O Retrato do Sertão – 16
Citado para dar esclarecimentos sobre o assassinato de Sá Lorena, seu Quincas se irritou! O homem virou bicho! Aquela figura pacata e sensata que todos conheciam e admiravam se transformou num déspota. Destratou o Oficial de Justiça, xingando-o de mensageiro, de desastrado e mentiroso... mandatário de filhos-da-puta, que não tem o que fazer... e outros adjetivos que o coitado Oficial de Justiça não quis anotar no relatório, a fim de não incriminá-lo por ofensas morais, já que o conhecia de muitos anos, respeitava-o e o considerava como amigo e protetor. Raivoso, seu Quincas disse que não ia atender merda nenhuma de intimação... Não assinaria nada... e não daria satisfação a esse bosta de Delegado, cujo propósito era deturpar sua vida pública e ameaçá-lo por outros interesse pessoais. Seu Quincas sabia das intenções aleivosas do Delegado.
- Você meu filho - dirigindo-se ao Oficial de Justiça - que conheço há muitos anos desde menininho quando nasceu, nada tem a ver com essa estória. Mas diga para esse imbecil do seu chefe que vou consultar com meus amigos se devo ou não me apresentar. Conversarei com o Prefeito e alguns correligionários da UDN. Depois, decidirei! Vou pensar! Diga ao Delegado que você me encontrou, me intimou e eu recusei assinar essa merda! Escreva como você quiser! Contanto que seja exatamente isso que lhe digo! Acrescente mais... Que vou pensar no que fazer, para esse idiota parar de me encher o saco. Escreva aí que não aguento mais suas insinuações e provocações! Passe bem, meu filho. Deus te abençoe e recomendações a seu pai.
O incorformismo de seu Quincas em não comparecer à delegacia estava relacionado à desconsideração do Delegado que teve seu nome referendado por ele e outros líderes do partido para assumir o cargo de delegado titular no distrito de Laranjeiras. Ele não esperava por essa deslealdade, qualquer que fosse o motivo. Seu Quincas queria que antes ele o avisasse. Coisa que não fez.
- Mais uma vez Zé, esse imbecil come no prato que cospe. Manda me intimar por coisas que nunca fiz. Nunca matei ninguém e nunca mandei matar. Será que esse merda não tem o que fazer na Delegacia? Se o cargo que lhe demos não o faz se ocupar de afazeres que lhe dizem respeito, então que venha trabalhar comigo na fazenda, nos ajudar nos afazeres diários que lhe pagarei muito bem, muito mais do que ele recebe como Delegado. Esse infeliz haverá de se arrepender pelo resto da vida quando não tiver mais ninguém que lhe dê sustentação! Dizia, irritadíssimo, seu Quincas.
Aconselhado por Zé, que a todo instante lhe pedia calma, e acatar pacificamente a citação, finalmente concordou. Antes, porém quis saber se iria como testemunha ou como suspeito... se a citação teria alguma relação com as brigas que tivera com Sá Lorena no passado, ou algo a ver com as rixas e conflitos de interesses de padre Fausto! Informado pelo Oficial de Justiça de que se tratava apenas de uma citação para esclarecer algumas dúvidas que o Delegado tinha sobre a morte de Sá Lorena, se acalmou e concordou em comparecer. Zé iria com ele para fazer-lhe companhia, e se preciso fosse, servi-lhe de testemunha para defendê-lo das provocações insinuosas, eventualmente levantadas pelo Delegado, de quem já não tinha mais confiança.
Confirmado pelo Oficial de Justiça de que sua citação seria apenas para esclarecer algumas dúvidas no envolvimento da morte de Sá Lorena e não das desavenças do passado que tivera com ela e padre Fausto, ele, mesmo constrangido, apesar do aconselhamento de seu fiel escudeiro, resolveu comparecer. No passado, seu Quincas já havia sido indiciado no artigo 161 do Código Penal, por ter deslocado os marcos divisórios de sua propriedade e invadido um pedaço de terra de Sá Lorena, não obstante os processos terem sido arquivados por falta de provas.
Zé e mais três empregados acompanharam seu Quincas até Laranjeiras. O Delegado não estava. Isso o enfureceu ainda mais.
- Cavalgamos dezenas de léguas Zé, e não vou perder meu tempo por uma merda qualquer que não me interessa. Ele que vá para o inferno e pergunte a Tonho... Padre Fausto... dona Elvira... ou mesmo pra Saturnino quem matou Sá Lorena! Pergunte pra quem ele quiser, menos pra mim. Meus processos com ela já foram esclarecidos, arquivados. Nada tenho a ver sobre sua morte!
- Tenha paciência, seu Quincas... Pedia Zé Vaqueiro. Já que estamos aqui, vamos esperar e vê o que o homem quer realmente saber do senhor. Se o senhor não souber coisa alguma sobre a morte de Sá Lorena, como eu acredito que não sabe mesmo, aí sim, concordo que o senhor mande este Delegado para a puta que o pariu! Estou do seu lado, pronto e preparado para o que der e vier!
- Temos coisas mais importante a fazer na fazenda, Zé. Não vou perder meu tempo com picuinhas das brigas que tive com Sá Lorena... Isso faz parte do passado! Ele sabe disso. Está tudo escrito nas porcarias dos inquéritos que ele abriu contra mim, e nada provou! Ele vem me perseguindo desde quando o acusei perante o Conselho Municipal por causa das propinas que ele estava recebendo de dona Elvira para não registrar as ocorrências que as mulheres faziam sobre suas atividades ilegais. Não sei mesmo de nada que possa esclarecer a morte de Sá Lorena! Quem atirou nela... Quem a encurralou... Não sei, Zé. Se soubesse, eu mesmo iria caçar esse maldito assassino e entregá-lo às mãos da Justiça! O Delegado é ele, e não eu! Que pergunte pra padre Fausto, de quem é puxa-saco... prá quem ele quiser, menos prá mim. Nada posso esclarecer sobre esse crime.
Seu Quincas esperou por uma hora na Delegacia por insistência de Zé que lhe pedia calma, até o delegado voltar da investigação que fora fazer na fazenda de coronel José Pereira Lima sobre o tiroteio que culminou na morte de Lampião.
- Boa tarde, seu Quincas. Desculpe-me pela demora. Está tudo bem com o senhor?
- Olha doutor, se não fosse a persistência do Zé para que lhe esperasse, eu já estaria em casa a essa hora cuidando dos bodes, sem sua ajuda, evidentemente!
- Tudo bem, seu Quincas! Desculpe-me!
- Desculpar-se não vai adiantar nada, delegado! O tempo já se foi. Perdi-o, e inutilmente! Qual é o problema dessa vez, o que fiz de errado?
O delegado, preocupado e observando o irritante comportamento de seu Quincas, não teve outra alternativa, senão lhe dizer:
- Agradeço-lhe, sincesaramente por me esperar. Desculpe-me mais muma vez!
- Agradeça a Zé, não a mim que nada lhe devo! Respondeu seu Quincas, cada vez mais irritado.
- Calma, amigo! Não fique nervoso. Apenas, para terminar com esta confusão que me atormenta dia e noite, eu gostaria que o senhor me falasse algumas coisas sobre os entreveros que teve com Sá Lorena no passado... O motivo de tantos processos... Porquê tudo aconteceu... Como aconteceu! Por favor, peço-lhe como amigo, mais uma vez, já que os depoimentos que o senhor prestou no passado se referem a processos arquivados sôbre invasão de terras. Dê-me detalhes, por favor seu Quincas, do seu relacionamento com Sá Lorena para que eu possa ao menos iniciar esse maldito inquérito sobre o assassinato dela.... Como o senhor soube do crime... Quem lhe contou... Qual o motivo que o levou até o sítio de Juvenal e oferecer-lhe dinheiro... Qual sua relação de amizade com a família... etc, etc. Desejo apenas, com todo o respeito e consideração que tenho e sempre tive pelo senhor
do isso que já está me dando dor de cabeça e tirando meu sono. O promotor público não me dá sossêgo... É dia e noite no meu pé... Manda recados para eu comparecer à Promotoria e lhe informar sobre o andamento das investigações, e tudo mais. Não tenho mais paciência e idade para suportar tanta pressão. Tenho muitas dúvidas sobre esse crime. Como o senhor era vizinho de Sá Lorena, e com ela teve relações de amizade conturbadas, e tinha conhecimento do comportamento espúrio dela com certas pessoas, acredito que o senhor poderá esclarecer um pouco este mistério e me ajudar desvendar alguns pontos obscuros, como por exemplo por que o senhor a maltratou, jurou-a de morte, ameaçou incendiar seu sítio... invadir suas terras, conforme depoimentos dela prestados em diversos processos arquivados nessa delegacia!
Seu Quincas visivelmente nervoso, respondeu com rispidez:
- Se está tudo escrito nos processos, não tenho mais nada a declarar. Copie tudo de lá, seu merda!
- Calma, seu Quincas! Não é bem assim... Pedia o Delegado confiante de suas funções. O senhor sempre foi e será meu amigo! Jamais vou me esquecer dos favores que me prestou, notadamente quando fui removido para cá. Foi o senhor que referendou, entre outros líderes minha promoção a Delegado titular. Jamais me esquecerei disso. Nunca, em nenhum momento de minha vida como profissional tergiversei de minhas funções policiais. Jamais tive a intenção de prejudicar-lhe e manchar sua reputação como um dos líderes mais respeitados da região, apesar de suas insinuações registradas contra mim no Conselho Municipal. Nunca tive esse propósito. Quero apenas cumprir minha missão de policial, que em determinados momentos até me prejudicam. O senhor sabe disso!
Após os elogios que acabara de ouvir, seu Quincas mais calmo concordou em falar:
- Em instante algum de minha vida destratei alguém, Delegado. Por mais que Sá Lorena desmerecesse minha amizade e me considerasse seu inimigo, nunca lhe causei mal algum. Nunca na minha vida a jurei de morte. Sempre tratei-a com respeito e dignidade, apesar dela não merecer. Nunca ameacei queimar sua plantação e invadir seu sítio e nem tomar suas terras. São meras subjeções de quem nada provou. As provas terminativas estão explícitas nos processos arquivados que o senhor mesmo acabou de se referir. Desconheço os motivos de sua morte, quem a matou e porque matou! Como desconheço a razão de Lampião ter ordenado seus capangas queimarem sua roça. Não fui eu quem ordenou, e jamais faria isso!
Depôs durante três horas sob o olhar atento do escrivão que tudo anotava. Esclareceu todas as dúvidas que o Delegado precisava. Explicou nos mínimos detalhes os entreveros que tivera com ela no passado. Porém, sobre sua morte nada comentou, porque nada sabia. Apenas num momento mais descontraído, entre um copo e outro de cachaça que delicadamente o Delegado lhe serviu, disse que ouviu comentários que dois moradores de rua que perambulavam pelas redondezas da cidade tinham visto alguém no local do crime. Mas desconhecia essas pessoas.
Não convencido totalmente do depoimento de seu Quincas, o delegado liberou-o. Pediu-lhe, entretanto permissão para avisá-lo antecipadamente, caso fosse necessário ouvi-lo novamente. Mandaria avisá-lo em sua fazenda. Já passava da meia-noite quando seu Quincas deixou a delegacia, puto da vida!
- Não posso aceitar essas besteiras desse delegado imbecil que ajudei trazê-lo para cá, Zé. Ele quer saber sobre coisas que desconheço. Acho até que ele quer me apontar como mandante do assassinato de Sá Lorena, e eu não aceito esse tipo de insinuação. O que ele pensa que é? Esqueceu-se dos favores que lhe fiz? Resmungava seu Quincas, cheio de ódio.
De volta à fazenda, ao passar pela encruzilhada em que Sá Lorena foi assassinada, ouviu alguém lhe chamar.
- ... seu Quincas... seu Quinicas... seu Quincas...
- Você me chamou, Zé?
-Não, não seu Quincas, apenas pigarreei ao ascender o cigarro!
O velho não se conteve. Disse que ouviu alguém lhe chamar. Perguntou aos demais acompanhantes. Todos negaram ter dito qualquer coisa. Curioso e corajoso que era, e convencido de ter ouvido gemidos e alguém lhe chamar pelo nome, apeou do cavalo e ordenou que todos desmontassem. Queria ter certeza de que não estava ficando desvairado!
-Vamos apear aqui sobre esse juazeiro ao lado da cruz de Sá Lorena, enquanto os animais descansam!
Seu Quincas queria ter a certeza de que ouviu alguém lhe chamar. A noite estava escura, calma, sem vento e sem estrelas. Nada se via além dos vagalumes que zumbavam ao redor da cruz. Acendeu o cigarro de palha que pediu para Zé e acostou-se num canto da cerca ouvindo o zumbido dos pirilampos. De repente, o vulto de uma mulher vestida de branco apareceu à sua frente e disse:
- Olá seu Quincas! O senhor me perdoa? Juvenal me disse que foi Tonho quem me matou. Em seguida desapareceu no meio da escuridão.
Homem extremamente cauteloso, católico fervoroso e acostumado às coisas e mistérios do sertão, sem que ninguém notasse sua emoção ordenou que todos montassem em seus cavalos e saíssem daquele lugar o mais depressa possível, que lhe parecia realmente misterioso, conforme lhe havia dito Zé vaqueiro:
- Montemos logo e vamos embora daqui!
Citado para dar esclarecimentos sobre o assassinato de Sá Lorena, seu Quincas se irritou! O homem virou bicho! Aquela figura pacata e sensata que todos conheciam e admiravam se transformou num déspota. Destratou o Oficial de Justiça, xingando-o de mensageiro, de desastrado e mentiroso... mandatário de filhos-da-puta, que não tem o que fazer... e outros adjetivos que o coitado Oficial de Justiça não quis anotar no relatório, a fim de não incriminá-lo por ofensas morais, já que o conhecia de muitos anos, respeitava-o e o considerava como amigo e protetor. Raivoso, seu Quincas disse que não ia atender merda nenhuma de intimação... Não assinaria nada... e não daria satisfação a esse bosta de Delegado, cujo propósito era deturpar sua vida pública e ameaçá-lo por outros interesse pessoais. Seu Quincas sabia das intenções aleivosas do Delegado.
- Você meu filho - dirigindo-se ao Oficial de Justiça - que conheço há muitos anos desde menininho quando nasceu, nada tem a ver com essa estória. Mas diga para esse imbecil do seu chefe que vou consultar com meus amigos se devo ou não me apresentar. Conversarei com o Prefeito e alguns correligionários da UDN. Depois, decidirei! Vou pensar! Diga ao Delegado que você me encontrou, me intimou e eu recusei assinar essa merda! Escreva como você quiser! Contanto que seja exatamente isso que lhe digo! Acrescente mais... Que vou pensar no que fazer, para esse idiota parar de me encher o saco. Escreva aí que não aguento mais suas insinuações e provocações! Passe bem, meu filho. Deus te abençoe e recomendações a seu pai.
O incorformismo de seu Quincas em não comparecer à delegacia estava relacionado à desconsideração do Delegado que teve seu nome referendado por ele e outros líderes do partido para assumir o cargo de delegado titular no distrito de Laranjeiras. Ele não esperava por essa deslealdade, qualquer que fosse o motivo. Seu Quincas queria que antes ele o avisasse. Coisa que não fez.
- Mais uma vez Zé, esse imbecil come no prato que cospe. Manda me intimar por coisas que nunca fiz. Nunca matei ninguém e nunca mandei matar. Será que esse merda não tem o que fazer na Delegacia? Se o cargo que lhe demos não o faz se ocupar de afazeres que lhe dizem respeito, então que venha trabalhar comigo na fazenda, nos ajudar nos afazeres diários que lhe pagarei muito bem, muito mais do que ele recebe como Delegado. Esse infeliz haverá de se arrepender pelo resto da vida quando não tiver mais ninguém que lhe dê sustentação! Dizia, irritadíssimo, seu Quincas.
Aconselhado por Zé, que a todo instante lhe pedia calma, e acatar pacificamente a citação, finalmente concordou. Antes, porém quis saber se iria como testemunha ou como suspeito... se a citação teria alguma relação com as brigas que tivera com Sá Lorena no passado, ou algo a ver com as rixas e conflitos de interesses de padre Fausto! Informado pelo Oficial de Justiça de que se tratava apenas de uma citação para esclarecer algumas dúvidas que o Delegado tinha sobre a morte de Sá Lorena, se acalmou e concordou em comparecer. Zé iria com ele para fazer-lhe companhia, e se preciso fosse, servi-lhe de testemunha para defendê-lo das provocações insinuosas, eventualmente levantadas pelo Delegado, de quem já não tinha mais confiança.
Confirmado pelo Oficial de Justiça de que sua citação seria apenas para esclarecer algumas dúvidas no envolvimento da morte de Sá Lorena e não das desavenças do passado que tivera com ela e padre Fausto, ele, mesmo constrangido, apesar do aconselhamento de seu fiel escudeiro, resolveu comparecer. No passado, seu Quincas já havia sido indiciado no artigo 161 do Código Penal, por ter deslocado os marcos divisórios de sua propriedade e invadido um pedaço de terra de Sá Lorena, não obstante os processos terem sido arquivados por falta de provas.
Zé e mais três empregados acompanharam seu Quincas até Laranjeiras. O Delegado não estava. Isso o enfureceu ainda mais.
- Cavalgamos dezenas de léguas Zé, e não vou perder meu tempo por uma merda qualquer que não me interessa. Ele que vá para o inferno e pergunte a Tonho... Padre Fausto... dona Elvira... ou mesmo pra Saturnino quem matou Sá Lorena! Pergunte pra quem ele quiser, menos pra mim. Meus processos com ela já foram esclarecidos, arquivados. Nada tenho a ver sobre sua morte!
- Tenha paciência, seu Quincas... Pedia Zé Vaqueiro. Já que estamos aqui, vamos esperar e vê o que o homem quer realmente saber do senhor. Se o senhor não souber coisa alguma sobre a morte de Sá Lorena, como eu acredito que não sabe mesmo, aí sim, concordo que o senhor mande este Delegado para a puta que o pariu! Estou do seu lado, pronto e preparado para o que der e vier!
- Temos coisas mais importante a fazer na fazenda, Zé. Não vou perder meu tempo com picuinhas das brigas que tive com Sá Lorena... Isso faz parte do passado! Ele sabe disso. Está tudo escrito nas porcarias dos inquéritos que ele abriu contra mim, e nada provou! Ele vem me perseguindo desde quando o acusei perante o Conselho Municipal por causa das propinas que ele estava recebendo de dona Elvira para não registrar as ocorrências que as mulheres faziam sobre suas atividades ilegais. Não sei mesmo de nada que possa esclarecer a morte de Sá Lorena! Quem atirou nela... Quem a encurralou... Não sei, Zé. Se soubesse, eu mesmo iria caçar esse maldito assassino e entregá-lo às mãos da Justiça! O Delegado é ele, e não eu! Que pergunte pra padre Fausto, de quem é puxa-saco... prá quem ele quiser, menos prá mim. Nada posso esclarecer sobre esse crime.
Seu Quincas esperou por uma hora na Delegacia por insistência de Zé que lhe pedia calma, até o delegado voltar da investigação que fora fazer na fazenda de coronel José Pereira Lima sobre o tiroteio que culminou na morte de Lampião.
- Boa tarde, seu Quincas. Desculpe-me pela demora. Está tudo bem com o senhor?
- Olha doutor, se não fosse a persistência do Zé para que lhe esperasse, eu já estaria em casa a essa hora cuidando dos bodes, sem sua ajuda, evidentemente!
- Tudo bem, seu Quincas! Desculpe-me!
- Desculpar-se não vai adiantar nada, delegado! O tempo já se foi. Perdi-o, e inutilmente! Qual é o problema dessa vez, o que fiz de errado?
O delegado, preocupado e observando o irritante comportamento de seu Quincas, não teve outra alternativa, senão lhe dizer:
- Agradeço-lhe, sincesaramente por me esperar. Desculpe-me mais muma vez!
- Agradeça a Zé, não a mim que nada lhe devo! Respondeu seu Quincas, cada vez mais irritado.
- Calma, amigo! Não fique nervoso. Apenas, para terminar com esta confusão que me atormenta dia e noite, eu gostaria que o senhor me falasse algumas coisas sobre os entreveros que teve com Sá Lorena no passado... O motivo de tantos processos... Porquê tudo aconteceu... Como aconteceu! Por favor, peço-lhe como amigo, mais uma vez, já que os depoimentos que o senhor prestou no passado se referem a processos arquivados sôbre invasão de terras. Dê-me detalhes, por favor seu Quincas, do seu relacionamento com Sá Lorena para que eu possa ao menos iniciar esse maldito inquérito sobre o assassinato dela.... Como o senhor soube do crime... Quem lhe contou... Qual o motivo que o levou até o sítio de Juvenal e oferecer-lhe dinheiro... Qual sua relação de amizade com a família... etc, etc. Desejo apenas, com todo o respeito e consideração que tenho e sempre tive pelo senhor
do isso que já está me dando dor de cabeça e tirando meu sono. O promotor público não me dá sossêgo... É dia e noite no meu pé... Manda recados para eu comparecer à Promotoria e lhe informar sobre o andamento das investigações, e tudo mais. Não tenho mais paciência e idade para suportar tanta pressão. Tenho muitas dúvidas sobre esse crime. Como o senhor era vizinho de Sá Lorena, e com ela teve relações de amizade conturbadas, e tinha conhecimento do comportamento espúrio dela com certas pessoas, acredito que o senhor poderá esclarecer um pouco este mistério e me ajudar desvendar alguns pontos obscuros, como por exemplo por que o senhor a maltratou, jurou-a de morte, ameaçou incendiar seu sítio... invadir suas terras, conforme depoimentos dela prestados em diversos processos arquivados nessa delegacia!
Seu Quincas visivelmente nervoso, respondeu com rispidez:
- Se está tudo escrito nos processos, não tenho mais nada a declarar. Copie tudo de lá, seu merda!
- Calma, seu Quincas! Não é bem assim... Pedia o Delegado confiante de suas funções. O senhor sempre foi e será meu amigo! Jamais vou me esquecer dos favores que me prestou, notadamente quando fui removido para cá. Foi o senhor que referendou, entre outros líderes minha promoção a Delegado titular. Jamais me esquecerei disso. Nunca, em nenhum momento de minha vida como profissional tergiversei de minhas funções policiais. Jamais tive a intenção de prejudicar-lhe e manchar sua reputação como um dos líderes mais respeitados da região, apesar de suas insinuações registradas contra mim no Conselho Municipal. Nunca tive esse propósito. Quero apenas cumprir minha missão de policial, que em determinados momentos até me prejudicam. O senhor sabe disso!
Após os elogios que acabara de ouvir, seu Quincas mais calmo concordou em falar:
- Em instante algum de minha vida destratei alguém, Delegado. Por mais que Sá Lorena desmerecesse minha amizade e me considerasse seu inimigo, nunca lhe causei mal algum. Nunca na minha vida a jurei de morte. Sempre tratei-a com respeito e dignidade, apesar dela não merecer. Nunca ameacei queimar sua plantação e invadir seu sítio e nem tomar suas terras. São meras subjeções de quem nada provou. As provas terminativas estão explícitas nos processos arquivados que o senhor mesmo acabou de se referir. Desconheço os motivos de sua morte, quem a matou e porque matou! Como desconheço a razão de Lampião ter ordenado seus capangas queimarem sua roça. Não fui eu quem ordenou, e jamais faria isso!
Depôs durante três horas sob o olhar atento do escrivão que tudo anotava. Esclareceu todas as dúvidas que o Delegado precisava. Explicou nos mínimos detalhes os entreveros que tivera com ela no passado. Porém, sobre sua morte nada comentou, porque nada sabia. Apenas num momento mais descontraído, entre um copo e outro de cachaça que delicadamente o Delegado lhe serviu, disse que ouviu comentários que dois moradores de rua que perambulavam pelas redondezas da cidade tinham visto alguém no local do crime. Mas desconhecia essas pessoas.
Não convencido totalmente do depoimento de seu Quincas, o delegado liberou-o. Pediu-lhe, entretanto permissão para avisá-lo antecipadamente, caso fosse necessário ouvi-lo novamente. Mandaria avisá-lo em sua fazenda. Já passava da meia-noite quando seu Quincas deixou a delegacia, puto da vida!
- Não posso aceitar essas besteiras desse delegado imbecil que ajudei trazê-lo para cá, Zé. Ele quer saber sobre coisas que desconheço. Acho até que ele quer me apontar como mandante do assassinato de Sá Lorena, e eu não aceito esse tipo de insinuação. O que ele pensa que é? Esqueceu-se dos favores que lhe fiz? Resmungava seu Quincas, cheio de ódio.
De volta à fazenda, ao passar pela encruzilhada em que Sá Lorena foi assassinada, ouviu alguém lhe chamar.
- ... seu Quincas... seu Quinicas... seu Quincas...
- Você me chamou, Zé?
-Não, não seu Quincas, apenas pigarreei ao ascender o cigarro!
O velho não se conteve. Disse que ouviu alguém lhe chamar. Perguntou aos demais acompanhantes. Todos negaram ter dito qualquer coisa. Curioso e corajoso que era, e convencido de ter ouvido gemidos e alguém lhe chamar pelo nome, apeou do cavalo e ordenou que todos desmontassem. Queria ter certeza de que não estava ficando desvairado!
-Vamos apear aqui sobre esse juazeiro ao lado da cruz de Sá Lorena, enquanto os animais descansam!
Seu Quincas queria ter a certeza de que ouviu alguém lhe chamar. A noite estava escura, calma, sem vento e sem estrelas. Nada se via além dos vagalumes que zumbavam ao redor da cruz. Acendeu o cigarro de palha que pediu para Zé e acostou-se num canto da cerca ouvindo o zumbido dos pirilampos. De repente, o vulto de uma mulher vestida de branco apareceu à sua frente e disse:
- Olá seu Quincas! O senhor me perdoa? Juvenal me disse que foi Tonho quem me matou. Em seguida desapareceu no meio da escuridão.
Homem extremamente cauteloso, católico fervoroso e acostumado às coisas e mistérios do sertão, sem que ninguém notasse sua emoção ordenou que todos montassem em seus cavalos e saíssem daquele lugar o mais depressa possível, que lhe parecia realmente misterioso, conforme lhe havia dito Zé vaqueiro:
- Montemos logo e vamos embora daqui!
José Miranda Filho, ex-Presidente e fundador do PMDB em São Caetano do Sul, Venerável Mestre da Loja Maçônica G. Mazzini (grau 33), é advogado e contador, colabora com o jornal ABC Reporter e atua como Diretor Financeiro do Conselho Gestor do Hospital Benificente São Caetano. Posta no Blog do Miranda.
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