Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto

David Dalla Venezia
Revolta e Drogadição Anestésica

Hans Magnus Enzensberger, em ensaio cuja referência já não sei mais onde recuperar, põe em causa a pretensa periculosidade e os índices de subversão por meio dos quais se representa a poesia. E, talvez, como crença nesse meio-entendimento que nos foi legado por Platão – hoje um lugar-comum –, de que o gênero em questão seria perturbador da ordem e que por isso mesmo se justificaria, por exemplo, a expulsão do poeta da república do poder, acabamos por não dar o devido crédito à problematização irônica levantada pelo poeta e crítico cultural alemão. Inclusive porque, ao longo da história, não são raros os episódios, patrocinados pelo estado ou pela sociedade, em que poetas e escritores são submetidos à censura, às perseguições judiciais e políticas, ao exílio, etc.

Segundo Enzensberger, isto não prova, no entanto, o efetivo conteúdo periculoso, insurgente, da linguagem poética, ou artística, contra o pano de fundo do controle social. Na verdade, esses fatos nos revelam como certas superstições, encontráveis à primeira vista, apenas em algumas culturas ditas primitivas, persistem de maneira transformada na trama mental das assim consideradas altas e modernas civilizações. O que se pretende dizer é que os argumentos favoráveis à existência de uma metafísica força explosiva congenial à arte da poesia, capaz de dissolver – se fosse essa a sua intenção –, o objeto representado, são tão questionáveis quanto à “convicção” compartilhada por alguns povos de que o mero ato de deixar-se fotografar significaria a perda, o aniquilamento da alma do indivíduo que posasse, como modelo, para a realização de tal registro.

Ao pôr em cheque a presunção de subversão que se atribui à poesia, Hans Magnus Enzensberger, por meio dessa suspeita irônica, nos convida a fruir as idiossincrasias do gênero a partir de uma dimensão menos altissonante, ou menos ingênua em relação ao seu poder transformador.

Na invenção verbal greco-latina, a imagem da poesia entendida como um discurso quase que definitivo seja de condenação, seja de absolvição de personalidades ou de acontecimentos, pode ser verificada com facilidade. O poeta consagra e dessacraliza, ele se antecipa ao julgamento dos poderes divinos e terrenos, e pretende ler o pensamento de Deus antes de destruí-lo. Algo parecido se dá na poesia oral africana. Na poética peregrina dos griots, por exemplo, esta característica é marcante. O epíteto de “Boca do inferno”, pelo qual também nos referimos ao poeta barroco Gregório de Matos, é exemplar a propósito do assunto aqui discutido.

O poder, a cultura média e as idéias feitas do senso comum reivindicam para a poesia tanto o direito à periculosidade, quanto a condição de “droga estética que paralisa a vontade de resistir”.

Um mundo fundado na palavra grafada – quer pelo calígrafo, quer pelos tipos gutenberguianos –, que admite livros inspirados divinamente, isto é, livros sagrados, é que, ao fim e ao cabo, fez com que superestimássemos a poesia tanto em termos de corrupção e revolta, quanto a partir de uma recepção onde ela surge como drogadição anestésica de fundo alienante.

Finalmente, desde um ponto de vista semiótico, de um lado temos a parataxe da poesia, uma precipitação para a analogia: a arte, a forma, a síntese, etc. De outro, a hipotaxe, seja à direita ou à esquerda do leque ideológico, um pendor para os aspectos lógicos: a ciência, o “conteúdo”, a análise, etc. Em outras palavras, em relação ao policiamento hipotático dos poderes estabelecidos, sempre ciosos de seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não -, a inutilidade da poesia continuará sendo tolerada, mas sempre como linguagem sob suspeição.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog