sim, é janeiro novamente. mais um ano de espera, mais um ano de convívio com as feras, com o ódio. é o janeiro de sempre a fazer brasas no corpo de um homem já quase desterrado, plantado no chão como uma árvore de acrílico, sem voz. é mais um ano que me vejo acrescentando tempos sem histórias, encurralado como lebre, como observado por um tigre baleado, como uma tartaruga aleijada no asfalto quente. (nos vastos pátios da capital homens em semicírculos absurdos abusam do calor do sol, cientistas encapuzados cortam com bisturi magnético a língua do condenado à prisão perpétua). me sinto como cobra entre cobras, portador de venenos raros, animal encavacado na floresta devastada onde feridas florescem como flores em jardins adubados. sou companheiro de pequenos insetos que tramam conspirações impraticáveis, e me preocupa os rios de lágrimas que continuam a crescer, como o bico molhado do pássaro domesticado que fez meu ombro de morada; me preocupa, o mar de sangue coagulado em cada esquina. sim, é mais um ano de nuvens clandestinas a fazer greves aos astros, mais um ano de despachos e feitiçarias, à espera de tempestades. sim, é janeiro na cidade, e esse janeiro de agora ferve na alma como ferve o latido de um peixe nas ondas do mar, como ferve o bailado dos mendigos que sapateiam nos lagos infetados de esqueletos, como pardais varridos, como as hienas que choram de desgosto nas avenidas. sim, é janeiro, e confesso que já me sinto devorado, iniciando-me no ano mais velho que a tristeza de um velho, sem perspectivas, assim cada vez mais alheio aos mortos e aos vivos, feito louco nessa praça desocupada, esperando a noite chegar e trazer suas estrelas predestinadas, enquanto o sol arde como vinagre na carne viva do peito onde a pele foi impiedosamente arrancada pelo emissário do inimigo. sim, é janeiro na cidade, o mesmo janeiro do ano passado.
[in Contramão, Casa Pyndahýba, São Paulo, 1978]
[in Contramão, Casa Pyndahýba, São Paulo, 1978]
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