se sobre

O esquecimento

12

Cinzentos
Depósitos de chamas e sombras antigas

Ventos mais antigos
Espalham retalhos
rascunhos de rastros
sobras de ausências

Se ilusão medita luz
Contemplativa natureza
pedra labirinto redesenha mandala
fio daluz

A teia

[ in Entrada de Luz, inédito ]

Arnaldo França Xavier (Campina Grande, 19/11/1948 - São Paulo, 26/01/2004) foi poeta, escritor e pensador do movimento negro no Brasil. Publicou Boleros Pretos, A Roza da Recvsa, Ludlud e Manual de Sobrevivência do Negro no Brasil (ilustrado pelo chargista Maurício Pestana). Participou ainda de inúmeras coletâneas de bibliografia restrita e pequenas tiragens.

Poesia - Souzalopes

Adam and Eve, 1509, by Lucas Cranach the Elder


sem querer cairá a fruta ou é porque
amor orbita grave e leva o mundo e traz
o corpo onde o outro e muda o mar e por
amor te bebo água mudo semeio sêmem já
na fruta do teu ventre nua e por que é
que voa ave e nave é amor que faz
a fala do homem aqui a fruta cai

Poesia - Orides Fontela

George Pali, My Sunshine, 40"H x 30"W

Meio-Dia

Ao meio-dia a vida
é impossível.

A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.

A luz é demais para os homens.
(Porém como o saberias
quando vieste à luz
de ti mesmo?)

Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.

Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior paulista, em 21 de abril de 1940. Estreou, em 1969, com o livro de poemas “Transposição”. Três anos depois, em 1972, formou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). No ano seguinte, em 1973, lançou “Helianto”. Em 1983, foi publicado seu terceiro livro de poemas, “Alba”, que ganhou o Prêmio Jabuti. Em 1996, o livro “Teia”, reunião de toda a sua obra, recebeu o Prêmio concedido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Faleceu em 2 de novembro de 1998. O livro, “Poesia Reunida”, foi lançado em 2006.

Poesia - Santiago de Novais

Auto da Barca do Céu

Diabo: AAAAABARRCA CARAIII

EIIITA PORRA!!!

Sai da frente cacete!

Abaixa esse cu!

TODOS: pra onde vai: quero ir! Quero é rir!

Diabo (sozinho): vou pro céu cacete! Entra porra!

E chegam. Tudo é perfume de rosas e gerânios. Uma delícia!

Deus: não acho adequado senhor diabo que se apresente assim no céu! (Deus nervoso).

Diabo: como assim senhor Deus? Assim que me gostam em qualquer lugar, portanto devem me ver assim também no céu! (Diabo tranquilo)

Deus: mas eu permiti sua visita para que saibam como tu és, exatamente para que te evitem!

Diabo: sou mais esperto, já me viram assim e adoraram todos que aqui estão... (insinuante, irônico e perverso)

Deus: ora mas eu posso colocar aqui quem eu quiser, inclusive tu. (tranquilo, sereno, calmo, poderoso, inimaginável e ameaçador).

Diabo: mas antes que aqui cheguem, posso desviar-lhes o caminho e levar para meu lugar. (longas risadas de escárnio e deboche)

Deus (chocado): não vou te perdoar nunca! Queimarás! Arderás!

Diabo: Eita porra! Tá nervoso?

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel celestial, diz:

Fidalgo: ôxente mizerávi!Quanto custa?

Deus: cala boca tú não tem cultura!

Diabo: aff!! Tô passado! Praticamente bége!

Judeu: (entra de repente): quero ir pra Telaviv!

Anjo: (aparece voando): nossa que confusão! Levo o Judeu pro metrô Conceição!

Fidalgo: metrô?? Que coisa de pobre!

Engarrafamento de barcas... (tipo sexta feira a tarde)...

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Bocó ou Parvo: todos vocês seus abestados!

Sapateiro da PQP!
Anticristo de Pirituba!
Fiu! Fiu! Caga no sapato,
filho da grande dadivosa!
Tua mulher tudo de tinhosa
Vai pular como um sapo
por sobre o guardanapo!

Cena Final

Diabo: afff! Vou é beber noutro canto!

Deus: eu vou dormir de camisola, porque não sou boiola!

Judeu: vou vender Marraquesh, quem quiser que compre!

Fidalgo: aiii Moisés, que coisa de pobre!!!Tô até com calor.

Anjo: voar voar subir subir! Ir por onde onde for, descer até o céu cair, ou mudar de cor, anjos do além .... (anjo plagiando Byafra)

Bocó ou Parvo: eita porra! Carai! Que porra é essa?


Final Apotético:

Todos falam para o Bocó ou Parvo: ( em unísssono)

- Cala boca cagado! Prá ti aguenta nem o Diabo!

Poesia - Pedro Du Bois

Black and White Dog Painting by Michael Henderson

Da Injustiça

Amaldiçoado em lágrimas
rasgo olhos ao horizonte

poente
inutilizo a noite
na chegada
em refúgio

(os cães ladram)

rememoro a hora
da notícia transmitida
palavra por palavra

revejo minha imagem
cristalizada
no congelamento
da lágrima depositada

(os cães farejam)

as dores se afastam
no distanciamento
necessário ao medo

o corpo estremece
ao se pertencer em dores

no horizonte hostil
da janela aberta
o futuro se depara
com a impertinência
do presente

(os cães comem)

afasto suas mãos das minhas:
o contato é lucidez
inoportuna na desesperança

a oração despercebida
rompe o silêncio
e se perpetua

afago o deslizar da hora
em horas subsequentes

(os cães se defendem)

murmuro o nada acontecido
e desacordo em sonhos

o retorno convive
com o fato
desproporcionado

revivo o outono em folhas
pelo chão

recupero a sanidade
e me faço cristal
de rocha esfacelado

(os cães se diferenciam)

sofro o instante
e gesto
o silêncio

o emudecer transmite
a incerteza da pergunta

na vastidão ampliada
da insensibilidade

(os cães desfazem)

posso perguntar
o que bem entendo:
mas não entendo

posso exprimir
a minha raiva:
mas não pretendo

posso aproximar
os olhos à fotografia:
mas não enxergo

(os cães confundem)

calendários dizem que os anos passam

o exercício diuturno de recuperar
o inconsciente e o aguardar
refulgente: recomposto

o exército lancinante dos ataques
distribui ossos que estalam

(os cães apavoram)

um dia destaco na pedra
o sinal: acordo

um dia acordo e na pedra
destaco o sinal

um sinal na pedra
é destaque quando acordo

(os cães se acovardam)

olho e enxergo
ouço e escuto
pego e sinto
levo à boca
e o sal amarga
o recesso de onde retirado

avaros dias de permanências
permanentes signos
aparentes esboços

o processo desarruma o fato
em procedimentos

(os cães arfam)

ouvidas as testemunhas
os peritos dizem
das especialidades

nada
nada

a improvável condenação
confundida em versos
na reversão da realidade

(os cães obedecem)

choro atravessar o espaço
desconsolado em fatuidades

remoço a fotografia
e me instalo diante
da orfandade

perder significa atos
ao despropósito
de continuar vivo

(os cães silenciam).

http://pedrodubois.blogspot.com

Poesia - Marly Agostini Franzin

Sad Days Indeed Painting by Asbjorn Lonvig

Deprê

Olho pra dentro de mim e não vejo nada,
Hoje acordei assim, triste, doída, calada
Olho ao redor: uma vida parada,
Coisas cinzas, pessoas erradas

Cabeça oca, corpo inerte, alma ausente
Nem quero saber de futuro ou de viver o presente,
Neste instante eu só preciso sumir
Virar fumaça e no ar rapidamente diluir

Que droga essa coisa de ter consciência
De ver criaturas em surto ou demência
Como elas não entendem da vida o sentido?
E fazem de si, o seu próprio inimigo?

Não consigo pensar nos dias melhores que virão,
Ou mesmo se uma luz irá brilhar no fim do túnel,
Apenas gostaria de estar dormindo e acordar,
Num mundo mais justo, fraternal e incorruptível.

Crônica - Roniwalter Jatobá


O pesadelo do 25º soldado

Certa noite, Antônio Assis de Ângelo, sargento aposentado da antiga Guarda Civil de São Paulo, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, muitos e muitos anos depois de ter participado de um batalhão que lutou na guerra, na Itália.

A primeira coisa que ouviu foi o som de tambores: um desfile militar se aproximava. Apoiado em muletas de pontas de cobre - toc, toc, toc, toc -, saiu à rua, depois de transpor os degraus da porta. Era uma clara manhã de setembro, bonita manhã de setembro, mas ele sentia um opressivo aperto no coração.

Com dificuldade, deu meia-volta na calçada esburacada e voltou à casa, um sobrado de paredes descascadas e janelas grandes.

Na sala, deixou o corpo cair na poltrona, como um animal gravemente ferido. Estava cansado. Respirou fundo como se fosse a última golfada de ar no mundo, pensou em chegar pelo menos em alguma janela para ver a marcha dos militares, mas faltou-lhe vontade. Ia fazer 72 anos. Os cabelos já claros lembravam tufos de algodão, e o rosto, uma maçã assada. Tinha um semblante moldado em grossa argila, mas transfigurado pela amargura.

Não tinha amigos. Há anos, quando findara guerra, um homem o procurou naquele mesmo sobrado. Ao chegar, supondo um alegre reencontro, disse-lhe com afeto e animação: “Como na história do fabulista Hans Christian Andersen, o soldadinho de chumbo foi jogado fora de casa, caiu em um rio, foi engolido por um peixe, o peixe foi pescado e o destino o levou ao lar de origem. Aí está você. Aqui estou eu também. Venho reatar nossa antiga e inesquecível amizade.”

Fez de conta que não ouviu nada. Nem se dignou a olhar no rosto gordo do homem. “Por quê, filho?”, disse a mãe, logo depois. “Já me bastam as minhas lembranças”, respondeu com rudeza.

Agora, procura lembrar um pouco da mãe, já morta. Da rua, ecoa a passagem do desfile militar e humilham-no os passos fortes e a cadência dos soldados. Decide, então, penetrar mais nos labirintos da casa, quartos e corredores que ele conhece tão bem: as mínimas saliências do assoalho; os vãos das portas; os espaços entre os móveis e as paredes.

O som de suas muletas ecoa pela casa adentro, enquanto o barulho vindo da rua vai, pouco a pouco, diminuindo. Ele atravessa estreitos corredores, onde vasos guardam ainda ressequidas mudas de plantas. As paredes estão impregnadas de mofo e solidão.

Ali está o quarto, o seu quarto. Por hábito, passa o trinco na porta. A cama continua desarrumada. Sobre a penteadeira, tem uma fotografia emoldurada de uma bailarina, vestida em uma saia da mais pura gaze, num flagrante dela apoiada numa perna só. Parecem duas bailarinas gêmeas, pois a fotografia reflete, mesmo ao contrário, no espelho da penteadeira. Ao lado, tem uma caixinha triangular, também dupla, embrulhada em papel celofane.

- Soldadinhos de chumbo! - ele chama baixinho, muitas vezes, enquanto retira o papel e abre a tampa da caixa.

Era um batalhão de vinte e quatro soldadinhos de chumbo que, um dia, ele ganhara de presente de aniversário. Vestiam uniformes verde-oliva e capacetes de guerra. Portavam fuzis nos ombros. Eram todos igualzinhos, feitos num molde só. Mas ele os diferenciava pelo modo de olhar; pelo jeito de sentir as reações às suas ordens; ou mesmo pela maneira como reagiam quando ele lembrava os horrores de uma guerra.

- Covardes! - gritava quando estava irritado.

Ele, então, colocou todos os soldadinhos de pé, sobre a cama. Deitou-se ao lado, com o rosto apoiado no amassado travesseiro. Dali, ele podia ver em detalhes as duas imagens da bailarina.

- Esta teria sido a mulher ideal para mim - pensa ele. - Mas foi impossível.

À noite, recolheu os soldadinhos à caixa. Apoiado na cabeceira da cama, despiu a túnica militar e, depois, toda a roupa. Sentia-se um homem incompleto. Então, lembrou com absoluta nitidez da última batalha, entre gritos e estampidos, quando pela primeira vez acreditou que tudo era obra do destino.

Apanhou a fotografia com mãos trêmulas, sentindo-se mais calmo. Releu a dedicatória no verso do retrato: “Para quando o coração esquecer, os olhos lembrarem. Com amor, Júlia”. E, como num pesadelo, viu a fotografia dela, seu grande amor, consumir-se no meio do inferno.

Ao baixar a fumaça difusa, viu Júlia, de cabelos longos e sexo coberto de pêlos claros e ralos, debruçar-se sobre o corpo coberto de sangue e segurar em seu membro inutilizado pela explosão de uma mina, em novembro de 1944, nos campos da Itália.

Nesse exato momento, Antônio, o sargento aposentado, acordou. Estava, como sempre esteve nas noites de inverno, na cama de sua casa, à rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel Paulista, ao lado da mulher.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Aconteceu em Buenos Aires

I

Aconteceu em Buenos Aires (La Capital Federal), mais precisamente na Plaza de Miserere, naquela praça imunda no cruzamento da Av. Rivadavia com a Av. Jujuy... Na verdade a nossa estória começa em outra parte da capital platina, mais precisamente nos arredores do Caminito, um dos lugaresturísticos daquela cidade, (ao contrário da Plaza de Miserere que de turístico não tem nada)... Pois bem, estava Tobias Tomásio e sua mulher Búzya Berlametz a voltar de uma visita guiada ao famoso & amigo Caminito... Era a sétima vez que ele visitava a Argentina e estava um pouco enfastiado daquela turistada... ao contrário dela que, apesar de conhecer bem a Europa e Oriente Médio, nunca havia visitado aquele país e estava achando tudo o máximo... Ao passar em frente a um vendedor de choripan (pão com lingüiça) ela sentiu o cheirinho vindo da churrasqueira e disse olhando para ele:

- Estou com vontade de comer este sanduíche!!!

- Nem pensar- disse ele – depois de amanhã começaremos a percorrer todo este país e uma indisposição intestinal pode arruinar tudo... no final da viagem, quando regressarmos para cá você come, tá bom???

- Tá...disse ela, um tanto choramingante.

Na verdade ela ficou bastante contrariada e só para provocar comia as coisas mais diversas no decorrer da viagem: comeu carne de lhama, aquele cozido com milho, feijão branco, carne e pimenta ají (que se chama locro criollo), as famosas achuras: entranhas grelhadas: mollejas (timos), chinchulines (intestinos delgados), morcillas (linguiças de sangue)...comeu também carne de javali e de cordeiro patagônico... ele não, no máximo um bife de chorizo, mas preferia mesmo era pechuga al verdeo (peito de frango com molho de creme de leite e cebolinha)...

Depois de percorrer o país de Salta a Patagônia, pasando por Cafayate e Mendoza (afinal não dá para comer tudo isto aí em cima sem um bom vinho para ajudar na digestão); eles retornaram à Capital Federal e depois de tanta comida e tanto vinho eles queiram mesmo era um cafézinho... Tobias Tomásio que conhecia muito bem aquela cidade, resolveu levá-la à esquina que serve o melhor café da cidade, o único com gosto de café brasileiro, mais precisamente o Café La Perla na esquina da Av. Rivadavia com a Av. Jujuy no coração do Miserere... Ao sair do café, passando pela praça imunda cheia de miseráveis, eles voltaram a sentir aquele cheirinho característico, o cheiro do choripan (perdõe-me pelo trocadiho infeliz) e ele achando que ela não teria coragem de comer um sanduíche feito naquele lugar, só de brincadeira disse:

- Quer um benzinho???

- Mas é claro!!! disse ela sorridente.

Ele até tentou argumentar, dizendo que aquele lugar não tinha a higiene adequada, mas não teve jeito... Porém logo que se aproximou do vendedor de choripan, este encarou Tobias por alguns segundos e exclamou em português fluente:

- Se você veio até aqui para reclamar sobre aquela partida de futebol de botão, fique tranquilo, não vou discutir... você estava certo: aquele gol não valeu: antes de tocar na bolinha “meu jogador” esbarrou em um jogador teu...

Tobias Tomásio estava estupefado: aquele homem era Teodorico Tomásio, seu irmão que estivera desaparecido há trinta e dois anos... Foi após uma partida de futebol de botão, que Teodorico abriu a porta da casa de seus pais, (no bairro de Marapé na cidade de Santos) e saiu para nunca mais retornar. Mas por quê??? Por que você nunca mais retornou??? Veja, esta aqui é á Búzia, minha esposa, sirva um choripan para ela, primeiro... depois dispense este fogareiro e vamos todos comer e beber por minha conta comer no restaurante do Hipódromo de San Isidro, para celebrar o reencontro!!!

II

Foi um almoço maravilhoso, naquele restaurante chique possuidor da melhor e maior carta de vinhos da Grande Buenos Aires...Teodorico aos prantos pediu desculpas, e disse que sempre planejara fugir de casa, mas ninguém iria aceitar o motivo, e então arranjou um pretexto para uma discussão seguida de fuga: uma partida de futebol de botão... após um bate-boca com Tomásio, ele fugira de casa e partira da cidade em um circo com destino ao interior do estado de São Paulo, e daí seguira uma vida errante, foi bóia-fria em Minas Gerais, açougueiro em Goiás, segurança de boate em Mato Grosso (e Campeão de Tiro ao Alvo em Cuiabá), foi garçon no Paraguai e também compôs duas guarânias (uma foi gravada a outra permanece inédita), foi taxista na Bolívia (nas horas vagas jogava em um clube da segunda divisão daquele país), foi cozinheiro no Peru (o ceviche do restaurante em que ele trabalhava ganhou o segundo lugar em um concurso na cidade de Lima), foi motorista de ônibus no norte do Chile (disse que teve uma experiência mística a 5000 m de altitude, quando fazia o trajeto entre San Paedro do Atacama e Salta) e por fim vendedor de choripan na Argentina...

Tobias aceitou as desculpas, com a condição que seu irmão revelasse o verdadeiro motivo da fuga...

Então Teodorico revelou: Você se lembra da Noêmia??? A nossa professora de primeira comunhão... pois bem, ela dizia que no dia do juízo final iria passar um filme com a vida de cada um, e todos iriam assistir a vida de todos... então eu fiquei pensando que quando passasse o filme da minha vida, não poderia ter gente dormindo... imagine que vergonha, na hora que estão passando o filme com a sua vida você olha para o lado e vê uma fileira de gente dormindo... não, não dá... então eu resolvi fugir...

Conto - Mariângela de Almeida

Faye Yong, Rivers of Gold


Boleira enroleira

Não adianta. Eu até tentei assistir ao futebol com olhos masculinos. Procurei participar das discussões apaixonadas, comentando o impedimento ou o possível penalti. Mas não dá. Que eu gosto da bola rolando, eu gosto. Acho bem bacana essa coisa dos 11 em cada lado, o goleiro rendido, as traves, a emoção da torcida. Assisto e torço, especialmente quando o meu time joga. Mas meu time não joga... não tem jogado. Uma porque tá ruim à beça, outra porque já caiu fora do campeonato (consequência de uma péssima performance, é claro). Mas eles nem sabem que eu desconheço a escalação e já me esqueci o nome do técnico - acho que trocou recentemente. Mas do goleiro, eu não me esqueço... São Marcos!!!

Tudo bem porque sobraram times que até curto acompanhar.

Mas não no mesmo ritmo e no mesmo pique dos marmanjos com quem vez ou outra divido a tela da TV, numas de estar ali e fazer parte.

Faço parte, eu sei. Mas do meu jeito.

Observo os patrocinadores decalcados nos uniformes. E acho muito engraçado que uma empresa aprove ter seu nome estampado na bunda do atleta. Cada um, cada um...

Olho as coxas de alguns e os gambitos de outros. Jogador de futebol brasileiro,com raras exceções, é feio que doi. Mas as coxas aliviam. São fortes, torneadas... Valem o esforço de tentar entender por que, meu Deus, o cara cai vitimado por uma falta, rola no chão que nem minhoca, faz careta de dor, como se estivesse à beira da morte, depois levanta e sai saltitando pra continuar na peleja. Que drama!

Também fico de olho nas cusparadas. Você já reparou como esses caras cospem no campo? E depois caem lá, de cara no gramado... Ou, ainda, quando o juiz aponta o meio do campo, pra encerrar o primeiro tempo, e de suor pingando eles trocam a camisas e... se abraçam!!!

E o juiz? Que figura, né? Legal mesmo é quando ele participa de alguma jogada.

Minha torcida incondicional é sempre para o goleiro. De qualquer time. Que situação!!! Ainda bem que não sou mãe de um deles, porque enfartaria, com certeza.

Mas o melhor de tudo, a meu ver, são os comentaristas. Ontem mesmo, me diverti com uma dupla que, diante de uma jogada x, começou a profetizar: "ele deve ter feito isso porque se lembrou daquelas jogada no jogo y, em 2003, quando a bola veio pela esquerda e ele não dominou, usando a direita", e o outro: "Ele está pensando que agora, mesmo com esse lance, não tem como dominar desse jeito com a marcação do fulano". Quanta sabedoria!

Gosto também da participação dos telespectadores, online. Cada pergunta... e agora tem uns que mandam a foto ou se exibem pela webcam! Um mico!

Pois é assim que me envolvo. E não ligo por não saber nem de longe o que seja, afinal, impedimento. Muito menos as regras do goleiro para pegar a bola recuada. Nada! Tô feliz com o meu jeito de assistir à pelada. E adoro quando chega o meio tempo, porque as propagandas de cerveja estão cada vez melhores...

Conto - José Miranda Filho

http://www.dulcineabrito.com/



O Retrato do Sertão – 3

Anoiteceu em Poços dos Anjos. De madrugada, sob a luz do luar que se infiltrava no quarto através das fissuras do telhado, dona Giselda, mulher de Agamenon sentiu as primeiras dores do parto.

Agamenon num pulo só saltou da cama, vestiu-se apressadamente e correu para o jirau aonde guardava os arreios. Atrelou o cavalo à carroça velha e sem bancos, e foi pedir ajuda a Mãe Crisalda. Fôra ela que ajudou Nhá Marina, sua mãe, dar à luz a seus cinco tios, filhos de Zé da Vila. Agenor e os outros cinco mais velhos nasceram na fazenda de “seu” Quincas, filhos de Geremias, com a participação de outra parteira.

-Mãe Crisalda...Mãe Crisalda....Mãe Crisalda, gritava Agamenon nervoso, enquanto batia fortemente à porta.

-Quem é?

-Sou eu, Agamenon. - Giselda está com dor de parto e eu vim chamar a senhora pra fazer o parto.

Mãe Crisalda, rezingando adoidada e portando um candeeiro a querosene, cujo pavio de algodão gasto pelo uso, que mal iluminava seu rosto aproximou-se da porta, abriu-a e mandou que Agamenon entrasse e aguardasse, enquanto ia pegar “mesinha”, arruda e alguns apetrechos de que iria precisar.

Ainda zangada por ter sido acordada àquela hora da noite, mas consciente de sua função, perguntou para Agamenon se em sua casa tinha álcool, cachaça e sal grosso.

- Não, mas na volta eu pego na venda de Maninha.

Subiu na carroça ao lado de Agamenon, e se acomodou sobre o estrado com as pernas penduradas.

Em disparada e com pressa de chegar, só as patas do cavalo e a relha da carroça deixavam suas marcas na estrada empoeirada do chão bruto e seco.

- Esqueci de pegar o relicário, disse Mãe Crisalda aborrecida.

-Não faz mal, vamos sem ele. A Giselda pode não aguentar tanto tempo. Acho que quando a gente chegar o menino já nasceu. Respondeu Agamenon impaciente.

Tão logo desceram da carroça mãe Crisalda dirigiu-se ao quarto onde estava Giselda contorcendo-se de dores.

-Preciso de ajuda. Chamem Marilda.

Marilda era a irmã mais velha de Agamenon, dentre as mulheres.

Tinha alguma experiência apesar de não ter filhos. O único havia nascido morto, após um parto complicado que a impediu de conceber novamente.

Com as folhas de arruda embebidas em álcool, vinagre e sal, mãe Crisalda esborrifou a barriga da parturiente que se contorcia de dores.

- Não quero ninguém no quarto, somente eu e Marilda, disse esbravejando para que todos se retirassem, enquanto balbuciava palavras inaudíveis que só ela entendia. Defumou o quarto com o preparo de “mesinha” que trouxera, espalhando a fragrância pelo ar.

De manhãzinha berrava um meninão amparado pelas mãos ágeis e delicadas da zelosa parteira.

Cortaram o cordão umbilical e deram-lhe o nome de Agapito.

Beberam e comemoraram.

Nascia o primeiro bisneto de Nhá Marina que não o conheceu.

Conto - Fernando Portela

Scott Reeder, 'Bread and Butter (Day)', 2008 - Oil on linen, 26 x 22 inches

Lamber os beiços

Meti meio pão francês com manteiga na caneca cheia de café; deixei encharcar um pouco, até a manteiga vazar e manchar o líquido escuro, e aí fui puxando com os dentes pequenos nacos do pão, que ora chupava, ora deixava desfazer na boca. Não existe nada mais delicioso neste mundo do que isso.

Ando gostando muito de comer, fico até preocupado. Não posso me entregar a prazer algum, não vou amolecer, distrair-me. Daqui a pouco o herdeiro vai entrar pela porta principal do restaurante, com os dois seguranças. Tenho certeza de que vai escolher a mesa próxima do toalete, que é a mais protegida, apesar do cheiro de mijo que se espalha por uns três metros quadrados. Mas o herdeiro é gordo e glutão: quando come, não vê nem ouve nada, não sente cheiro de porra nenhuma. Por isso será fácil matá-lo. O problema são os seguranças. O gordo os troca a cada quinze dias.

Estou na campana há muito tempo, desde o final do ano passado. Sei tudo desse filho da puta obeso. Sei, inclusive, que a sua pior tara é a de só se excitar quando vê sofrimento. Por isso bate tanto nas mulheres. Há certas pessoas que não deveriam vir ao mundo, eu talvez seja até uma delas, mas esse gordo é pior do que eu. Eu, pelo menos, tenho a minha ética e jamais apaguei um pai de família ou alguém reconhecido pela comunidade como um benfeitor. Tive de encarar Brejo Preto, quando ele veio me contratar para queimar o juiz.

“Sabe quantas crianças estão vivas por causa daquele doutor, Brejo Preto?”, eu perguntei, porque até meu irmão Lourenço tinha mandado dois órfãos para a casa de caridade que o juiz mantinha.

“Tô cagando.”

“Tá não, Brejo Preto. O homem cuida de sessenta crianças, levanta dinheiro até do padre Júlio, que é a pessoa mais avara que já conheci. Se esse homem morre, quem vai tocar o orfanato?”

“Que se foda.”

Acabou de falar e os miolos foram parar no teto. Dizem que uns pedacinhos pretos estão lá até hoje, grudados. Os três capangas que vieram com ele nem esperaram pra carregar o corpo. Olharam pra mim com cara de bunda e saíram correndo. Não se faz mais capanga como antigamente. Eu mesmo me surpreendi com aquilo. Será que agi de reflexo? Acho que foi. Não suporto ver gente egoísta, porque o mundo é uma massa que só se move quando todos empurram. Quer dizer, um depende do outro e é o povo que dá a direção. Tem que ter gente nesta merda pra cuidar dos abandonados. O juiz mandou três amigos meus pra cadeia, mas é um homem decente.

Nossa! Agora, cheguei até a lamber a ponta dos dedos e passei a língua nos beiços. Que pão gostoso, caceta! Torradinho, saído do forno inda agora. E a manteiga... daquelas de Minas que só se vende em lata.

Péra aí: deve ter alguma coisa errada nesta história. Não conheço ninguém no restaurante. Das vezes em que estive aqui por perto, na campana do gordo, jamais entrei neste lugar. Ficava de longe, no máximo perto da porta, fingindo de motorista cansado que precisa esticar as pernas, ou observava de dentro do caminhão. Fiquei meses nisso. Sou um profissional. O sujeito que me atendeu deve ser o dono, anda de roupa comum, enquanto os garçons se vestem com um avental azul. Foi o dono que me serviu o pão e a manteiga de lata. Por quê?

Daqui a pouco o gordo vai atravessar a porta e eu não deveria me mexer daqui. Mas não gostei da descoberta: quem sou eu, um desconhecido, para merecer o melhor bocado da casa? A menos que...

Levantei-me com calma, olhando para todos os ângulos do grande salão, até para o que se passava às minhas costas, através do espelho redondo no ângulo da parede, e foi pelo espelho que vi o dono do restaurante empalidecer só pelo fato de eu me ter mexido. Voltei-me para ele, andei em sua direção, com passadas moles, mas olhando-o nos olhos. Ele ficou hipnotizado. Cheguei muito perto e disse, rindo, que queria falar com ele dentro do banheiro. Ele obedeceu, tremendo.

“Que foi, meu senhor?”

“Você vai me dizer. Serve manteiga de lata pra todo mundo aqui? E esse pão torradinho, de onde veio?”

“Meu senhor, eu sei quem o senhor é. Queria só agradar...”

“Você e mais quem?”

“Só eu, meu senhor. Não converso essas coisas com empregado.”

“Tire a roupa.”

“Mas, meu senhor...”

“Vamos trocar de personalidade. Temos o mesmo tamanho. Sente no lugar onde eu estava, com a minha roupa. Eu vou servir manteiguinha mineira pra você.”

“Os garçons vão notar.”

“Se notarem, vão entender que é melhor ficar quietos. Ou vão todos pro céu. Tenho bala aqui pra matar mais de cinquenta.”

Na hora em que saíamos do banheiro, o gordo chegava com os dois seguranças que, pelo menos, eram os mesmos da última vez que vi o desgraçado.

O dono do bar sentou-se no lugar onde eu estava e começou a brincar com a lata de azeite de soja em cima da mesa. Eu peguei a primeira bandeja que achei e, diante dos olhares assustados da mocinha da caixa, que não conseguiu compreender minha súbita presença com as roupas do patrão, peguei o pão e os potinhos de manteiga. Esta, com certeza, de quinta categoria. A bandeja encobria a pistola..

Fui pelas costas dos seguranças levar o couvert. Era uma excelente posição. O gordo na minha frente. Os seguranças de costas. A mulher do pai daquele puto, a segunda, me contratara para matar o enteado. O velho não viveria muito, com cirrose avançada, e não havia mais herdeiros, além do gordo.

“Mas a senhora tem direito à metade”, eu disse à mulher, que não me parecia má pessoa.

“Não é dinheiro, senhor. É medo. Ele está se preparando para me matar. Sinto no olhar dele.”

“Aí a senhora se antecipa...”

“Isso.”

“Vou aceitar o serviço porque aquele gordo não vale o que o gato cobre. Quase matou de pancada uma amiga minha.”

“Meu Deus! Por quê?”

“Só para vê-la sofrendo. Sentindo dor.”

Lembrei-me do diálogo no momento em que me aproximei da mesa do herdeiro. Os seguranças viram que era o homem do restaurante vindo e me deram as costas. O gordo já estava de cabeça baixa, arrasando um saco de batatas fritas.

Acertei à queima- roupa a cabeça de cada um. Eles caíram de um jeito que parecia de brincadeira: como quem dança capoeira, chutando as mesas e cadeiras de plástico. O gordo ainda levantou a cabeça, mas o corpo dele não se mexeu. Aí foi fácil: mais um tiro no meio dos olhos. Meu silenciador é tão eficiente que uma parte do pessoal, dentro do restaurante, não percebeu o que estava acontecendo.

O herdeiro caiu de costas, junto com a cadeira, e não largou o saco de batatas fritas. Eu passei por cima dele, carregando a bandeja, quando as pessoas começaram a gritar e a correr para longe do prédio, e me dirigi diretamente ao dono do bar, que usava minhas roupas.

“Obrigado, meu caro, pela manteiga de Minas e o pão torradinho. Sabe, eu lambi os beiços.”

O homem sorriu, cúmplice, enquanto as pessoas gritavam cada vez mais alto.

“Quando quiser essas coisas, venha comer aqui”, ele disse. “Lugar onde ninguém vê nada é o melhor do mundo.”

“Pode deixar que eu volto, amigão.”

Meu plano de fuga já estava pronto há muito tempo. Saí pela lateral, fui até o pequeno depósito de pneus e outras velharias, num puxado do restaurante, onde também guardavam caixas de cerveja; peguei a bicicleta e saí tranquilamente, como um capiau qualquer, sem pressa pra chegar em casa. Ainda ouvi umas sirenas de polícia, ou de ambulância, nunca sei ao certo, enquanto me aproximava da servidão onde guardei o carro. Com o lucro do serviço, poderia ficar três meses pescando no meu sítio em Goiás. Um dia ainda iria convidar o amigo lá do restaurante. Ele certamente não conhece a emoção de pegar um pacu e comer na hora, na brasa. Hum...

Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2007.

Fernando Portela, escritor e jornalista, já escreveu mais de quarenta livros entre contos adultos, contos e novelas juvenis, reportagens, paradidáticos, pesquisas históricas e até um livro infantil. Seus últimos contos estão numa trilogia composta pelos títulos “Allegro” (2003); “O Homem dentro de um Cão” (2007); e “Memórias Embriagadas” (2008). Mantém o blog “Literatura de Fernando Portela”. Contato: fatportel@gmail.com.

Tradução - Eduardo Miranda


Matthias Johannessen nasceu em Reykjavík, a 3 de janeiro de 1930. Jornalista, poeta e escritor islandês, ganhou o prêmio de Estudos em Literatura Islandesa de 1955. Sua primeira coleção da poesia saiu em 1958 e atraiu considerável atenção de crítica e público. Desde então, como seu próprio editor, Matthias vem publicando muita poesia, bem como romances, contos, peças, livros acadêmicos e entrevistas. O poema aqui traduzido faz uma alusão à primeira-ministra Jóhanna Sigurðardóttir e à profunda recessão que assola o país.

Depressão

Ela se esparrama sobre o país como sombra,
Todas as velas se esvaem das casas em prantos
restam as luzes celestiais iluminando a hecatomba
supostamente mantendo a fidelidade aos humanos.

Esta tudo muito escuro, e o país continua
sob constantes ameaças e engodo
tudo é escuro, mais pesado que as lágrimas,
melhor que estas nos sejam tomadas logo.

A Depressão acercou-se, mas carrega um fardo,
onde quer que vá, tem seu caminho já traçado,
e nosso conforto está em saber que sempre
os olhos de Glam(*) irão fitá-la de frente.

(*) Grettir, o Poderoso é uma saga islandesa escrita no começo do Século XIV que narra as aventuras de um violento herói, e uma de suas aventuras é sobre um ser perigosíssimo, uma mistura de monstro e fantasma, chamado Glam. Esta aventura faz parte do imaginário fantasmagórico escandinavo e conta que antes de ser morto por Grettir, Glam roga uma praga no herói: "(...) você viverá para sempre no exílio de sí mesmo (...) sempre terá meus olhos diante de sí, e nunca mais vai querer ficar sozinho - e isso irá te acompanhar até o final dos tempos." E Grettir aumentou sua fama de guerreiro corajoso ao matar Glam, mas nunca mais se atreveu a caminhar sozinho pelos bosques após o anoitecer, pois através de seus olhos via todos os tipos de horrores.

Kreppan

Hún liggur yfir landi eins og skuggi,
sem ljós við kerti slokknar sérhver gluggi
en himinljósin horfa niður og skína
og halda tryggð við langa vegferð þína.

Það dimmir mjög og landið liggur undir
lævísri ógn og villu nú um stundir,
allt er það myrkur þyngra en tárum taki,
tökum því vel því seinna kemur Laki.

Hnípin var sagt,en horfum fram á veginn,
hvar sem við förum þar er línan dregin,
hamingja þjóðar hennar von sem er
að horfast í augu við Glám í fylgd með sér.

Foreign Words - Fernando Pessoa

Giuseppe ModicaAutoritratto - Controluce (2003 – olio su tavola -80x60)

Fernando Pessoa is famous not only for his poetry, but also for his heteronyms. Soon he started to invent companions, as Charles Robert Anon, H. M. F. Lecher and the crossword expert Alexander Search, among others minor heteronyms. On March 8, 1914, Pessoa wrote all the 49 poems from O Guardador de Rebanhos, under the name of Alberto Caeiro. He would soon create Alvaro de Campos and Ricardo Reis. Bernardo Soares was a semi-heteronym who just had his work published in 1982. O Livro do Desassossego, composed of fragments of poetic prose.

from O Livro doDesassossêgo
translated by David Butler

I have the most outlandish opinions, the most diverse beliefs. And it's that I never think, I never speak, I never act. It's always one or another of my dreams which thinks, speaks and acts, within which I am for the moment incarnate. I go to speak and I-another speaks. Of mine, I only feel an enormous incapacity, an immense void, an incompetence before all that is life.

Fernando Pessoa é famoso não só por sua poesia, mas também por seus heterônimos. Desde cedo inventava companheiros, alguns heterônimos menores, como Charles Robert Anon, H. M. F. Lecher e o especialista em palavras cruzadas Alexander Search, entre outros. Em 8 de março de 1914 Pessoa escreveu todos os 49 poemas de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. Logo inventaria também Álvaro de Campos, e em seguida Ricardo Reis. Bernardo Soares foi um semi-heterônimo de Pessoa, que só teve sua obra publicada em 1982. O Livro do Desassossego, composto por fragmentos de prosa poética.

de O Livro doDesassossêgo
Fernando Pessoa (Bernardo Soares)

Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida.

Tradução - Eduardo Miranda

A expressão "canto do cisne" é uma referência a uma antiga crença de que o cisne é completamente mudo durante a sua vida, até pouco antes de morrer, quando canta uma bela canção. Cisnes não são realmente mudos em vida, e não cantam ao morrerem, mas a fábula é atraente e continua a aparecer em vários trabalhos artísticos. Entre tantas, eu gosto do conhecido madrigal de Orlando Gibbons, compositor e organista inglês do final do era Tudor e começo da era Jacobina. Era tido como o principal compositor na Inglaterra de seus dias.

O Cisne Prateado
Orlando Gibbons

O cisne prateado, que em vida não emitiu uma só nota,
quebrou o silêncio quando a morte se aproximou,
enchendo seu peito contra a recoberta costa,
cantou seu primeiro e último canto, depois calou:
"Adeus, alegrias, ó morte, molha meus olhos com teus lábios!
Mais Gansos que Cisnes vivem agora, mais Tolos que Sábios".

The Silver Swan
Orlando Gibbons

The silver Swan, who living had no Note,
when Death approached, unlocked her silent throat.
Leaning her breast against the reedy shore,
thus sang her first and last, and sang no more:
"Farewell, all joys! O Death, come close mine eyes!
"More Geese than Swans now live, more Fools than Wise."

Releitura - Fernando Pessoa


Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Ilustração - José Geraldo de Barros Martins


Foto - Matilde Damele

Feira de São Joaquim

Ensaio - Ronald Augusto

Silver Stones - Painting by Pramod Arya


O ALVO INCERTO DA PEDRA

Pedra Habitada é menos um livro de poemas do que um lance radical e criativo focado na investigação sobre os limites do que pode ser dito por meio de uma música sem-versista. Isto é, não se trata de “mais um” livro de poemas – como poderiam supor aqueles superescritores que jamais dão por finalizado o seu livro-para-acabar-com-todos-os-outros-livros, porque consomem seus tenros estofos de gênios tentando não sucumbir a uma intrínseca mediocridade que os constitui -, é, pois, um livro-projeto; livro que se situa. Com efeito, Cândido Rolim não só se mantém a par dos debates que problematizam a poesia contemporânea, como também interfere nesse colóquio fazendo aflorar as armas de sua “crítica parcial” (Baudelaire), quer seja via um exercício de análise que é instrumentalizado na forma de resenhas, artigos e ensaios, quer seja via uma difusa metalinguagem com que produz e enerva a sua e a poesia dos seus contemporâneos.

Décio Pignatari argumenta que a música sem-versista nasce com a poesia concreta. O metrônomo do passado e, depois, o versilibrismo das primeiras décadas do século 20, canonizado precocemente, já não mais respondiam às necessidades de expressão do movimento. Pedra Habitada não marca passo em nenhuma espécie de anacronismo, o que seria o caso se repisasse tardiamente a idéia de que o ciclo histórico do verso está encerrado. Por outro lado, não se pode afirmar que seus poemas são estruturados ao redor desse verso livre modernista que a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas. Dir-se-ia que a liberdade da linguagem de Cândido Rolim é potencializada nesta série de poemas sintáticos em que a metáfora é sem fios (isto é, dispensa, por exemplo, a conjunção como, e o é copulativo) e o fragmento transforma o sentido numa sorte de saber derrisório, fronteiriço à aporia. A poesia que se lê entre as capas de Pedra Habitada põe a descoberto um ritmo indeterminado cujas modulações são dadas pelos cortes e pela sintaxe elusiva, pontuada por indecidíveis jogos semânticos. Cada poema, então, pode ser descrito como uma frase fraturada, meditada inclusive de um ponto de vista espacial ou, ainda, como um enunciado que se expande e ao mesmo tempo estanca, oscila, aqui e ali, de maneira a mimetizar o périplo mesmo da leitura: interpretação cega, tateante, engendrada pelo pente-fino insidioso da (pós) modernidade e seu gesto de renúncia à eloqüência do “cálculo total” e que, em contrapartida, esbarra, irônica, na quase intransitividade do inacabado, do resíduo.

No entanto, em olho aquém 2 , paradoxalmente – mais do que em poemas como beijo, atavio e mesmo em flauna, peça num estilo-cummings -, é que identifico tal música sem-versista. Poema como alvo incerto, zona de deslizes operosos, plaquetas tectônicas em sigilosa ruptura. Impossível ao leitor apossar-se de “uma” interpretação forte, última. Ou, por outras, esta metáfora de Wittgenstein: “(...) não existe uma ´última` explicação. É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última casa; pode-se sempre construir uma nova.”

A opção por essa dicção, a um tempo lacunar e pregueada de metáforas-flash, convida-nos a uma repaginação do conhecido (o entorno); percebemos a pesagem meticulosa de palavras e sintagmas, as imagens tributárias de um reino surdo: poesia antes da memória. Os poemas de Pedra Habitada estão mais voltados para a representação da poesia como “mundo da linguagem”. Neste sentido – e tão impertinente quanto necessária talvez seja a seguinte aproximação -, Cândido Rolim parece a princípio dialogar com uma figura mallarmeana, segundo a qual o enunciante do poema é a linguagem ela mesma e não o poeta. Mas, é forçoso cavoucar outras camadas de interpretação com vistas a tornar a fruição estética mais plena. Assim, será razoável também minimizar a pureza mallarmaica na entretela da poesia que nos ocupa, entendê-la como um simples traço indicial, nem maior ou menor que outros, e que, a rigor, não dá conta do essencial, como da mesma forma não atrapalha; enfim, resulta rastro, marca de pegada em areia luminosa. Adiante, quedará apagada por vento e onda. O que na verdade importa destacar é a outra pureza entranhada ao livro de Cândido Rolim. Vejamos, o autor de Un Coup de Dés, reza a anedota, dizia fumar apenas para lançar um pouco de fumaça entre ele e o mundo; aquele “sentido mais puro às palavras da tribo” do poeta francês se resolve como progressiva elusão da “linguagem do mundo”. Já a pureza perseguida, inventada, por Cândido Rolim tem outra densidade. Num desenho provisório: é algo como a pureza natural da linguagem. Utilizo o qualificativo “natural”, apelando ao mesmo matiz de sentido que talvez tenha inspirado Carlos Drummond de Andrade, quando este intitulou um livro seu – que tematiza as muitas formas do enlace sexual – como O Amor Natural. Amor dos cinco sentidos.

Em Pedra Habitada, a pureza da linguagem é mais corpórea, física, que mental. O presente da carne, do barro – a este respeito, notar a insistência com que o substantivo-sema lábio e suas variantes, como metonímia do corpo, comparecem ao longo do livro-projeto. O agora da pedra: lisa, porosa, desejável. Pedra e carne filosofais. Peregrinatio pela nomeação, nascente primária da linguagem. Outra metáfora: poesia pré-platônica, isto é, liberta do compromisso com a verdade, exigido pela república do poder e, portanto, dispensada igualmente de condenar e absolver.

Pedra Habitada: livro-projeto. Obra conceitual. Na condição de antípoda: a brochura de poemas (poesias), coletânea, seleta, etc., sem esquecer as insípidas resenhas da rasura e do elogio fáceis que apenas ratificam a invisibilidade condizente com essas miscelâneas de versos. E a contrapelo, este poema-livro agnóstico, clivado de indagações, iluminações de esboços. Cândido Rolim, como ele mesmo já disse, propõe uma escritura contra a suficiência. Talvez fosse melhor dizer, levando isso em consideração, que Pedra Habitada é um livro-projetado-para; sua proa está voltada para “essa coisa nenhuma de inexaurível segredo” (Ungaretti), ou:
(...) um reino de coisas
interditas
(“começo do silêncio”)
Cândido Rolim, por meio do ensolarado entressorrir de sua linguagem poética, que não capitula ao “nobre rumor”, trespassa, inquiridor, o miolo do velho mito da “nomeação edênica”: cada poema está condenado a recomeçar a aventura da invenção da linguagem?; neste caso, a invenção da linguagem, a coincidência entre nome e coisa supõe a representação do (meu) mundo?; cada poema é o primeiro (ser de linguagem, original), no sentido em que ele seria irredutível ao que quer que seja? O leitor-hermes pervagará à toa e tonalmente em torno a estas e outras questões.

Finalmente, em Pedra Habitada não se verá nem a terra pitoresca, nem a terra devastada dos modernistas históricos. Aqui, o mundo (mais a sua linguagem), o pano de fundo provável, assemelha-se a uma ideografia. Idéia coreografada que consagra a tonalidade filosófico-minimal, algo heraclítica. O oráculo da pedra. A boca, os dentes, metáforas-resumo de um entrecortado córrego corrente: a poesia, de passagem.

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