Rupture, by Bryan Dubreuiel |
Distúrbio
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e preparava os pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, roupas trocadas e dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos. Depois cada qual se dedicava aos seus afazeres noturnos. Os meninos às tarefas escolares, eu a um livro e Maria às louças do jantar. A televisão, assistida ou não, permanecia sempre ligada.
Mais adiante havia os banhos de cada um e, por fim, o sono merecido.
Ao homem cabe o trabalho, trazer para a casa o soldo. À esposa a manutenção da ordem do lar, o preparo dos alimentos e o cuidado dos filhos. Aos filhos, o juízo e a responsabilidade nos estudos e na boa condução de sua juventude, que se sabe, sempre propensa a desequilíbrios e disfunções.
Todas as coisas estavam em seu lugar em nossa vida, e a cada qual cabia sua parte. E eu entendia que todos estavam de acordo com a ordem das coisas. Uma família é um mecanismo, como meu pai me ensinou, lição aprendida com meu avô. Há de funcionar com precisão se for bem fornida de insumos, substratos e regras claras, que permitam a correta tração de suas engrenagens.
Maria vinha se queixando, havia algum tempo, que a casa estava muito escura. De fato uma certa penumbra tinha se instalado na casa, e por vezes mal conseguíamos nos ver. Apliquei nova pintura de tinta branca às paredes, resolvendo a questão.
No entanto, Maria prosseguiu reclamando, e me vi obrigado a intervir.
Fui à cozinha, pousei as mãos sobre seus ombros e olhei nos seus olhos, transmitindo-lhe segurança. Expliquei-lhe que aquela escuridão, que a ela parecia excessiva, era mais aparente do que real, e boa parte se devia ao fato de que o inverno tinha vindo com força naquele ano, e que não deveríamos nos preocupar com aquilo, visto que coisas assim, preocupações infundadas, poderiam quebrar a harmonia da casa e induzir ao rompimento dos estatutos do lar, por parte dos meninos.
Maria então se calou, compreendendo que eu estava com a razão, como sempre estivera.
As coisas corriam bem em nossa família, como esperado.
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e passava manteiga nos pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, as roupas trocadas e os dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa, para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos.
Desgraçadamente, como eu bem a alertei, qualquer pequeno lapso pode ser indutor do desvirtuamento, e de fato foi...
Numa manhã, depois que todos havíamos comido nossos pães, tomado nosso leite e escovado nossos dentes, me dirigi à sala e me abaixei para pegar a maleta no canto do sofá menor, junto à parede, como sempre fazia. Foi então que vi o menino mais velho se precipitar e destrancar inadvertidamente a porta que dava acesso à rua. Ainda tentei gritar, alertando-o para que não fizesse tal coisa, mas não houve tempo.
Vi quando a pesada folha rodou nos gonzos se afastando minimamente do batente, deixando entrever o calçamento da rua. Olhei para trás e vi Maria estacionada sob a abóbada do corredor, a boca aberta pronta a proferir a advertência que não proferiu, as mãos paradas no ar num gesto de impedimento.
O menino, conscientizando-se de seu erro, lançou-se contra a porta conseguindo fechá-la. Passou as trancas de aço e o barrote se recostou na madeira, os olhos cheios de medo, lacrimejantes, o peito subindo e descendo. Olhou para mim e para Maria, depois novamente para mim. Ninguém disse palavra alguma.
Então se ouviu um ruído estúpido, descomunal. A casa de repente foi tomada por uma densa escuridão, e sentimos tudo vibrar num sismo poderoso e contínuo.
O distúrbio, eu disse, me segurando pelas coisas. O distúrbio, pai, o distúrbio!, ele gritou, chorando, a cara uma máscara congestionada. Maria, agarrada a mim, baixou a cabeça e escondeu o rosto com as mãos. Nosso menor veio se proteger junto às nossas pernas e ali ficamos por um tempo que não posso precisar.
O tremor produziu a rachadura inicial, que começou a partir da porta e veio ziguezagueando, trincando o chão em uma fenda fina, uma fissura, que se abria estalando como gelo jogado na água, até passar por entre nossos sapatos e desaparecer nas sombras do corredor.
Nunca mais vou me esquecer daquele momento.
O menino mais velho, envergonhado, correu da porta ao nosso encontro. Éramos agora um grupo coeso e forte, mas Maria lembrou que era demasiadamente tarde para isso, o distúrbio já estava instaurado, e eu os abracei com força dizendo que não, não, haveria de ter uma saída.
A rachadura entre nós foi se abrindo, alargando, e o som agora não era mais de gelo trincado, mas de trovão. Pedaços da madeira do assoalho foram sendo tragados, brinquedos dos meninos que se achavam por ali, um tapete, a mesa do telefone, foram engolidos. Não fosse pela fraca luminosidade do dia nublado que se infiltrava pelo teto e pelas paredes partidas, não conseguiríamos nos ver em meio à névoa cinzenta.
Vimo-nos inclinados uns sobre os outros como bêbados, o abismo entre nós, e tivemos que nos soltar para que não caíssemos, e o ruído gutural não permitia mais que ouvíssemos nossos lamentos.
Olhei para baixo e a fenda já revelava um precipício, um vale de sombras que não se via o fundo; e para um lado acabei eu e para o outro Maria e os meninos abraçados a ela, os três ajoelhados; e então ela me olhou nos olhos, profundamente triste, e pareci vê-la balbuciar “o distúrbio, o distúrbio...” e esticou um braço para que nos tocássemos mais uma última vez que fosse, mas nossos dedos, como o dedo de Deus e de Adão no afresco de Michelangelo, não conseguiram se achegar, apartados por uma ínfima distância que começou a aumentar rapidamente quando o ronco e o tremor se tornaram mais fortes.
Acachapado, me detive vendo-os partirem. Agora já éramos partes de continentes distintos, e eles iam pequeninos ao longe, já sem faces, uma massa única, unidos, como um mero borrão silencioso, que logo desapareceu no horizonte.
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e preparava os pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, roupas trocadas e dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos. Depois cada qual se dedicava aos seus afazeres noturnos. Os meninos às tarefas escolares, eu a um livro e Maria às louças do jantar. A televisão, assistida ou não, permanecia sempre ligada.
Mais adiante havia os banhos de cada um e, por fim, o sono merecido.
Ao homem cabe o trabalho, trazer para a casa o soldo. À esposa a manutenção da ordem do lar, o preparo dos alimentos e o cuidado dos filhos. Aos filhos, o juízo e a responsabilidade nos estudos e na boa condução de sua juventude, que se sabe, sempre propensa a desequilíbrios e disfunções.
Todas as coisas estavam em seu lugar em nossa vida, e a cada qual cabia sua parte. E eu entendia que todos estavam de acordo com a ordem das coisas. Uma família é um mecanismo, como meu pai me ensinou, lição aprendida com meu avô. Há de funcionar com precisão se for bem fornida de insumos, substratos e regras claras, que permitam a correta tração de suas engrenagens.
Maria vinha se queixando, havia algum tempo, que a casa estava muito escura. De fato uma certa penumbra tinha se instalado na casa, e por vezes mal conseguíamos nos ver. Apliquei nova pintura de tinta branca às paredes, resolvendo a questão.
No entanto, Maria prosseguiu reclamando, e me vi obrigado a intervir.
Fui à cozinha, pousei as mãos sobre seus ombros e olhei nos seus olhos, transmitindo-lhe segurança. Expliquei-lhe que aquela escuridão, que a ela parecia excessiva, era mais aparente do que real, e boa parte se devia ao fato de que o inverno tinha vindo com força naquele ano, e que não deveríamos nos preocupar com aquilo, visto que coisas assim, preocupações infundadas, poderiam quebrar a harmonia da casa e induzir ao rompimento dos estatutos do lar, por parte dos meninos.
Maria então se calou, compreendendo que eu estava com a razão, como sempre estivera.
As coisas corriam bem em nossa família, como esperado.
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e passava manteiga nos pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, as roupas trocadas e os dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa, para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos.
Desgraçadamente, como eu bem a alertei, qualquer pequeno lapso pode ser indutor do desvirtuamento, e de fato foi...
Numa manhã, depois que todos havíamos comido nossos pães, tomado nosso leite e escovado nossos dentes, me dirigi à sala e me abaixei para pegar a maleta no canto do sofá menor, junto à parede, como sempre fazia. Foi então que vi o menino mais velho se precipitar e destrancar inadvertidamente a porta que dava acesso à rua. Ainda tentei gritar, alertando-o para que não fizesse tal coisa, mas não houve tempo.
Vi quando a pesada folha rodou nos gonzos se afastando minimamente do batente, deixando entrever o calçamento da rua. Olhei para trás e vi Maria estacionada sob a abóbada do corredor, a boca aberta pronta a proferir a advertência que não proferiu, as mãos paradas no ar num gesto de impedimento.
O menino, conscientizando-se de seu erro, lançou-se contra a porta conseguindo fechá-la. Passou as trancas de aço e o barrote se recostou na madeira, os olhos cheios de medo, lacrimejantes, o peito subindo e descendo. Olhou para mim e para Maria, depois novamente para mim. Ninguém disse palavra alguma.
Então se ouviu um ruído estúpido, descomunal. A casa de repente foi tomada por uma densa escuridão, e sentimos tudo vibrar num sismo poderoso e contínuo.
O distúrbio, eu disse, me segurando pelas coisas. O distúrbio, pai, o distúrbio!, ele gritou, chorando, a cara uma máscara congestionada. Maria, agarrada a mim, baixou a cabeça e escondeu o rosto com as mãos. Nosso menor veio se proteger junto às nossas pernas e ali ficamos por um tempo que não posso precisar.
O tremor produziu a rachadura inicial, que começou a partir da porta e veio ziguezagueando, trincando o chão em uma fenda fina, uma fissura, que se abria estalando como gelo jogado na água, até passar por entre nossos sapatos e desaparecer nas sombras do corredor.
Nunca mais vou me esquecer daquele momento.
O menino mais velho, envergonhado, correu da porta ao nosso encontro. Éramos agora um grupo coeso e forte, mas Maria lembrou que era demasiadamente tarde para isso, o distúrbio já estava instaurado, e eu os abracei com força dizendo que não, não, haveria de ter uma saída.
A rachadura entre nós foi se abrindo, alargando, e o som agora não era mais de gelo trincado, mas de trovão. Pedaços da madeira do assoalho foram sendo tragados, brinquedos dos meninos que se achavam por ali, um tapete, a mesa do telefone, foram engolidos. Não fosse pela fraca luminosidade do dia nublado que se infiltrava pelo teto e pelas paredes partidas, não conseguiríamos nos ver em meio à névoa cinzenta.
Vimo-nos inclinados uns sobre os outros como bêbados, o abismo entre nós, e tivemos que nos soltar para que não caíssemos, e o ruído gutural não permitia mais que ouvíssemos nossos lamentos.
Olhei para baixo e a fenda já revelava um precipício, um vale de sombras que não se via o fundo; e para um lado acabei eu e para o outro Maria e os meninos abraçados a ela, os três ajoelhados; e então ela me olhou nos olhos, profundamente triste, e pareci vê-la balbuciar “o distúrbio, o distúrbio...” e esticou um braço para que nos tocássemos mais uma última vez que fosse, mas nossos dedos, como o dedo de Deus e de Adão no afresco de Michelangelo, não conseguiram se achegar, apartados por uma ínfima distância que começou a aumentar rapidamente quando o ronco e o tremor se tornaram mais fortes.
Acachapado, me detive vendo-os partirem. Agora já éramos partes de continentes distintos, e eles iam pequeninos ao longe, já sem faces, uma massa única, unidos, como um mero borrão silencioso, que logo desapareceu no horizonte.
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