Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá

Grant Wood's American Gothic, 1930, Oil on Beaverboard
O mistério da eternidade

Toc, toc, toc.

Bato três vezes sobre o tampo de madeira da mesa antes de iniciar essa história.

Medo, superstição? Bom, há algum tempo li numa revista uma pesquisa sobre milhares de norte-americanos que tinham vivido a experiência de morrer e voltar à vida. Existem inclusive vários livros sobre o assunto e na internet tem vários sites que tratam das NDE - Near Death Experiences, ou Experiências Próximas da Morte.

Numa viagem ao sertão baiano, minha mãe comentou certo dia sobre a amiga, a professora aposentada Marli de Souza Farias, que sofrera um enfarto e, segundo ela, vivia contando coisas do além.

-- A coitada se salvou do coração fraco, mas deve ter perdido o juízo -- concluiu dona Maria.

Sinceramente, não gostava nem de pensar sobre o tema, mas era uma história e tanto, e por dois dias aquilo aguçou a curiosidade. Em passeios na represa formada pelo rio Aipim, em Bananeiras, o caso não me saía da cabeça. Quando olhava as águas límpidas e espelhadas do imenso lago, via submergir o rosto de uma mulher idosa.

Numa tarde, fui ao hospital da cidade próxima, em Senhor do Bonfim, mais para me certificar se Marli era uma doida de pedra ou se ela sentiu, mesmo por alguns minutos, a sensação da eternidade.

Fui. Quando a mulher começou a me contar o seu drama, no princípio não acreditei na veracidade dos fatos. Mas, deitada ali no leito do hospital, ainda com tubos penetrando no nariz, por nenhum momento pensei que era brincadeira. Sim, tivera um enfarto e, por pouco, escapara da morte. Contou-me que foi salva pelo providencial atendimento de seu filho, um cardiologista, que ali passava as férias.

Puxei uma cadeira e sentei ao seu lado. Embora fragilizada, tinha um sorriso sublime nas feição marcada de rugas. O rosto era pálido, pele alva. Falava ainda com dificuldade, mas parecia não se cansar por mais que lhe perguntasse coisas sobre a sua experiência.

Eis o seu relato:

De repente me dei conta de que estava morta. Para confirmar ainda mais o meu pensamento, uma voz fúnebre e fria me disse bem junto ao ouvido esquerdo:

-- Você está morta.

Naquela hora, eu estava caída na cozinha de minha casa. É um cômodo pequeno e minhas pernas ficaram dobradas em contato com o fogão. Queria dar um grito lancinante, mas nada saía de minha boca.

Vi uma sombra clara, como a minha pele, pairar sobre o meu corpo inerte. Por alguns segundos, vi aquele corpo parado de mal jeito, mas a cada instante queria me afastar logo dali, como estivesse sendo sugada por uma força estranha.

À frente, uma caverna escura. Não me lembro de detalhes, parecia com a construção de uma mina antiga e abandonada. Mas estava limpa e não tinha madeira para a sustentação do teto. Adiante, via a luz brilhante e azulada, que era provavelmente o que me puxava naquela direção.

Tinha medo, mas não sentia nada no coração frio e sem movimento. Subitamente, veio uma onda de felicidade, então desconhecida. Minha sombra se agitou ao atravessar a luz e, logo depois, seguiu em frente vendo rostos conhecidos de parentes e amigos há muito tempo falecidos.

Vi meu marido já morto. Vi o riso de uma criança que um dia acompanhei o nascimento e não resistiu ao parto. Vi a antiga lavadeira de roupas da casa de minha avó materna. Vi o cachorro chamado Rex, que meu pai me presenteara na infância. Mais adiante, entrei numa grande cidade. Prédios luminosos, jamais vistos. Passei por ruas sem carros, sem movimento de gente.

Sentia medo em olhar para o corpo -- uma sombra -- e ver através dele. Mesmo assim, olhava para o contorno transparente e sem sinal de carne e osso. Mais adiante, vi uma barreira. Na verdade, uma cerca viva de uma árvore florida e de espécie desconhecida. Tudo fechado. Então, me movimentei para o lado. De repente, me senti mergulhada até o pescoço em um rio negro e frio. Estava perdida. Ouvi uma voz bem alta, de tonalidade doce.

-- Esta é a eternidade. Esta é a eternidade.

Em meu pensamento, perguntei:

-- O que é isso?

A voz novamente respondeu:

-- Este é o rio da Morte.

Depois, o silêncio pareceu durar séculos. Aí, ouvi a voz aflita de meu filho ao meu lado e, creia, a sombra penetrando com cautela no meu corpo. Voltei à vida. Tinha consciência na hora: meu filho estirava minhas pernas e me colocava em posição confortável, enquanto esperava a chegada da ambulância.


No mesmo dia, relatei toda a história a minha mãe. Com seus 85 anos de incredulidade, ela ficou em dúvida.

-- Foi e voltou? A vida é uma só -- filosofou. -- A morte também.

De volta a São Paulo, contei a mesma história a um grupo de amigos. Um deles, o bruxo e farmacêutico Renato Carvalho, afirmou que essas experiências deviam ser bem analisadas. Afinal, concluiu ele, na eternidade não existe guia turístico.

3 comments:

CESAR CRUZ said...

Roniwalter,

Sejamos nós religiosos ou ateus, céticos ou crédulos, o fato que ninguém pode negar é que este, digamos, modelo de relato do pós-morte se repete a centenas de anos pelo mundo afora.

Pessoalmente, gosto de acreditar que seja verdade, dá conforto saber que nada se acaba de fato, apenas a matéria química.

Quanto à sua crônica, excelente. Ali no rio da morte, só faltou o Caronte do Dante.

Abço
Cesar Cruz

Anonymous said...

Muito bom, Roni. Abração,
Ruy.

Anonymous said...

Muito bom Bigao, adorei. Beijos do filho Lucas.

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix