The Wounded Angel, by Hugo Simberg |
De súbito, do nada, uma carta
1
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não – como pedido –
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)
2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.
3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!
4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais....
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...
5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
1
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não – como pedido –
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)
2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.
3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!
4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais....
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...
5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
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