River Hunt - Peace (2009) |
Observador de rios
De repente, os dois deixaram de se ver. Ela, atarefada pelo trabalho, chegava sempre tarde da noite no apartamento alugado. Ouvia música na sala em volume bem baixo, ora buscava com raiva os destroços do silêncio. Ele, também cheio de compromissos, esquecia ou queria esquecer-se de tudo e tardava na hora de chegar em casa. Também nos fins de semana, os dois não mais se viam.
Ela ficava no apartamento e, quando cansava de ler ou de ficar em frente à televisão, cuidava das plantas medicinais que cultivava num vaso de madeira na sacada do apartamento.
Ele pegava o carro bem cedo e, nas manhãs de sábado, dirigia pela rodovia Ayrton Senna, depois Dutra, até o centro de Jacareí. Sentava-se à mesa do restaurante Beira-Rio, ao lado do rio Paraíba do Sul, e ficava observando a paisagem já urbana, mas tranqüilizadora pela presença do curso d’água. Embora já mostrando sinais de poluição -- teria peixes? --, o rio possuía uma vegetação rasteira de moitas de capim e flores, onde às vezes surgiam filhotes de capivaras brincalhonas, mas arredias com a presença humana. Corriam pela beirada do rio. Depois, apareciam mais à frente, ainda na margem, para tomar sol.
Ele voltava já de madrugada e dormia até o começo da tarde de domingo. Ela havia tomado o rumo da casa materna e, na segunda-feira, ia direto para o trabalho.
Toda manhã, fazendo sol ou chuva, ele acompanhava pelas marginais a trajetória do rio Tietê e, depois, a do rio Pinheiros. Embora com águas tão sujas quanto as do Tietê, no Pinheiros sempre via sinais de vida. Ele sabia que à sombra de uma torre de energia elétrica na Usina da Traição viviam centenas de preás, espécie de mamíferos roedores da família dos cavídeos, conforme aprendeu na enciclopédia. Antes, habitavam em tocas do outro lado do rio. Migraram todos, buscando o sossego da Usina. No outro lado, os meninos de uma antiga favela os caçavam para comer.
Nesse tempo, ele viu uma capivara, também da família dos preás, e considerada o maior dos roedores atuais, enfrentando as águas poluídas do Tietê. Depois, o animal descansou nas proximidades da ponte do Piqueri. Fugidia, mergulhou no rio em direção ao Pinheiros.
Ele se lembra disso tudo ao ver fotos recentes num jornal popular que mostram um casal de capivaras e quatro filhotes às margens do rio na altura da ponte Cidade Jardim. O jornal diz que “seu habitat natural é no Oeste paulista, onde costumam multiplicar-se nas barrancas dos rios.”
O que buscam em São Paulo? Fogem em busca de melhores dias?
Na verdade, ele desconhece o nível de inteligência das capivaras, mas pensa que a liberdade e o sonho valem tudo. Provavelmente buscavam o desejo, também entranhado nele, de muitos paulistanos.
Agora, ele nem pensa mais na ex-mulher, já separados há anos. Ele sabe apenas que ela mora no bairro da Vila Madalena, junto com a mãe, e aos sábados freqüenta a feira da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde compra bugigangas e coleciona réplicas de cavalos-marinhos
De repente, os dois deixaram de se ver. Ela, atarefada pelo trabalho, chegava sempre tarde da noite no apartamento alugado. Ouvia música na sala em volume bem baixo, ora buscava com raiva os destroços do silêncio. Ele, também cheio de compromissos, esquecia ou queria esquecer-se de tudo e tardava na hora de chegar em casa. Também nos fins de semana, os dois não mais se viam.
Ela ficava no apartamento e, quando cansava de ler ou de ficar em frente à televisão, cuidava das plantas medicinais que cultivava num vaso de madeira na sacada do apartamento.
Ele pegava o carro bem cedo e, nas manhãs de sábado, dirigia pela rodovia Ayrton Senna, depois Dutra, até o centro de Jacareí. Sentava-se à mesa do restaurante Beira-Rio, ao lado do rio Paraíba do Sul, e ficava observando a paisagem já urbana, mas tranqüilizadora pela presença do curso d’água. Embora já mostrando sinais de poluição -- teria peixes? --, o rio possuía uma vegetação rasteira de moitas de capim e flores, onde às vezes surgiam filhotes de capivaras brincalhonas, mas arredias com a presença humana. Corriam pela beirada do rio. Depois, apareciam mais à frente, ainda na margem, para tomar sol.
Ele voltava já de madrugada e dormia até o começo da tarde de domingo. Ela havia tomado o rumo da casa materna e, na segunda-feira, ia direto para o trabalho.
Toda manhã, fazendo sol ou chuva, ele acompanhava pelas marginais a trajetória do rio Tietê e, depois, a do rio Pinheiros. Embora com águas tão sujas quanto as do Tietê, no Pinheiros sempre via sinais de vida. Ele sabia que à sombra de uma torre de energia elétrica na Usina da Traição viviam centenas de preás, espécie de mamíferos roedores da família dos cavídeos, conforme aprendeu na enciclopédia. Antes, habitavam em tocas do outro lado do rio. Migraram todos, buscando o sossego da Usina. No outro lado, os meninos de uma antiga favela os caçavam para comer.
Nesse tempo, ele viu uma capivara, também da família dos preás, e considerada o maior dos roedores atuais, enfrentando as águas poluídas do Tietê. Depois, o animal descansou nas proximidades da ponte do Piqueri. Fugidia, mergulhou no rio em direção ao Pinheiros.
Ele se lembra disso tudo ao ver fotos recentes num jornal popular que mostram um casal de capivaras e quatro filhotes às margens do rio na altura da ponte Cidade Jardim. O jornal diz que “seu habitat natural é no Oeste paulista, onde costumam multiplicar-se nas barrancas dos rios.”
O que buscam em São Paulo? Fogem em busca de melhores dias?
Na verdade, ele desconhece o nível de inteligência das capivaras, mas pensa que a liberdade e o sonho valem tudo. Provavelmente buscavam o desejo, também entranhado nele, de muitos paulistanos.
Agora, ele nem pensa mais na ex-mulher, já separados há anos. Ele sabe apenas que ela mora no bairro da Vila Madalena, junto com a mãe, e aos sábados freqüenta a feira da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde compra bugigangas e coleciona réplicas de cavalos-marinhos
Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006, voltado para o público infanto-juvenil), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Para a coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).
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