Penny Kronengold - Green Carousel, Red Riders, 2009. Oil on linen, 13 7/8" x 18" |
Um dos traços da modernidade de Cervantes na composição do Quixote diz respeito à (in)definição de quem narra de fato as aventuras dessa novela paródica dos romances de cavalaria. A multiplicidade de narradores estabelece uma ambiguidade contínua de tempo e de pontos de vista relativamente ao motivo central do livro. O romance moderno inspirado no clássico cervantino leva às últimas consequências, embora sem propor-se a uma resolução, a dúvida de quem seria a voz narrativa. Tal condição impõe ao romance similitudes com o poema moderno.
Paul Valéry, a partir dos ensinamentos de Mallarmé, diz que quem fala no poema é a própria linguagem. Com efeito, em muitos poemas de agora-agora pode-se dizer que nem mesmo uma voz lírica se faz ouvir. Chegamos, por assim dizer, a uma opacidade ou a uma enunciação átona no campo do discurso literário.
No entanto, lendo o livro de Diego Grando, Desencantado carrossel, percebo uma possibilidade expressiva (posto que em andamento) a incorporar tanto o eu lírico das convenções do artesanato poético, quanto essa música calada na e pela linguagem que vem a se constituir em todo o sal do poema de vanguarda, esse espécime refratário ao conto, à narração, enfim, à épica.
Digamos, de modo abreviado, que os poemas de Diego Grando em seu livro de estreia, denunciam um eu lírico (uma voz lírica) que afivela a persona, isto é, fala “através” do it da linguagem. A verdade é a seguinte: as vozes lírica, épica e dramática, não são senão metáforas de processos compositivos, do mesmo modo que a tópica (oriunda do simbolismo lato sensu) da “linguagem que fala por ela mesma” também o é. A voz de Diego Grando se plasma por meio de uma metáfora construtiva; o constructo poético de Desencantado carrossel simula um verismo contemporâneo e pessoal em formação, movimentando-se por entre índices de cotidianos familiares numa grande pequena metrópole fechada em seus muros.
Os poemas evocam o ritmo de um flâneur, mas que gira e bate sola não segundo a mitologia baudelairiana da volúpia e da ordem, e sim em consonância com o “Tempo de ter pressa/ de correr do tempo...”, com “o resmungo dos coletivos”, com “o sinal que era vermelho/ e em seguida ficou verde”, com uma “Vontade de vento/ e velocidade” que deixa para trás o menino. O flâneur que põe em movimento o Desencantado carrossel de Diego Grando é tão trágico quanto os tênis, que ele naturalmente calça, o possam permitir.
Essas breves notas podem chegar ao seguinte desfecho: Desencantado carrossel canta, entre outras coisas, a decadência da infância do ponto de vista da acídia da juventude (sim, ela não confina apenas com o idealismo) que põe em causa o mundo a partir da linguagem. Eis aí minha proposta de leitura, quem quiser que tente outra. Nisto, a estrofe final do poema “Identidade” diz assim: “Covarde, me descobri poeta/ e me tornei pequeno demais para caber no mundo/ e aprendi a remoer as coisas/ de criança”.
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net
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