Filhos do Sertão, de Edmilson Costa |
O Retrato do Sertão - 19
Padre Fausto teve conhecimento da prisão de Juvenal através de amigos que o mantinham informado de todas as atividades do Delegado. Apressadamente se dirigiu à delegacia de polícia para saber as razões de sua prisão. Furioso e descontrolado, foi até a sala do Delegado pedir-lhe explicações.
- Desculpe-me Delegado, mas quero saber o motivo da prisão desse infeliz! Ele já teve a plantação queimada, perdeu tudo o que tinha... a morte da mulher, e ainda tem de ser preso? Não acha que o coitado já sofreu demais? Qual a razão que o senhor tem para decretar sua prisão? Poderia justificar-se?
Recostado na velha espreguiçadeira de piaçava, já desgastada pelo tempo, ao lado da estante de jacarandá repleta de livros jurídicos e velhos exemplares de juristas consagrados, estante esta que servia de divisão entre sua sala e a sala do escrivão, cachimbo pendurado na boca, que gostava de pitar nas tardes livres, o Delegado coçou a barbicha embranquecida pelo tempo e tantos anos de profissão, passou a mão nos poucos cabelos grisalhos que ainda lhes restavam, pensou... pensou... e num tom rancoroso, de quem já estava de saco cheio de ouvir falar da morte de Sá Lorena, gritou:
- Padre, me desculpe, não aguento mais insinuações de quem quer que seja! É o senhor, o Promotor, o Juiz... Juvenal foi detido por ter se evadido logo após o sepultamento de sua mulher e não ter acatado o mandado judicial expedido pelo Juiz de Direito de Laranjeiras. Não fui eu quem o mandou prender! Há mais pessoas interessadas em sua prisão, e não somente eu. Apenas cumpri a ordem do Juiz. Como ele está recolhido à cadeia, vou aproveitar a oportunidade para interrogá-lo mais uma vez, minuciosamente, sobre a morte de sua mulher. Espero que ele me esclareça algumas dúvidas que tenho sobre o assassinato dela. É meu dever esclarecer todos os detalhes deste crime. Desde a noite em que ela foi assassinada... Por que ele fugiu após o enterro... Por que ele não procurou o médico... Por que recusou o auxílio de duas testemunhas, cujos nomes estamos investigando... Já me precavi de tudo. Tomarei calmamente seu depoimento. Não quero complicações para o meu lado. Tudo o que ele disser será na presença do doutor Promotor. Suas declarações serão anexadas ao inquérito. Se o senhor quiser falar com ele, faça-o agora. A liberdade dele, entretanto, está dependendo de Alvará de Soltura, que segundo me disse seu advogado esta manhã, está na mesa do Juiz. Enquanto ele estiver detido, aproveitarei para esclarecer algumas dúvidas, que com certeza ele saberá me dizer. Segundo minha experiência policial padre, ele sabe quem é o autor dos disparos que culminaram na morte de sua mulher. Ele acoberta esse assassino. Tenho absoluta certeza disso! A razão de não querer delatá-lo está relacionada a algum acordo com gente influente da sociedade. Por enquanto, é segredo. Mas tenha certeza, vou descobrir. Só me falta saber as razões desse acobertamento. Desconfio de quem é o autor do crime! Mas isso é confidencial e o interrogado irá confirmar. O senhor saberá, não tenha dúvida disso!
Padre Fausto impaciente e nervoso, pediu ao Delegado permissão para encontrar-se com ele na cela, a sós.
- Filho da puta... o que aconteceu? Deu com a língua nos dentes? Por que lhe prenderam, idiota? Por que fugiu? Precisava se esconder? Esbravejava padre Fausto, fora de si.
-Não sei, padre... foi um momento infeliz. Fiquei sabendo que a polícia estava à minha procura e fugi com medo de ser preso. Mas não contei nada pro Delegado sobre o assassino de Sá Lorena. O senhor pode ficar tranquilo. Jamais teria coragem de denunciar alguém. Direi que não vi o rosto do autor dos disparos. Não tenho como identificá-lo. Afinal, trato é trato.
- Você quer jurar tudo isso perante Deus, através de confissão, e dizer que não sabe quem matou sua mulher?
- Juro! Confesso-me agora e afirmo na fé de Deus e em sua presença que jamais direi qualquer coisa.
Padre Fausto, após tomar a confissão de Juvenal, retirou-se do xadrez, convicto de que Juvenal apontaria Tonho como o autor do crime. A confissão é um ato de fé e sagrado! Rejubilava-se!
Na manhã do domingo seguinte, dia ensolarado e quente, durante a missa das sete horas, padre Fausto proferiu um sermão no qual exortava a população desacreditar de comentários maldosos que se espalhavam pela cidade desferida por dois vagabundos cachacistas, sem mérito, honra e sem moral para serem levados a sério.
- Ninguém tem a virtude de saber a verdade antecipadamente e prever acontecimentos futuros. Esse dom é somente de Deus. Só ele tem poderes para falar, julgar e condenar as pessoas. Lembrem-se do assassinato de Abel. Quem em sã consciência poderia imaginar um delito desses? – Advertia padre Fausto aos fiéis presentes, confiante de que suas preleções pudessem fazer com que os fiéis desacreditassem dos boatos e intrigas que se difundiam pela aí sobre ele. - Quem tem telhado de vidro, não atira pedra no telhado do vizinho, porque o retorno lhe será fatal – pregava, eufórico, e ao mesmo tempo temeroso!
Os fiéis se entreolhavam, desconfiados sem entender coisa alguma. Naquele domingo, todos saíram da Igreja atordoados pelo sermão do Padre. Jamais haviam ouvido palavras tão contundentes e ásperas, como se ele desejasse atingir alguém ou desculpar-se por algo que fizera. Todos tiveram essa impressão.
- Como ele pode querer desculpar-se de uma coisa que ainda não aconteceu? - dizia Maninha às carolas à porta da igreja. - Eu o conheço bem! Na experiência que tenho e na convivência com ele durante esses anos todos, acho que ele quer se livrar de alguma coisa que cometeu. Ele que se cuide, pois sua fama de mulherengo e cachacista já se espalhou á muito tempo pela cidade. Não é de agora!
- A ordem que o Promotor havia dado ao Delegado era para apressar as investigações até descobrir o verdadeiro assassino de Sá Lorena. O Delegado já havia tomado o depoimento de todas as pessoas que se envolveram com Sá Lorena. Até o momento, porém, tinha a certeza de que Juvenal sabia quem era o assassino, contudo não tinha provas suficientes para indiciar alguém, com exceção do próprio Juvenal, por ter fugido. Os depoimentos de seu Quincas foram suficientes para inocentá-lo e excluí-lo do rol dos suspeitos. Algumas dúvidas foram esclarecidas e confirmados por outras testemunhas. Não obstante o Delegado desconsiderar a versão que seu Quincas dera sobre o encontro dele com o fantasma de Sá Lorena, e como não se convencera do testemunho de Tonho, achou prudente observar melhor o comportamento dele. Em trinta e tantos anos de polícia jamais ouvira tamanha besteira.
- Isso é ridículo, dizia, manuseando as folhas do inquérito. Mas investigação é coisa séria. Tem-se que levar tudo em consideração. Se não foi Juvenal quem mais poderia ter motivos para matar essa mulher, meu Deus? - pensava o Delegado envolto em dezenas de mistérios. - E, se foi mesmo Tonho? Motivos ele tinha de sobra, como ele mesmo declarou. Será que não foram os dois roceiros apontados por seu Quincas que lhe avisaram da morte de Sá Lorena? Que motivos eles teriam? Assalto? Quem eram eles?
Como costumava fazer nos finais de semana na venda de Maninha, Esperidião, soldado da polícia local, encostado num canto do balcão, tomava seu aperitivo solitário, quando do outro lado ouviu um sitiante que soube depois chamar-se Firmino, falar para seus companheiros que sabia quem tinha matado Sá Lorena. Era uma noite quente e estrelada, e Esperidião, policial experiente, se aproximou sem se identificar e ofereceu-lhes uma bebida. Entrosou-se no grupo e começaram a beber. Firmino era o mais sóbrio. Depois de um gole e outro, Firmino afirmou para Esperidião que Farinheira e Catingueiro, seus conhecidos tinham visto o assassino de Sá Lorena.
- Eles estavam voltando para casa, quando na bifurcação da estrada de Poços dos Anjos, viram padre Fausto descer da carroça empunhando um fuzil e se acoitar atrás do pé de juazeiro. Disse que o padre zangado queria saber o que eles estavam fazendo àquela hora, naquele lugar - disse Firmino.
Esperidião anotou o endereço de Farinheira e Catingueiro, e levou ao conhecimento do Delegado.
- Seriam eles os dois mateiros a quem seu Quincas se referiu Esperidião? - disse o Delegado, sorridente. Peça ao Getúlio para expedir uma intimação urgente. Você mesmo se encarrega de cumpri-la.
Eles estavam dormindo, curando-se da ressaca da noite anterior quando Esperidião lhes deu a ordem de prisão. Não ofereceram qualquer resistência, apenas pediram para comunicar ao padre Fausto.
Diante do Delegado confirmaram tudo o que o soldado Esperidião ouvira de Firmino. O Delegado tomou o depoimento e mandou comunicar ao padre Fausto sobre a prisão. As dúvidas que tinha para esclarecimento do crime começavam a clarear.
Padre Fausto teve conhecimento da prisão de Juvenal através de amigos que o mantinham informado de todas as atividades do Delegado. Apressadamente se dirigiu à delegacia de polícia para saber as razões de sua prisão. Furioso e descontrolado, foi até a sala do Delegado pedir-lhe explicações.
- Desculpe-me Delegado, mas quero saber o motivo da prisão desse infeliz! Ele já teve a plantação queimada, perdeu tudo o que tinha... a morte da mulher, e ainda tem de ser preso? Não acha que o coitado já sofreu demais? Qual a razão que o senhor tem para decretar sua prisão? Poderia justificar-se?
Recostado na velha espreguiçadeira de piaçava, já desgastada pelo tempo, ao lado da estante de jacarandá repleta de livros jurídicos e velhos exemplares de juristas consagrados, estante esta que servia de divisão entre sua sala e a sala do escrivão, cachimbo pendurado na boca, que gostava de pitar nas tardes livres, o Delegado coçou a barbicha embranquecida pelo tempo e tantos anos de profissão, passou a mão nos poucos cabelos grisalhos que ainda lhes restavam, pensou... pensou... e num tom rancoroso, de quem já estava de saco cheio de ouvir falar da morte de Sá Lorena, gritou:
- Padre, me desculpe, não aguento mais insinuações de quem quer que seja! É o senhor, o Promotor, o Juiz... Juvenal foi detido por ter se evadido logo após o sepultamento de sua mulher e não ter acatado o mandado judicial expedido pelo Juiz de Direito de Laranjeiras. Não fui eu quem o mandou prender! Há mais pessoas interessadas em sua prisão, e não somente eu. Apenas cumpri a ordem do Juiz. Como ele está recolhido à cadeia, vou aproveitar a oportunidade para interrogá-lo mais uma vez, minuciosamente, sobre a morte de sua mulher. Espero que ele me esclareça algumas dúvidas que tenho sobre o assassinato dela. É meu dever esclarecer todos os detalhes deste crime. Desde a noite em que ela foi assassinada... Por que ele fugiu após o enterro... Por que ele não procurou o médico... Por que recusou o auxílio de duas testemunhas, cujos nomes estamos investigando... Já me precavi de tudo. Tomarei calmamente seu depoimento. Não quero complicações para o meu lado. Tudo o que ele disser será na presença do doutor Promotor. Suas declarações serão anexadas ao inquérito. Se o senhor quiser falar com ele, faça-o agora. A liberdade dele, entretanto, está dependendo de Alvará de Soltura, que segundo me disse seu advogado esta manhã, está na mesa do Juiz. Enquanto ele estiver detido, aproveitarei para esclarecer algumas dúvidas, que com certeza ele saberá me dizer. Segundo minha experiência policial padre, ele sabe quem é o autor dos disparos que culminaram na morte de sua mulher. Ele acoberta esse assassino. Tenho absoluta certeza disso! A razão de não querer delatá-lo está relacionada a algum acordo com gente influente da sociedade. Por enquanto, é segredo. Mas tenha certeza, vou descobrir. Só me falta saber as razões desse acobertamento. Desconfio de quem é o autor do crime! Mas isso é confidencial e o interrogado irá confirmar. O senhor saberá, não tenha dúvida disso!
Padre Fausto impaciente e nervoso, pediu ao Delegado permissão para encontrar-se com ele na cela, a sós.
- Filho da puta... o que aconteceu? Deu com a língua nos dentes? Por que lhe prenderam, idiota? Por que fugiu? Precisava se esconder? Esbravejava padre Fausto, fora de si.
-Não sei, padre... foi um momento infeliz. Fiquei sabendo que a polícia estava à minha procura e fugi com medo de ser preso. Mas não contei nada pro Delegado sobre o assassino de Sá Lorena. O senhor pode ficar tranquilo. Jamais teria coragem de denunciar alguém. Direi que não vi o rosto do autor dos disparos. Não tenho como identificá-lo. Afinal, trato é trato.
- Você quer jurar tudo isso perante Deus, através de confissão, e dizer que não sabe quem matou sua mulher?
- Juro! Confesso-me agora e afirmo na fé de Deus e em sua presença que jamais direi qualquer coisa.
Padre Fausto, após tomar a confissão de Juvenal, retirou-se do xadrez, convicto de que Juvenal apontaria Tonho como o autor do crime. A confissão é um ato de fé e sagrado! Rejubilava-se!
Na manhã do domingo seguinte, dia ensolarado e quente, durante a missa das sete horas, padre Fausto proferiu um sermão no qual exortava a população desacreditar de comentários maldosos que se espalhavam pela cidade desferida por dois vagabundos cachacistas, sem mérito, honra e sem moral para serem levados a sério.
- Ninguém tem a virtude de saber a verdade antecipadamente e prever acontecimentos futuros. Esse dom é somente de Deus. Só ele tem poderes para falar, julgar e condenar as pessoas. Lembrem-se do assassinato de Abel. Quem em sã consciência poderia imaginar um delito desses? – Advertia padre Fausto aos fiéis presentes, confiante de que suas preleções pudessem fazer com que os fiéis desacreditassem dos boatos e intrigas que se difundiam pela aí sobre ele. - Quem tem telhado de vidro, não atira pedra no telhado do vizinho, porque o retorno lhe será fatal – pregava, eufórico, e ao mesmo tempo temeroso!
Os fiéis se entreolhavam, desconfiados sem entender coisa alguma. Naquele domingo, todos saíram da Igreja atordoados pelo sermão do Padre. Jamais haviam ouvido palavras tão contundentes e ásperas, como se ele desejasse atingir alguém ou desculpar-se por algo que fizera. Todos tiveram essa impressão.
- Como ele pode querer desculpar-se de uma coisa que ainda não aconteceu? - dizia Maninha às carolas à porta da igreja. - Eu o conheço bem! Na experiência que tenho e na convivência com ele durante esses anos todos, acho que ele quer se livrar de alguma coisa que cometeu. Ele que se cuide, pois sua fama de mulherengo e cachacista já se espalhou á muito tempo pela cidade. Não é de agora!
- A ordem que o Promotor havia dado ao Delegado era para apressar as investigações até descobrir o verdadeiro assassino de Sá Lorena. O Delegado já havia tomado o depoimento de todas as pessoas que se envolveram com Sá Lorena. Até o momento, porém, tinha a certeza de que Juvenal sabia quem era o assassino, contudo não tinha provas suficientes para indiciar alguém, com exceção do próprio Juvenal, por ter fugido. Os depoimentos de seu Quincas foram suficientes para inocentá-lo e excluí-lo do rol dos suspeitos. Algumas dúvidas foram esclarecidas e confirmados por outras testemunhas. Não obstante o Delegado desconsiderar a versão que seu Quincas dera sobre o encontro dele com o fantasma de Sá Lorena, e como não se convencera do testemunho de Tonho, achou prudente observar melhor o comportamento dele. Em trinta e tantos anos de polícia jamais ouvira tamanha besteira.
- Isso é ridículo, dizia, manuseando as folhas do inquérito. Mas investigação é coisa séria. Tem-se que levar tudo em consideração. Se não foi Juvenal quem mais poderia ter motivos para matar essa mulher, meu Deus? - pensava o Delegado envolto em dezenas de mistérios. - E, se foi mesmo Tonho? Motivos ele tinha de sobra, como ele mesmo declarou. Será que não foram os dois roceiros apontados por seu Quincas que lhe avisaram da morte de Sá Lorena? Que motivos eles teriam? Assalto? Quem eram eles?
Como costumava fazer nos finais de semana na venda de Maninha, Esperidião, soldado da polícia local, encostado num canto do balcão, tomava seu aperitivo solitário, quando do outro lado ouviu um sitiante que soube depois chamar-se Firmino, falar para seus companheiros que sabia quem tinha matado Sá Lorena. Era uma noite quente e estrelada, e Esperidião, policial experiente, se aproximou sem se identificar e ofereceu-lhes uma bebida. Entrosou-se no grupo e começaram a beber. Firmino era o mais sóbrio. Depois de um gole e outro, Firmino afirmou para Esperidião que Farinheira e Catingueiro, seus conhecidos tinham visto o assassino de Sá Lorena.
- Eles estavam voltando para casa, quando na bifurcação da estrada de Poços dos Anjos, viram padre Fausto descer da carroça empunhando um fuzil e se acoitar atrás do pé de juazeiro. Disse que o padre zangado queria saber o que eles estavam fazendo àquela hora, naquele lugar - disse Firmino.
Esperidião anotou o endereço de Farinheira e Catingueiro, e levou ao conhecimento do Delegado.
- Seriam eles os dois mateiros a quem seu Quincas se referiu Esperidião? - disse o Delegado, sorridente. Peça ao Getúlio para expedir uma intimação urgente. Você mesmo se encarrega de cumpri-la.
Eles estavam dormindo, curando-se da ressaca da noite anterior quando Esperidião lhes deu a ordem de prisão. Não ofereceram qualquer resistência, apenas pediram para comunicar ao padre Fausto.
Diante do Delegado confirmaram tudo o que o soldado Esperidião ouvira de Firmino. O Delegado tomou o depoimento e mandou comunicar ao padre Fausto sobre a prisão. As dúvidas que tinha para esclarecimento do crime começavam a clarear.
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