Joice Giacomoni, Olhos |
Tal como os espelhos borgianos, os livros também têm algo de monstruoso, pois, não obstante a esterilidade mallarmaica que os anima ou os justifica diante da ambiguidade da figura do leitor, eles – substitutos precários da cópula –, os livros, são abomináveis não porque multiplicam o número das ilusões de que se servem os homens na tentativa de ratificação de suas personae, mas porque multiplicam o número dos textos no Dédalo da biblioteca.
O conjunto de textos, ou melhor, a narrativa de formulações textuais, Le mot juste, de Roberto Amaral, participa dessa álacre impertinência moderna do livro (que é feito) de livros, tradição que começa ou dá uma passo crucial com o Quijote de Cervantes. Com efeito, há pouco um poeta estava no caminho certo ao cantar e contar que “vão-se os papéis dos inumeráveis volumes, mas ficam os textos”. Desdobram-se as formas de discursos sobre os textos. Leituras. E a leitura, quando motivada por uma apetência, a um só tempo, seletivo-crítica e criativa, é literatura, em sua acepção mais radical. É essa leitura generosa e expropriativa que garante a permanência renovada de certos livros-textos.
No livro de Roberto Amaral, a personagem Denise faz, por assim dizer, esse tipo de leitura – literatura –, já que seu desejo com relação ao objeto livro em nada se assemelha à devoção que um bibliotecário ou um estudioso exigente, por exemplo, dispensam a essa forma tão eficiente quanto remota de encapsular palavras, frases, versículos e conjuntos de parágrafos. Ao contrário desses heróis decadentistas, Denise almeja para si a desmaterialização do livro, isto é, ela conviverá com o livro efemeramente, até que as interpretações que dele se desprendem venham a esbarrar em seu afeto intelectivo e, embora não sejam mais o livro, conservam, todavia, mesmo após o descarte, algo dele. E Denise assim o faz porque considera que essas interpretações e analogias, substituindo-o, jamais se esgotarão num simulacro de capa dura, ou dentro dos limites em que o papel foi talhado. Fazendo uma comparação imperfeita, seria razoável entrevermos o perfil de Denise num bosque, ou nessa espécie de limbo dantesco, ao lado de outros personagens do filme Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut, lendo e entesourando em suas memórias as hesitações de forma e fundo dos clássicos.
Escrever sobre escrever sempre fez parte do repertório universal da literatura. Desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, etc., e chegando até aqui, identificamos essa invariante temática. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em xeque ou em movimento este passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever. Se isso, em termos estéticos, tem futuro? É cedo para saber. Roberto Amaral escreve sobre a leitura e certas indiossincrasias que a fundamentam; investiga um diálogo sem cópula entre dois leitores de lápis em punho. Denise e o leitor que adquire os livros dela num sebo se aproximam por meio de solilóquios hápticos, indiciais. No entanto, não há chance para que o amor e sua aspereza possam arrebatá-los; é como se – também procedendo a outra analogia imperfeita – estivéssemos num filme de Jean-Luc Godard. De ordinário não me interesso pelo entrecho narrativo de novelas e romances, os percalços, as aventuras, nada disso. As palavras com que Roberto Amaral narra as inquietações de Denise e do outro são a própria substância de Le mot juste, e já me bastam. Esse é o resumo tolerável da “história” que o resenhista se permite fazer.
A figura possível para Le mot juste pode ser a do paratexto. “Segundo Gérard Genette, o ‘paratexto’ consiste em toda série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens como anúncios, sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, resenhas, e assim por diante” (apud Umberto Eco). Paratexto: as anotações de punho à margem da mancha gráfica: metapágina do exemplar. O livro de Roberto Amaral forma um compósito de paratextos em espelhismo fragmentário com alguns textos de referência da tradição recente. E entre os prosadores de tal tradição, Borges figura como o autor interpretante (em sentido peirciano), isto é, toda vertigem intertextual a movimentar Le mot juste faz remissões ao escritor argentino.
Em sua estrutura tripartite, formada de maneira clássica por “Prólogo” (partes I e II); “Interregno” (partes III e IV); e “Epílogo”, o autor avança pela vereda borgiana da hiponovela fazendo esse percurso interrompido do ensaio de ficções à ficção de ensaios. Mas, esse fracasso exitoso está pressuposto num dos fragmentos da Parte I, conjunto paratático dos pequenos monólogos de Denise, onde ela, a certa altura, e tendo em vista “a rasa superfície das páginas de um livro” (onde estão depositadas suas rasuras, índices grafológicos de sua pessoa) põe em causa a sua própria realidade quando argumenta sobre a impossibilidade de outro leitor “dar-lhe corpo e alma, sangue e ossos e nervos, pensamentos e sentimentos, por uma via tão indireta como era a da interpretação da interpretação da interpretação”. Pois essa figura reiterativa da interpretação em abismo entrelaça e informa a prosa de Roberto Amaral. Valerianamente o livro gira em torno dele mesmo; se dissipa no próprio constructo de sua escrita; ou, de outra parte, rumina e se constrói de frases e ideias que acabarão por fazê-lo inventar e escrever obras com que se pôs e se põe em relação inovadora.
Assim, em sentido lato, Le mot juste pode ser considerado – e do mesmo modo toda obra que se refere sem reticências à tradição – como um paratexto amplificado e mais complexo, pois é constituinte de sua estrutura narrativa uma interlocução metalinguística com peças literárias que de alguma maneira a explicam, pois lhe são enteriores ou modelares, e que ela, por seu turno, as traduz ou empresta-lhes sentido, afinal, como diz Octavio Paz, o sentido do poema está em outro poema, não necessariamente do mesmo poeta. Como acontece na relação entre original e tradução, onde, segundo Roman Jakobson, temos algo que envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes, as interpretações e os sentidos formam um campo de força a imantar os dois termos que se atritam numa espécie de alternância de campo e contracampo.
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net
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