David Dalla Venezia |
Hans Magnus Enzensberger, em ensaio cuja referência já não sei mais onde recuperar, põe em causa a pretensa periculosidade e os índices de subversão por meio dos quais se representa a poesia. E, talvez, como crença nesse meio-entendimento que nos foi legado por Platão – hoje um lugar-comum –, de que o gênero em questão seria perturbador da ordem e que por isso mesmo se justificaria, por exemplo, a expulsão do poeta da república do poder, acabamos por não dar o devido crédito à problematização irônica levantada pelo poeta e crítico cultural alemão. Inclusive porque, ao longo da história, não são raros os episódios, patrocinados pelo estado ou pela sociedade, em que poetas e escritores são submetidos à censura, às perseguições judiciais e políticas, ao exílio, etc.
Segundo Enzensberger, isto não prova, no entanto, o efetivo conteúdo periculoso, insurgente, da linguagem poética, ou artística, contra o pano de fundo do controle social. Na verdade, esses fatos nos revelam como certas superstições, encontráveis à primeira vista, apenas em algumas culturas ditas primitivas, persistem de maneira transformada na trama mental das assim consideradas altas e modernas civilizações. O que se pretende dizer é que os argumentos favoráveis à existência de uma metafísica força explosiva congenial à arte da poesia, capaz de dissolver – se fosse essa a sua intenção –, o objeto representado, são tão questionáveis quanto à “convicção” compartilhada por alguns povos de que o mero ato de deixar-se fotografar significaria a perda, o aniquilamento da alma do indivíduo que posasse, como modelo, para a realização de tal registro.
Ao pôr em cheque a presunção de subversão que se atribui à poesia, Hans Magnus Enzensberger, por meio dessa suspeita irônica, nos convida a fruir as idiossincrasias do gênero a partir de uma dimensão menos altissonante, ou menos ingênua em relação ao seu poder transformador.
Na invenção verbal greco-latina, a imagem da poesia entendida como um discurso quase que definitivo seja de condenação, seja de absolvição de personalidades ou de acontecimentos, pode ser verificada com facilidade. O poeta consagra e dessacraliza, ele se antecipa ao julgamento dos poderes divinos e terrenos, e pretende ler o pensamento de Deus antes de destruí-lo. Algo parecido se dá na poesia oral africana. Na poética peregrina dos griots, por exemplo, esta característica é marcante. O epíteto de “Boca do inferno”, pelo qual também nos referimos ao poeta barroco Gregório de Matos, é exemplar a propósito do assunto aqui discutido.
O poder, a cultura média e as idéias feitas do senso comum reivindicam para a poesia tanto o direito à periculosidade, quanto a condição de “droga estética que paralisa a vontade de resistir”.
Um mundo fundado na palavra grafada – quer pelo calígrafo, quer pelos tipos gutenberguianos –, que admite livros inspirados divinamente, isto é, livros sagrados, é que, ao fim e ao cabo, fez com que superestimássemos a poesia tanto em termos de corrupção e revolta, quanto a partir de uma recepção onde ela surge como drogadição anestésica de fundo alienante.
Finalmente, desde um ponto de vista semiótico, de um lado temos a parataxe da poesia, uma precipitação para a analogia: a arte, a forma, a síntese, etc. De outro, a hipotaxe, seja à direita ou à esquerda do leque ideológico, um pendor para os aspectos lógicos: a ciência, o “conteúdo”, a análise, etc. Em outras palavras, em relação ao policiamento hipotático dos poderes estabelecidos, sempre ciosos de seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não -, a inutilidade da poesia continuará sendo tolerada, mas sempre como linguagem sob suspeição.
Finalmente, desde um ponto de vista semiótico, de um lado temos a parataxe da poesia, uma precipitação para a analogia: a arte, a forma, a síntese, etc. De outro, a hipotaxe, seja à direita ou à esquerda do leque ideológico, um pendor para os aspectos lógicos: a ciência, o “conteúdo”, a análise, etc. Em outras palavras, em relação ao policiamento hipotático dos poderes estabelecidos, sempre ciosos de seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não -, a inutilidade da poesia continuará sendo tolerada, mas sempre como linguagem sob suspeição.
Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net
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