Abstract Paintings Masterpiece Series |
Onde Não Há Facilidade
Para o leitor, o poema se apresenta, numa primeira aproximação, como que vertido em língua estranha, mas ao mesmo tempo remotamente familiar. Na comunicação poética, a imagem da leitura como algo rente ou similar à operação tradutória se impõe de modo decisivo. A comunicação poética pressupõe certa dose de intraduzibilidade, de hermetismo, a partir de uma condição de limite disciplinador imposto pelo jogo de relações requerido pelo poema. Mas tal dilema – a razoável impenetrabilidade da poesia – se resolve, por outro lado, no momento em que o leitor-poeta assume a responsabilidade pela co-autoria daquele texto, por meio de um gesto de interpretação livre. Espécie de tradução-leitura envolvente convertida em transcriação (para usarmos aqui um conceito de Haroldo de Campos).
É desde esse ponto de vista que me disponho a ler os poemas em processo que Denise Freitas, desde 2010, vem publicando em seu bloghttp://www.sisifosemperdas.blogspot.com/. Com efeito, a menção lateral que faço a um possível tonus hermético a informar a linguagem da poeta não pretende encerrar o assunto a respeito. Inclusive porque o atributo, o mais das vezes, serve antes como classificação pejorativa do que como valência poética a ser considerada a sério. Poetas como Denise Freitas, isto é, de linhagem mallarmaica, cujos poemas empreendem questionamentos sobre os limites da expressão verbal, impondo-lhes a suspeição relativamente ao objeto resultante da nomeação, são advertidos tanto pelo seu formalismo, quanto pela obscuridade de seus escritos; nessas ocasiões o bom senso se fecha na retranca conservadora da inteligibilidade.
Todo poema é forma, por isso mesmo trata-se de uma redundância preconceituosa acusar o poeta de formalista. E todo poema é hermético, primeiro porque seu significado é irredutível àquele leitor que se debruça sobre ele, e, segundo porque tanto emissor quanto receptor, que estabelecem um contato por meio desse canal ambíguo (o poema) também são ambíguos, isto é, eles são afetados pela linguagem de que se servem quando inventam esse singular ato de comunicação incomunicável.
Portanto, mais do que insistir na perspectiva de um esforçado hermetismo contido entre as camadas sígnicas da poesia de Denise Freitas, me parece de maior interesse convidar o leitor a assumir sua condição não digo de hermenêuta (o que seria previsível), mas dehermenauta (o que é mais produtivo para a economia poética), pois talvez desse modo o leitor – como que num périplo – não tema o desafio proposto por Denise Freitas e consiga dizer com a poeta um verso como o que segue: “razão do abismo em que me alço”. Eis aí uma poderosa metáfora para os sentidos cambiantes dos seus poemas. Aliás, já no fragmento de um dos versos da autora – cito: “...percurso onde não há...” –, nos deparamos com essa forma de fracasso exitoso presente tanto no que toca ao dizer poético, como no que toca à sua recepção, pois este “abolido bibelô de inanição sonora” (Stéphane Mallarmé dixit) quando cristalizado em seu relato, isto é, no poema feito e grafado na folha branca, se redime da suposta condição de fracasso comunicativo. O sentido se converte numa conquista e não em algo que o poeta deposita no texto como que num gesto de comiseração ao leitor preguiçoso. Ah, o sentido! Quanto a isso fico com Jacques Derrida, que, expropriando Walter Benjamin, escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é enunciação.”
Denise Freitas dissipa os significados através de uma abreviação e de um senso de lacunas cujos significantes ajustados, às vezes, ao constructo métrico (base sobre a qual a poesia pode ou pôde plasmar-se), e às vezes à música “sem-versista” da fratura (estilema da contemporaneidade), recompõem arranjos semânticos pelas relações de proximidade e contraste estabelecidas. A poeta sabe, felizmente, que tudo se passa de modo inapelável na superfície atritante da linguagem. O hermenauta-modelo dessa poética elusiva educa os seus cinco sentidos num pervagar impreciso por sobre o abismo pelaginoso do discurso poético de Denise Freitas que através de sua vontade de fazer acaba por nos dizer, por exemplo, coisas como: “nem serve silêncio/ imagem qualquer/ toda palavra em negativa/ disposição”; “me acho vestida de sombra/ onde tua mão suspende o dia”; “desdito rasura em ponta de língua/ supondo que seja menos/ outra vez a mesma rota”; “um intervalo triste é/ no que se configura esse vestígio”; “e mais lhe doa/ no modo a desfigurar-se”; “parábola de alguma forma sem pressa”. E transcrevo na íntegra o poema “No fim que o sono desprende”, onde se lê:
não me serve o cansaço
onde se empenhe a todo instante
o triste do tempo
sem julgar o que cabe à pressa
não precisa do imprevisto
o punho apura outra sorte
ora o destino arde ora ressoa
na rua
desfaço o percurso a essa altura
sem lhe avistar início
e quase nada entrego ao dano
Em seu discurso percebe-se a recorrência de uma constelação de palavras-signos, tais como “simulação”, “disfarce”, “equívoco”, “rastro”, “abismo”. Essas verdadeiras metáforas (só por desatenção poderíamos situá-las na categoria de vocábulos) evocam uma sorte de poética da desfiguração (um enublar referencial), da recusa à naturalidade da linguagem e às regras públicas do discurso sobre o qual o verismo do mundo é assentado. A poeta, com agudeza “dulce ductilíssima”, leva a efeito o pouco e o opaco constitutivos do poema enquanto instância negativa sempre prestes a dizer que “medida nenhuma rutila”. Sua poesia instaura sua cadência “no rastro do abismo” branco da página onde o sopro de Denise Freitas se perfaz sem transigir com o tolerável e o fácil.
Para o leitor, o poema se apresenta, numa primeira aproximação, como que vertido em língua estranha, mas ao mesmo tempo remotamente familiar. Na comunicação poética, a imagem da leitura como algo rente ou similar à operação tradutória se impõe de modo decisivo. A comunicação poética pressupõe certa dose de intraduzibilidade, de hermetismo, a partir de uma condição de limite disciplinador imposto pelo jogo de relações requerido pelo poema. Mas tal dilema – a razoável impenetrabilidade da poesia – se resolve, por outro lado, no momento em que o leitor-poeta assume a responsabilidade pela co-autoria daquele texto, por meio de um gesto de interpretação livre. Espécie de tradução-leitura envolvente convertida em transcriação (para usarmos aqui um conceito de Haroldo de Campos).
É desde esse ponto de vista que me disponho a ler os poemas em processo que Denise Freitas, desde 2010, vem publicando em seu bloghttp://www.sisifosemperdas.blogspot.com/. Com efeito, a menção lateral que faço a um possível tonus hermético a informar a linguagem da poeta não pretende encerrar o assunto a respeito. Inclusive porque o atributo, o mais das vezes, serve antes como classificação pejorativa do que como valência poética a ser considerada a sério. Poetas como Denise Freitas, isto é, de linhagem mallarmaica, cujos poemas empreendem questionamentos sobre os limites da expressão verbal, impondo-lhes a suspeição relativamente ao objeto resultante da nomeação, são advertidos tanto pelo seu formalismo, quanto pela obscuridade de seus escritos; nessas ocasiões o bom senso se fecha na retranca conservadora da inteligibilidade.
Todo poema é forma, por isso mesmo trata-se de uma redundância preconceituosa acusar o poeta de formalista. E todo poema é hermético, primeiro porque seu significado é irredutível àquele leitor que se debruça sobre ele, e, segundo porque tanto emissor quanto receptor, que estabelecem um contato por meio desse canal ambíguo (o poema) também são ambíguos, isto é, eles são afetados pela linguagem de que se servem quando inventam esse singular ato de comunicação incomunicável.
Portanto, mais do que insistir na perspectiva de um esforçado hermetismo contido entre as camadas sígnicas da poesia de Denise Freitas, me parece de maior interesse convidar o leitor a assumir sua condição não digo de hermenêuta (o que seria previsível), mas dehermenauta (o que é mais produtivo para a economia poética), pois talvez desse modo o leitor – como que num périplo – não tema o desafio proposto por Denise Freitas e consiga dizer com a poeta um verso como o que segue: “razão do abismo em que me alço”. Eis aí uma poderosa metáfora para os sentidos cambiantes dos seus poemas. Aliás, já no fragmento de um dos versos da autora – cito: “...percurso onde não há...” –, nos deparamos com essa forma de fracasso exitoso presente tanto no que toca ao dizer poético, como no que toca à sua recepção, pois este “abolido bibelô de inanição sonora” (Stéphane Mallarmé dixit) quando cristalizado em seu relato, isto é, no poema feito e grafado na folha branca, se redime da suposta condição de fracasso comunicativo. O sentido se converte numa conquista e não em algo que o poeta deposita no texto como que num gesto de comiseração ao leitor preguiçoso. Ah, o sentido! Quanto a isso fico com Jacques Derrida, que, expropriando Walter Benjamin, escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é enunciação.”
Denise Freitas dissipa os significados através de uma abreviação e de um senso de lacunas cujos significantes ajustados, às vezes, ao constructo métrico (base sobre a qual a poesia pode ou pôde plasmar-se), e às vezes à música “sem-versista” da fratura (estilema da contemporaneidade), recompõem arranjos semânticos pelas relações de proximidade e contraste estabelecidas. A poeta sabe, felizmente, que tudo se passa de modo inapelável na superfície atritante da linguagem. O hermenauta-modelo dessa poética elusiva educa os seus cinco sentidos num pervagar impreciso por sobre o abismo pelaginoso do discurso poético de Denise Freitas que através de sua vontade de fazer acaba por nos dizer, por exemplo, coisas como: “nem serve silêncio/ imagem qualquer/ toda palavra em negativa/ disposição”; “me acho vestida de sombra/ onde tua mão suspende o dia”; “desdito rasura em ponta de língua/ supondo que seja menos/ outra vez a mesma rota”; “um intervalo triste é/ no que se configura esse vestígio”; “e mais lhe doa/ no modo a desfigurar-se”; “parábola de alguma forma sem pressa”. E transcrevo na íntegra o poema “No fim que o sono desprende”, onde se lê:
não me serve o cansaço
onde se empenhe a todo instante
o triste do tempo
sem julgar o que cabe à pressa
não precisa do imprevisto
o punho apura outra sorte
ora o destino arde ora ressoa
na rua
desfaço o percurso a essa altura
sem lhe avistar início
e quase nada entrego ao dano
Em seu discurso percebe-se a recorrência de uma constelação de palavras-signos, tais como “simulação”, “disfarce”, “equívoco”, “rastro”, “abismo”. Essas verdadeiras metáforas (só por desatenção poderíamos situá-las na categoria de vocábulos) evocam uma sorte de poética da desfiguração (um enublar referencial), da recusa à naturalidade da linguagem e às regras públicas do discurso sobre o qual o verismo do mundo é assentado. A poeta, com agudeza “dulce ductilíssima”, leva a efeito o pouco e o opaco constitutivos do poema enquanto instância negativa sempre prestes a dizer que “medida nenhuma rutila”. Sua poesia instaura sua cadência “no rastro do abismo” branco da página onde o sopro de Denise Freitas se perfaz sem transigir com o tolerável e o fácil.
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