Safe In Dream Garden Painting by Jerry Hanks
Jardim dos sonhos
Já morei em muitos lugares de São Paulo. Na rua Raquela Sinopoli, em São Miguel Paulista, vivi três anos duros, mas felizes. Conhecia os arredores como o quintal de minha antiga casa rural e nem tinha receio de caminhar no meio das ruelas nas madrugadas frias. Volto sempre ali, àquele pedaço do bairro que parece submerso pela sombra da fábrica de química. Anos se passaram e tudo permanece igual. A única grande diferença é apenas o calçamento da rua, que recebeu uma camada fina de asfalto, protegendo seus moradores da poeira ou da lama. A casa onde dormia também recebeu uma camada de tinta amarela, fizeram um galpão escondendo a pequena sala, eliminando de mim pequenas nostalgias.
Fui também um feliz habitante da Bela Vista, nas imediações da Santo Antônio, embora a cidade do lado de cá tivesse outro ritmo. Anos atrás, havia do outro lado da minha rua um grande terreno baldio, cheio de mato. Numa manhã, porém, chegaram caminhões, tratores e operários. Cercaram tudo. Por algum tempo, fiquei sem ver o que faziam, apenas ouvia o enervante barulho de uma possível construção.
Tudo despertava minha curiosidade. Aí, na imaginação de gente interiorana, pensei no melhor. Talvez estivessem querendo fazer um jardim e esse pensamento me deixava muito contente. Sim, um jardim ficaria bem naquele local, principalmente se fossem plantadas muitas árvores, flores e grama. Sim, uma praça que pudesse acomodar os habitantes de tantos prédios que se ergueram ao redor. Pensava ainda que era preciso construir vários bancos para os indispensáveis casais de namorados.
Toda noite, após cumprir as horas profissionais, naquela época na Editora Abril, começava a sonhar com o jardim. Solitário na metrópole, trazia à mente a primeira namorada, Edna, uma professora de olhos claros. Mais velha e naturalmente carinhosa, em sua companhia descansava na grama verde e macia, mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, como noites escuras da rua do Cais, na longínqua cidade de Campo Formoso.
– Vou ensinar para você tudo o que aprendi na minha rica infância – eu dizia para ela no sublime silêncio noturno do jardim. – Mostrarei todas as coisas simples que aprendi quando era menino, quando tudo à minha volta era árvore e flor e grama. Já subiu numa mangueira agarrando os longos galhos quase pousados no chão? Você vai aprender, pois tudo se aprende.
Toda noite sonhava com o jardim. Acreditava até que, pelas grandes dimensões do terreno, ainda haveria lugar para pequenos lagos e, sobre eles, pontes ingênuas e românticas. Sobre elas, os visitantes urbanos poderiam ver cardumes com movimentos ágeis, gulosas e coloridas carpas espelhando na quietude da água cristalina.
Juro que, por muito tempo, já podia ver as crianças do bairro, dos prédios em frente, soltando nos lagos pequenos barcos de brinquedo ou de papel. Já podia até ver mães alegres e despreocupadas com filhos, que corriam nos campos de areia ou de futebol de salão. Imaginava outra a luz do sol, plantas fechadas em seus silêncios.
Numa noite fria, recebo uma querida amiga em meu apartamento. Bebemos vinho e alegria. No silêncio da noite, falamos de coisas agradáveis. Na cama, ela pergunta por que ando tão alegre. Digo que, nos últimos tempos, tenho visto a cidade com outros olhares. Falo de um jardim, que espero em breve nascer quase ao lado do prédio residencial.
– Não acredito que você está falando daquele terreno do outro lado da rua, aqui em frente? – ela pergunta.
– Sim, aquele mesmo.
– Você é tão inocente – ela acaricia meus cabelos.
– Por quê?
– Ali não vai ter jardim nenhum. Ali, tenho certeza, vão erguer oito prédios de apartamentos – e ri da minha tola esperança.
– Tem certeza? – ainda duvido.
– Sinto muito, meu querido, mas a vida é assim – ela afirma depois de beber um gole da bebida.
Bebo também mais um pouco de vinho. Cubro a amiga com o cobertor, enquanto acaricio seu corpo. Naquela noite, ao adormecer ao lado de Lúcia, o cronista havia prometido acreditar por mais algum tempo no jardim dos sonhos, embora me sentisse, naquela hora, bestamente sentimental.
Já morei em muitos lugares de São Paulo. Na rua Raquela Sinopoli, em São Miguel Paulista, vivi três anos duros, mas felizes. Conhecia os arredores como o quintal de minha antiga casa rural e nem tinha receio de caminhar no meio das ruelas nas madrugadas frias. Volto sempre ali, àquele pedaço do bairro que parece submerso pela sombra da fábrica de química. Anos se passaram e tudo permanece igual. A única grande diferença é apenas o calçamento da rua, que recebeu uma camada fina de asfalto, protegendo seus moradores da poeira ou da lama. A casa onde dormia também recebeu uma camada de tinta amarela, fizeram um galpão escondendo a pequena sala, eliminando de mim pequenas nostalgias.
Fui também um feliz habitante da Bela Vista, nas imediações da Santo Antônio, embora a cidade do lado de cá tivesse outro ritmo. Anos atrás, havia do outro lado da minha rua um grande terreno baldio, cheio de mato. Numa manhã, porém, chegaram caminhões, tratores e operários. Cercaram tudo. Por algum tempo, fiquei sem ver o que faziam, apenas ouvia o enervante barulho de uma possível construção.
Tudo despertava minha curiosidade. Aí, na imaginação de gente interiorana, pensei no melhor. Talvez estivessem querendo fazer um jardim e esse pensamento me deixava muito contente. Sim, um jardim ficaria bem naquele local, principalmente se fossem plantadas muitas árvores, flores e grama. Sim, uma praça que pudesse acomodar os habitantes de tantos prédios que se ergueram ao redor. Pensava ainda que era preciso construir vários bancos para os indispensáveis casais de namorados.
Toda noite, após cumprir as horas profissionais, naquela época na Editora Abril, começava a sonhar com o jardim. Solitário na metrópole, trazia à mente a primeira namorada, Edna, uma professora de olhos claros. Mais velha e naturalmente carinhosa, em sua companhia descansava na grama verde e macia, mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, como noites escuras da rua do Cais, na longínqua cidade de Campo Formoso.
– Vou ensinar para você tudo o que aprendi na minha rica infância – eu dizia para ela no sublime silêncio noturno do jardim. – Mostrarei todas as coisas simples que aprendi quando era menino, quando tudo à minha volta era árvore e flor e grama. Já subiu numa mangueira agarrando os longos galhos quase pousados no chão? Você vai aprender, pois tudo se aprende.
Toda noite sonhava com o jardim. Acreditava até que, pelas grandes dimensões do terreno, ainda haveria lugar para pequenos lagos e, sobre eles, pontes ingênuas e românticas. Sobre elas, os visitantes urbanos poderiam ver cardumes com movimentos ágeis, gulosas e coloridas carpas espelhando na quietude da água cristalina.
Juro que, por muito tempo, já podia ver as crianças do bairro, dos prédios em frente, soltando nos lagos pequenos barcos de brinquedo ou de papel. Já podia até ver mães alegres e despreocupadas com filhos, que corriam nos campos de areia ou de futebol de salão. Imaginava outra a luz do sol, plantas fechadas em seus silêncios.
Numa noite fria, recebo uma querida amiga em meu apartamento. Bebemos vinho e alegria. No silêncio da noite, falamos de coisas agradáveis. Na cama, ela pergunta por que ando tão alegre. Digo que, nos últimos tempos, tenho visto a cidade com outros olhares. Falo de um jardim, que espero em breve nascer quase ao lado do prédio residencial.
– Não acredito que você está falando daquele terreno do outro lado da rua, aqui em frente? – ela pergunta.
– Sim, aquele mesmo.
– Você é tão inocente – ela acaricia meus cabelos.
– Por quê?
– Ali não vai ter jardim nenhum. Ali, tenho certeza, vão erguer oito prédios de apartamentos – e ri da minha tola esperança.
– Tem certeza? – ainda duvido.
– Sinto muito, meu querido, mas a vida é assim – ela afirma depois de beber um gole da bebida.
Bebo também mais um pouco de vinho. Cubro a amiga com o cobertor, enquanto acaricio seu corpo. Naquela noite, ao adormecer ao lado de Lúcia, o cronista havia prometido acreditar por mais algum tempo no jardim dos sonhos, embora me sentisse, naquela hora, bestamente sentimental.
Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006, voltado para o público infanto-juvenil), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Para a coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).
1 comment:
Ao ler esta crônica, senti a mesma nostalgia vivida por Roniwalter, quando ele reporta-se a sua infância no interior. Eu que, assim como ele, sou dali pertinho de Campo Formoso. Da minha querida Carnaíba, distrito de Pindobaçu. Abraços, companheiro!
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