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Estudo comparativo entre textos
Poema tirado de uma notícia de jornal - Manuel Bandeira
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Ele gostava de Maria - Beatriz Bracher
Maria aprontava. Bebia, dava escândalo, esbravejava, seguia outro rumo e não ligava para avisar onde estava.
Maria esquecia de buscar o filho na escola, não chegava em casa para o jantar, não estava na casa da mãe, não estava na casa de amigos, e não ligava pra avisar onde estava.
Maria tentava se matar, uma, duas, muitas vezes. E não ligava pra avisar onde estava.
Cada vez que ela não ligava, ele entrava em pânico. Todos procuravam, e Maria voltava.
Ele gostava de Maria porque ela voltava e porque não pedia desculpa.
Na verdade, essa prática comparativa entre as duas lâminas, esse pesar de muitas medidas, visa a situar a linguagem de Bracher (Meu amor, Ed. 34) colocando-a em relação, isto é, relativizando-a em sentido forte. Assim, a elevada voltagem de ineditismo e de radicalismo presentes no texto de Manuel Bandeira (considerando que sua fatura é de meados da década de 1920, período em que o ideário estético modernista enfrentava resistência de lado a lado), pode ser invocada como uma forte matriz compositiva infiltrada no conto-poema da paulistana. Mas a condição de estilema, de paradigma, de insumo, que o poema de Bandeira cumpre nesse possível contraponto com a peça de Bracher, acaba por seqüestrar do jogo desta a novidade e a surpresa necessárias ao sucesso de forma-e-fundo do texto. Em outras palavras, “Ele gostava de Maria”, percorre uma estrada já pavimentada. Os acidentes de percurso foram devidamente mapeados e cadastrados. O serviço facilitado de que se beneficia, pode se voltar contra a sua narrativa no sentido em que nos faz reconhecer nesta um déficit de informação nova. Mas, a prosadora nos dá uma piscadela de olhos, e, cúmplices — num crédito remissivo ao nosso repertório —, lemos com um misto de simpatia e tolerância sua anedota rodriguiana que se sustenta numa dialética de plano e contra-plano com a “notícia tirada do jornal” do poeta. Vejamos algumas convergências estruturais.
Os dois textos começam apresentando os personagens no tempo pretérito: “João Gostoso era carregador de feira-livre...”; “Maria aprontava.”. Seus nomes são paródicos, o dele João Gostoso, é uma alcunha, talvez de um bamba do samba, um apelido que indica em retrospectiva uma biografia de suburbano conquistador amoroso; o dela Maria, cuja área semântica e o senso comum nos fazem lembrar de Amélia, se aplica a uma personagem que cumpre uma rotina (ou uma desrotina) que subverte, no entanto, um destino pressuposto na simbologia do nome recebido pelo rito civil. João Gostoso e Maria estão em rota de colisão com os respectivos destinos que inventaram para si próprios, mas o desenlace das histórias não é o mesmo.
Agora, algumas anotações sobre as divergências, as bifurcações entre os textos: João Gostoso é pobre e mora no morro; Maria é de classe média, tem filho na escola, “amigas”, etc. João Gostoso é um homem só, no momento não é temido nem estimado; Maria tem família, mãe, amizades, mas está cansada de tudo isso. João Gostoso dá cabo da própria vida; Maria cumpre um circulo vicioso mortificante, e se acomoda numa rede algo sádica e perversa de relações emocionais e sociais sem fundo. O desenho rítmico do poema de Manuel Bandeira apresenta maior variação e poderia ser desmembrado em quatro blocos: (1) o primeiro verso onde João Gostoso entra em cena, verso largo, informativo, cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: “...eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo”, e de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva seqüência paronomástica: MoRava/ MoRRo/ núMeRo ; (2) o segundo verso que inicia com “Uma noite...”, e evoca uma preparação, um augúrio, a prefiguração do acontecimento, João Gostoso tomou a sua decisão, agora ele inspira; (3) a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, “Bebeu/ Cantou/ Dançou”, samba-canção-síntese onde João Gostoso, num derradeiro frenesi, sobe, fica alto, para depois cair; finalmente (4) a morte por água, os círculos concêntricos provocados pelo baque surdo, pelo fecho quase à maneira de um haikai — me perdoem os puristas da forma clássica japonesa.
Por seu turno, em “Ele gostava de Maria”, Beatriz Bracher experimenta figuras rítmicas de recorrência, de redundância, mas na perspectiva do estranhamento, de retorno ao mesmo ponto, de repetições de sintagmas, etc. Numa palavra, a narrativa constrói-se em torno da anáfora (sentido dicionário: “repetição de uma palavra ou grupo de palavras no início de duas ou mais frases sucessivas, para enfatizar o termo repetido”). Num ligeiro rastreamento se pode sublinhar a ocorrência do nome-termo Maria (agora um pulso rítmico relativo e relacional) em cada um dos cinco parágrafos do conto; o sintagma “...e não ligava para avisar onde estava...”, reaparece em três parágrafos, e sempre encerrando cada um deles. Dentro dessa condenação à previsibilidade de gestos e modos bipolares, o conto reitera, via linguagem, o desatino da personagem ao materializar suas ações na monótona desinência verbal do pretérito (primeira e terceira conjugações) figurando o modelo de comportamento a que sempre retorna: “Maria aprontava. Bebia, dava escândalo, esbravejava, seguia outro rumo e não ligava para avisar onde estava./ Maria esquecia de buscar o filho na escola, não chegava em casa para o jantar, não estava na casa da mãe, não estava na casa de amigos, e não ligava pra avisar onde estava”. (...). Finalmente, Bracher parece lidar com uma liberdade auto-irônica no que se refere à literatura de gênero. Na linha-epílogo da breve narrativa, a autora aparentemente dá o troco à misoginia, mas fazendo broma dessa questão de fundo por meio de um desenlace que se cerra sobre si mesmo, não nos levando a nenhuma conclusão ou solução mitigadora: “Ele gostava de Maria porque ela voltava e porque não pedia desculpa”. Ponto para a prosadora.
Os dois textos começam apresentando os personagens no tempo pretérito: “João Gostoso era carregador de feira-livre...”; “Maria aprontava.”. Seus nomes são paródicos, o dele João Gostoso, é uma alcunha, talvez de um bamba do samba, um apelido que indica em retrospectiva uma biografia de suburbano conquistador amoroso; o dela Maria, cuja área semântica e o senso comum nos fazem lembrar de Amélia, se aplica a uma personagem que cumpre uma rotina (ou uma desrotina) que subverte, no entanto, um destino pressuposto na simbologia do nome recebido pelo rito civil. João Gostoso e Maria estão em rota de colisão com os respectivos destinos que inventaram para si próprios, mas o desenlace das histórias não é o mesmo.
Agora, algumas anotações sobre as divergências, as bifurcações entre os textos: João Gostoso é pobre e mora no morro; Maria é de classe média, tem filho na escola, “amigas”, etc. João Gostoso é um homem só, no momento não é temido nem estimado; Maria tem família, mãe, amizades, mas está cansada de tudo isso. João Gostoso dá cabo da própria vida; Maria cumpre um circulo vicioso mortificante, e se acomoda numa rede algo sádica e perversa de relações emocionais e sociais sem fundo. O desenho rítmico do poema de Manuel Bandeira apresenta maior variação e poderia ser desmembrado em quatro blocos: (1) o primeiro verso onde João Gostoso entra em cena, verso largo, informativo, cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: “...eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo”, e de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva seqüência paronomástica: MoRava/ MoRRo/ núMeRo ; (2) o segundo verso que inicia com “Uma noite...”, e evoca uma preparação, um augúrio, a prefiguração do acontecimento, João Gostoso tomou a sua decisão, agora ele inspira; (3) a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, “Bebeu/ Cantou/ Dançou”, samba-canção-síntese onde João Gostoso, num derradeiro frenesi, sobe, fica alto, para depois cair; finalmente (4) a morte por água, os círculos concêntricos provocados pelo baque surdo, pelo fecho quase à maneira de um haikai — me perdoem os puristas da forma clássica japonesa.
Por seu turno, em “Ele gostava de Maria”, Beatriz Bracher experimenta figuras rítmicas de recorrência, de redundância, mas na perspectiva do estranhamento, de retorno ao mesmo ponto, de repetições de sintagmas, etc. Numa palavra, a narrativa constrói-se em torno da anáfora (sentido dicionário: “repetição de uma palavra ou grupo de palavras no início de duas ou mais frases sucessivas, para enfatizar o termo repetido”). Num ligeiro rastreamento se pode sublinhar a ocorrência do nome-termo Maria (agora um pulso rítmico relativo e relacional) em cada um dos cinco parágrafos do conto; o sintagma “...e não ligava para avisar onde estava...”, reaparece em três parágrafos, e sempre encerrando cada um deles. Dentro dessa condenação à previsibilidade de gestos e modos bipolares, o conto reitera, via linguagem, o desatino da personagem ao materializar suas ações na monótona desinência verbal do pretérito (primeira e terceira conjugações) figurando o modelo de comportamento a que sempre retorna: “Maria aprontava. Bebia, dava escândalo, esbravejava, seguia outro rumo e não ligava para avisar onde estava./ Maria esquecia de buscar o filho na escola, não chegava em casa para o jantar, não estava na casa da mãe, não estava na casa de amigos, e não ligava pra avisar onde estava”. (...). Finalmente, Bracher parece lidar com uma liberdade auto-irônica no que se refere à literatura de gênero. Na linha-epílogo da breve narrativa, a autora aparentemente dá o troco à misoginia, mas fazendo broma dessa questão de fundo por meio de um desenlace que se cerra sobre si mesmo, não nos levando a nenhuma conclusão ou solução mitigadora: “Ele gostava de Maria porque ela voltava e porque não pedia desculpa”. Ponto para a prosadora.
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