Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto

Salvador Dali - The outskirts of the city, 1936

Através de Solecidades

Mais do que lance bem urdido de manipulação de linguagem, a palavra-montagem “solecidades”, que serve de título ao livro de estréia de Ronaldo Machado, aponta para a estrutural relação desse poema em parcelas do nosso século, com as falhas - no sentido de “fissuras” -, com os fragmentos e com as errâncias constitutivas das controversas personae poéticas do alto modernismo, localizadas no já recuado século passado.

A título de provocação dialógica, uma sugestão bastante óbvia consistiria em fazer o leitor rememorar que T. S. Eliot abre seu poema fundamental com os versos: “Abril é o mais cruel dos meses, germina/ Lilases da terra morta...”. Enquanto, Ronaldo Machado, inicia o seu Solecidades (Éblis, 2007), assim: “Era maio/ e o cheiro dos maricás/ preenchia a respiração/ amaciando os tecidos”. Mas, já de saída, se nota a diferença de tom de um para o outro: deste lado, temos um ato de “inspiração”, isto é, o pulmão inundado de um ar quase que epicurista; deste outro, um monólogo interior que desde os seus começos parece anunciar a satisfação com o próprio expirar.

No entanto, insistir numa tal “chave de leitura”, não nos permitiria experimentar em toda a sua complexidade o que há de irredutivelmente contemporâneo no livro de Ronaldo e, nem mesmo, trazer à baila impressões ou significados novos ao poema The Waste Land (1922). Aliás, a provocação talvez fosse menos inexata se confrontássemos The Love Song of J. Alfred Prufrock (de 1917 e do mesmo Eliot) com Solecidades.

Com efeito, em ambos os poemas, ressalvados os bits conteudístico-formais - informacionais -, inerentes a cada uma dessas composições, percebe-se na estrutura em travelling dos quadros que se justapõem por meio de uma decupagem sem transições aparentes, uma veladura entre melancólica e cogitadora, de inflexão simbolista, que os aproxima. No entanto, o poeta brasileiro se recusa a uma franca discursividade. Sua enunciação mostra-se mais afeita ao acorde que suspende o tempo, à rarefação e à fratura sintática. No poema de Eliot, defensor da supremacia da voz dramática sobre as vozes lírica e épica, deparamos um discurso que, embora se pretenda não-linear, supõe uma audiência, ou seja, um contato: os seus celibatários. Em contrapartida, Ronaldo, intérprete do pensamento de Paul Valéry, e mallarmeano como ele, às vezes nos faz crer que quem fala em alguns dos seus poemas é a própria linguagem. Portanto, questões comunicativas centradas no destinatário, ao menos aparentemente, seriam desprestigiadas nesses poemas.

A seguir, cito dois trechos do conjunto de Solecidades de Ronaldo Machado, e deixo com o leitor interessado a prazerosa tarefa de consulta ou de retorno ao referido poema de T. S. Eliot - cuja obra é de conhecimento universal -, na expectativa de que ele também reconheça as sutis confluências entre as obras.

Então, vejamos o poema da pág. 19: “de permeio à areia da noite/ metamorfoseio o tempo e o espaço/ de olhos percorridos de hoje até ontem// nove centenas de tentativas/ para apreender a curvatura dos pensamentos/ o pulsar dos sentidos// palimpalavras/ não retêm itinerários, voltas/ nem mesmo começos// pela manhã/ lucidez e sombras acordam em celofanes/ condenadas ao mormaço do dia”. E na pág. 23, um breve poema: “morte embrulha fardos/ sem fatura ou promissória// memórias e suas filhas/ guardam ossos em caixas de fósforo/ baús estalando luz”.

Assim, em Solecidades - não obstante algum crítico solidário se apresse a sublinhar o tanto de seqüência intertextual que contenha, pelos espelhismos que sugere, pelo viés de transculturação com o qual problematiza-se, etc. -, pode-se dizer que Ronaldo Machado estabelece uma interlocução renovada e delicada, à meia voz, menos com os seus mestres do que com as cidades estéticas e éticas erguidas e/ou desossadas por eles. Com efeito, as cidades, quer como ruínas, quer como monumentos sígnicos, estão na base das mitologias da modernidade: Dante e os reinos ínferos; Baudelaire e o poeta trapeiro; James Joyce e a Dublin dos seus pesadelos e idioletos; Oswald de Andrade e o jornal “onde anda todo o presente”; enfim, todos os grandes inventores do cânone literário ocidental leram o livro das metrópoles.

Ronaldo Machado também faz o seu périplo através desses espaços de dissonância e sentido (ou de sua ausência), e sem desligar os pulsos da memória pessoal, mas num registro menos épico, focalizando a atenção nos arrabaldes e em suas “indecifráveis histórias” com um olhar lírico-imagético a percorrer estes “restos da cidade” transliterados a partir dos despojos discursivos de seus precursores. Entretanto, o leitor atento perceberá que Ronaldo lida menos com os topos do que com os tropos: “Na pedra/ palpita a pele abstrata da palavra:/ corpo estendido no vazio” (pág. 16). Em Solecidades, a cidade desmaterializa seu esqueleto feito de passagens, rede de textos-instalações. O poeta incorpora o tom crítico e a lucidez auto-irônica de uma linguagem que negocia e negaceia sua condição de texto relativizador - no sentido forte de pôr-se em relação.

Esboços de uma cartografia, a cidade fraturada de Ronaldo Machado, espécie, ainda, de arredio software (ou de desenho de uma idéia) destilado do seu cânone particular, não deve ser confundida com essa megacidade hard, impraticável máquina do mundo, em cujos centros e periferias nos debatemos mais como reféns do que como cidadãos. Em Solecidades, o poeta afivela a máscara da confissão e diz: “a cidade encardiu meus sapatos novos, feitos para urdir/ carne quebrada, nervo rendido, osso desconjuntado”.

Sob o sol corrosivo da linguagem, “armada de espelhos” (pág. 25), a cidade-metáfora de Ronaldo se deixa nomear e fletir por todos os lados e vielas, e pelas culpas incrustadas no solilóquio desse velho fantasmático que, aparecendo no poema aqui e ali, se inscreve como o herói insolvente de Solecidades - velho que talvez simbolize uma tradição em cheque, ou a esterilidade: o esgotamento a infiltrar-se na precária novidade do agora.

A cidade-metáfora se deixa nomear, inclusive, pelo seu avesso, isto é, submete-se à terra ignota, o mítico interior geográfico. No caso em particular, o pampa representa a contraparte inextrincável compondo o oximoro. “O pampa se esparrama pela cidade”. Pampa, palavra-poema que “mancha a página” da cidade (“simétrico tabuleiro”) com indícios mallarmaicos, e diz-se a si mesmo como metáfora negativa, ao revés, da cidade. Por isso o pampa é “de pedra”, “de granito”. O sema “pedra” representa por metonímia a cidade, sua teia de muros e seu silêncio murmurante.

Solecidades tem um fundador mítico. Ele atende pelo nome de Orlando. É o velho, já referido linhas acima. O simulacro hierático de seu caráter (o “cabelo castanho e basto/ parece pesar-lhe a cabeça”), surge no penúltimo poema do livro. Emparedado no íntimo de sua tumba-biblioteca, cidade dentro da cidade (“...livros sustentam a estante/ de prateleiras vergadas, já digeridas/ no ruído dos cupins”), Orlando invoca Mnemósine e escreve o poema póstumo requerido por sua notória competência. Uma ironia machadiana rasga a “poeira clássica” que impregna a atmosfera espessa do aposento. A maquiagem sobre a máscara mortuária é pesada, teatral. E Ronaldo convida o leitor a participar dessa reflexão a um tempo, risonha e fustigante, ao anagramatizar-se em Orlando; Ronaldo interpreta-o pelo avesso. Vira a casaca do pálido busto. Sistema de citações e de simulações, a metalinguagem desse poema se resolve em esconjuro contra a pretendida imortalidade do esteta beletrista, da criatura que encerraria em si todo o gênio da língua, arremate de um percurso vivencial-textual que muitos gostariam de aplicar ao próprio necrológio. Orlando é caso enterrado.

De outra parte, Ronaldo Machado, através de Solecidades, promove uma interpretação contemporânea de certos dados do legado poético, seja recente, seja remoto, com a intenção de materializar, na vital volatilidade do aqui, esboços inventivos implicados numa tradição em processo.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog poesia-pau.

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