M. C. Escher - Development II, 1939 woodcut in brown, grey-green and black, printed from 3 blocks |
A Lagartixa
Deitado, vejo a lagartixa. Não imagino como ela fez para entrar aqui, o fato é que entrou e, enquanto eu lia, na penumbra do abajur, apareceu próxima à cortina.
Uma vez quando eu era menino encontrei uma lagartixa morta, virada de barriga pra cima. Olhei de perto e me espantei de ver que a pele da barriga da lagartixa é semitransparente, possibilitando a gente ver tudo lá dentro, os órgãos, tudo.
E agora estou aqui, vendo a lagartixa.
Deve-se matar as lagartixas? Meu pai dizia que não. Me ensinou que elas são amigas da gente, comem os insetos, são limpas — não andam nos esgotos como as baratas — e não incomodam, ficam sempre no alto. Como aquela ali, que acabou de dar uma corridinha fazendo aqueles eSSes que as lagartixas fazem com o corpo quando correm.
Agora ela está justamente em cima da Vanessa, que é uma pessoa que definitivamente não compreende as lagartixas, e que dorme sem nem supor uma barbaridade dessas. E se a lagartixa despencar do teto será uma gritaria danada, e já são... deixa ver... meia-noite e quarenta e dois.
E ela agora correu de novo, contornou o lustre e parou do outro lado...
Interessante é o modo como as lagartixas estancam a carreira, já reparou? Conseguem parar melhor do que qualquer animal ou carro. Têm bons freios, as lagartixas!
Penso que posso ir até a lavanderia pegar um balde, depois subo na beiradinha da cama e, com uma folha de papel canoada, jogo a lagartixa para dentro do balde, e então será só colocá-la lá fora. Porém, se eu sair daqui para buscar o balde, a lagartixa poderá sumir e eu ficarei pelo resto da noite pensando que ela terá caído na cama e estará no meio dos lençóis ou dentro da fronha; sem falar que a movimentação toda poderá acordar a Vanessa, que me surpreenderá em pé na cama, pelado, com um balde na mão, e, sonada, sem entender nada, quando eu lhe disser “é só uma lagartixa, amor”, dará um pulo daqueles e um berro pior ainda e acordará meio mundo, e depois não dormirá mais achando que as lagartixas assassinas podem ter entrado às centenas no quarto e... enfim, a minha noite viraria um inferno...
Se eu fosse uma lagartixa, gostaria de saber que dei a sorte de entrar na casa de um homem bom e preocupado, cujo pai ensinou que não se pode fazer mal a elas.
Agora ela correu de novo e está sobre a porta, próxima à junção entre teto e armário embutido. Ocorreu-me que se eu não pegar a lagartixa, ainda que seja para depositá-la carinhosamente lá fora, daqui a pouco ela vai sumir e eu não saberei mais a que hora incerta de um dos próximos dias poderei tomar uma lagartixada gelada na careca.
Quanto tempo vive uma lagartixa escondida num quarto?
Bom, o fato é que eu não sou uma lagartixa, e a ideia ridícula de que ela poderia estar achando que sou um cara bom e legal, essa ideia besta me faz perceber que estou com sono e já começando a ficar irritado com esse bicho impertinente que adentrou o meu quarto sem autorização, com sua asquerosa barriga translúcida a esfregar aqueles intestinos de lagartixa por todo o meu teto, e isso me faz ver que não, não preciso ser consciencioso com este ser, e pretendo agora mesmo, antes que a Vanessa acorde — porque ela já está se mexendo muito, talvez pressentindo algo —, me erguer daqui e dar uma boa chinelada nesse pequeno dinossauro folgado, e jogá-la na privada, e que seu Aloisio me desculpe, mas tenho sim uma grande superioridade física e intelectual sobre ela e, opa! Só que... ãhn... correu... ela correu e... Ih, se enfiou num pequeno vão entre o teto e a moldura do armário... Mas sobrou um rabo e...!
Sumiu.
Deitado, vejo a lagartixa. Não imagino como ela fez para entrar aqui, o fato é que entrou e, enquanto eu lia, na penumbra do abajur, apareceu próxima à cortina.
Uma vez quando eu era menino encontrei uma lagartixa morta, virada de barriga pra cima. Olhei de perto e me espantei de ver que a pele da barriga da lagartixa é semitransparente, possibilitando a gente ver tudo lá dentro, os órgãos, tudo.
E agora estou aqui, vendo a lagartixa.
Deve-se matar as lagartixas? Meu pai dizia que não. Me ensinou que elas são amigas da gente, comem os insetos, são limpas — não andam nos esgotos como as baratas — e não incomodam, ficam sempre no alto. Como aquela ali, que acabou de dar uma corridinha fazendo aqueles eSSes que as lagartixas fazem com o corpo quando correm.
Agora ela está justamente em cima da Vanessa, que é uma pessoa que definitivamente não compreende as lagartixas, e que dorme sem nem supor uma barbaridade dessas. E se a lagartixa despencar do teto será uma gritaria danada, e já são... deixa ver... meia-noite e quarenta e dois.
E ela agora correu de novo, contornou o lustre e parou do outro lado...
Interessante é o modo como as lagartixas estancam a carreira, já reparou? Conseguem parar melhor do que qualquer animal ou carro. Têm bons freios, as lagartixas!
Penso que posso ir até a lavanderia pegar um balde, depois subo na beiradinha da cama e, com uma folha de papel canoada, jogo a lagartixa para dentro do balde, e então será só colocá-la lá fora. Porém, se eu sair daqui para buscar o balde, a lagartixa poderá sumir e eu ficarei pelo resto da noite pensando que ela terá caído na cama e estará no meio dos lençóis ou dentro da fronha; sem falar que a movimentação toda poderá acordar a Vanessa, que me surpreenderá em pé na cama, pelado, com um balde na mão, e, sonada, sem entender nada, quando eu lhe disser “é só uma lagartixa, amor”, dará um pulo daqueles e um berro pior ainda e acordará meio mundo, e depois não dormirá mais achando que as lagartixas assassinas podem ter entrado às centenas no quarto e... enfim, a minha noite viraria um inferno...
Se eu fosse uma lagartixa, gostaria de saber que dei a sorte de entrar na casa de um homem bom e preocupado, cujo pai ensinou que não se pode fazer mal a elas.
Agora ela correu de novo e está sobre a porta, próxima à junção entre teto e armário embutido. Ocorreu-me que se eu não pegar a lagartixa, ainda que seja para depositá-la carinhosamente lá fora, daqui a pouco ela vai sumir e eu não saberei mais a que hora incerta de um dos próximos dias poderei tomar uma lagartixada gelada na careca.
Quanto tempo vive uma lagartixa escondida num quarto?
Bom, o fato é que eu não sou uma lagartixa, e a ideia ridícula de que ela poderia estar achando que sou um cara bom e legal, essa ideia besta me faz perceber que estou com sono e já começando a ficar irritado com esse bicho impertinente que adentrou o meu quarto sem autorização, com sua asquerosa barriga translúcida a esfregar aqueles intestinos de lagartixa por todo o meu teto, e isso me faz ver que não, não preciso ser consciencioso com este ser, e pretendo agora mesmo, antes que a Vanessa acorde — porque ela já está se mexendo muito, talvez pressentindo algo —, me erguer daqui e dar uma boa chinelada nesse pequeno dinossauro folgado, e jogá-la na privada, e que seu Aloisio me desculpe, mas tenho sim uma grande superioridade física e intelectual sobre ela e, opa! Só que... ãhn... correu... ela correu e... Ih, se enfiou num pequeno vão entre o teto e a moldura do armário... Mas sobrou um rabo e...!
Sumiu.
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