Ilustração enviada pelo autor |
Há pouco fiz uma leitura (farei outras, espero) do livro Vida cachorra de Mariel Reis. O título sugere um autor filiado àquela forma de prosa aderente à tópica da vida-como-ela-é. E inclusive o tratamento dado ao material verbal com que mimetiza a oralidade moldada pela crueldade de certas vidas representadas nos contos, reforça essa sensação de que estamos imersos em definitivo no dédalo dos subúrbios onde a violência já parece ser congenial à geografia humana que aí vive.
Assim, o intrincado das vielas e ruas com que essas cenas nos são apresentadas, o enviesado dos trajetos e becos desembocam à flor das falas e dos depoimentos (no sentido da crônica policial) de muitos personagens de Vida cachorra. Resta, então, um “dizer sem melindres”; e a delicadeza fica reservada à parte, para depois.
Mas, com o perdão do trocadilho, sinto falta, nesta literatura que não capitula ao que quer que seja, de algo como uma “questão Capitu”, ou melhor, nesses contos de Mariel Reis parece não haver chance para a ambiguidade, nem para a dúvida. Em Vida cachorra a ficção resulta deprimida na sua relação crítica com o real. Mariel Reis não quer que o leitor suspeite das imagens e dramas que passam diante de seus olhos. Talvez eu me engane, mas o autor de Vida cachorra vai a contrapelo (e isso não é ruim, nem bom em si mesmo) do que afirma Jorge Luis Borges, ou seja, de que “No tempo real, na história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do esquecimento”.
Neste sentido, arremato essas anotações passageiras ao motivado livro de Mariel Reis com um pensamento de Édouard Glissant que me parece um interessante insumo a propósito do que até aqui se tratou na resenha. Deste modo argumenta o escritor antilhano: “No que concerne às nossas literaturas, no exercício da prosa os escritores acreditam muito facilmente que a descrição do real dá conta desse real. Seria mais ou menos como os pintores que pintam quadros de costumes ou de gênero. Acreditam, dessa maneira, dar conta da realidade. Mas estão completamente enganados, porque ela é outra coisa que não essa aparência. Ora, a poesia até os nossos dias é a única arte que consegue realmente ir além das aparências”.
Por meio da poesia, isto é, por meio da precisão do impreciso, o leitor pode situar a “realidade do real” (ou supor sua irrealidade) num ponto indecidível de sua imaginação; basta que disso suspeite ou que a julgue possível. A par de se prestar a tema literário, a vida, mesmo que cachorra, ainda pode não passar de um sonho.
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net
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