Solitude, Marina Harris
Segredos da solidãoEm São Paulo tem muita gente só. Segundo pesquisas, há hoje mais de 500 mil lares de solitários. No mundo da metrópole, cada vez mais aumenta o número de pessoas que buscam ficar “na sua”. Conheço muitas. É uma opção de vida.
Aristides era uma delas. Num bar em Santo Amaro, sempre o encontrava, nas horas de pouco movimento, polindo a pedra azulada de mármore desgastada do balcão. No final da noite, quando não havia mais fregueses, sentava numa mesa de ferro e ficava ali, até bem tarde da noite, junto à escada que leva ao banheiro, de cabeça baixa, parecendo fitar num olhar sem fim o reflexo de sua antiga juventude no copo amarelado de conhaque.
Era um faz-tudo, inclusive cozinheiro. Aprendeu no mar a fazer o badejo ou a corvina assados na brasa que até Deus perdoava o pecado da gula. Viera de cidadezinha do litoral do Ceará, onde ainda viviam os pais. O pai era pescador, a mãe cuidava de casa e de uma turma de filhos. Chegou com um amigo num caminhão pau-de-arara. Desceram no Brás. Seu primeiro emprego foi na padaria do bairro, serviço que nunca tinha feito antes em sua terra. Não ganhava muito, mas gostava do lugar quentinho nas noites frias na cidade.
Seus pratos simples, preparados com apuro, eram disputados entre meio-dia e uma hora por esfomeados peões da construção civil e até mesmo metidos executivos engravatados. Se tivesse um pouco de sorte, dividiria a sociedade com o dono do boteco e, em pouco tempo, talvez pudesse figurar entre os donos de restaurante de origem nordestina que começaram como lavadores de pratos e se deram bem em São Paulo.
Em determinada época, era um ser muito triste. O segredo de sua solidão foi o amor não correspondido por uma mulher com quem, um dia, se casara. Conhecera Janice numa confeitaria. Seis meses depois, entre risos e beijos, se uniram na igrejinha localizada ao lado da avenida Santo Amaro.
A mãe da moça foi a grande ausência na cerimônia.
-- A gente já é pobre e você vai se casar com um rapaz mais pobre ainda? – disse à filha na época apaixonada.
Veio a resposta inevitável:
-- O quê que tem? Ele é trabalhador.
-- Sem dinheiro ninguém vale nada hoje – afirmou a mãe com suave crueldade. -- Casar com gente pobre hoje não é bom negócio.
Anos depois de casados, Aristides resolvera deixar Janice e, numa véspera de Ano-Novo, arrumou suas coisas e sumiu no mundo.
Há coisa de duas semanas, encontro com ele numa rua do Itaim Bibi. Com boa aparência e mais falastrão, comentou das dificuldades de morar sob o mesmo teto com a sogra e a própria mulher que viviam cobrando para que ele fosse rico.
-- Fugi das megeras, sim, e por um bom tempo fui viver de novo na minha terra – me contou. – Depois da volta, vivo só e feliz.
Seguimos os dois pela rua Joaquim Floriano. Na esquina com a rua Bandeira Paulista, me despeço. Antes, porém, pergunto por Janice. Ele não responde e, sem olhar para trás, atravessa cauteloso a via tomada de carros. Na calçada ao lado, Aristides se volta e acena com a mão direita. Deu para entender que Janice era, realmente, coisa do passado.
Aristides era uma delas. Num bar em Santo Amaro, sempre o encontrava, nas horas de pouco movimento, polindo a pedra azulada de mármore desgastada do balcão. No final da noite, quando não havia mais fregueses, sentava numa mesa de ferro e ficava ali, até bem tarde da noite, junto à escada que leva ao banheiro, de cabeça baixa, parecendo fitar num olhar sem fim o reflexo de sua antiga juventude no copo amarelado de conhaque.
Era um faz-tudo, inclusive cozinheiro. Aprendeu no mar a fazer o badejo ou a corvina assados na brasa que até Deus perdoava o pecado da gula. Viera de cidadezinha do litoral do Ceará, onde ainda viviam os pais. O pai era pescador, a mãe cuidava de casa e de uma turma de filhos. Chegou com um amigo num caminhão pau-de-arara. Desceram no Brás. Seu primeiro emprego foi na padaria do bairro, serviço que nunca tinha feito antes em sua terra. Não ganhava muito, mas gostava do lugar quentinho nas noites frias na cidade.
Seus pratos simples, preparados com apuro, eram disputados entre meio-dia e uma hora por esfomeados peões da construção civil e até mesmo metidos executivos engravatados. Se tivesse um pouco de sorte, dividiria a sociedade com o dono do boteco e, em pouco tempo, talvez pudesse figurar entre os donos de restaurante de origem nordestina que começaram como lavadores de pratos e se deram bem em São Paulo.
Em determinada época, era um ser muito triste. O segredo de sua solidão foi o amor não correspondido por uma mulher com quem, um dia, se casara. Conhecera Janice numa confeitaria. Seis meses depois, entre risos e beijos, se uniram na igrejinha localizada ao lado da avenida Santo Amaro.
A mãe da moça foi a grande ausência na cerimônia.
-- A gente já é pobre e você vai se casar com um rapaz mais pobre ainda? – disse à filha na época apaixonada.
Veio a resposta inevitável:
-- O quê que tem? Ele é trabalhador.
-- Sem dinheiro ninguém vale nada hoje – afirmou a mãe com suave crueldade. -- Casar com gente pobre hoje não é bom negócio.
Anos depois de casados, Aristides resolvera deixar Janice e, numa véspera de Ano-Novo, arrumou suas coisas e sumiu no mundo.
Há coisa de duas semanas, encontro com ele numa rua do Itaim Bibi. Com boa aparência e mais falastrão, comentou das dificuldades de morar sob o mesmo teto com a sogra e a própria mulher que viviam cobrando para que ele fosse rico.
-- Fugi das megeras, sim, e por um bom tempo fui viver de novo na minha terra – me contou. – Depois da volta, vivo só e feliz.
Seguimos os dois pela rua Joaquim Floriano. Na esquina com a rua Bandeira Paulista, me despeço. Antes, porém, pergunto por Janice. Ele não responde e, sem olhar para trás, atravessa cauteloso a via tomada de carros. Na calçada ao lado, Aristides se volta e acena com a mão direita. Deu para entender que Janice era, realmente, coisa do passado.
Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006, voltado para o público infanto-juvenil), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Para a coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).
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