The Shadow of Conscience, by Louisiana artist Sam Rigling Mais de Rigling em Fine Frame Gallery & Nader's Gallery |
Até o final de uma gloriosa e atribulada vida, aos oitenta anos de idade, meu pai ensinava que aniversário não era motivo de comemoração. Em simples palavras, afirmava que a passagem de mais um ano era uma data mágica, mas o melhor era aquietar-se em algum lugar bonito e longe de festas.
-- O momento é bom para estar próximo das coisas que gosta – afirmava em simples palavras e ar de feiticeiro mouro. – É tempo de pensar em si mesmo e, principalmente, na vida.
Na verdade, o velho João Almeida nunca agitou um aniversário, nem dele nem de ninguém. Por muito tempo, também nunca concordava. Quando criança, sempre imaginava que aquilo fosse uma atitude de solitário, de nordestino de pele marcada pela aridez e muito sol, porém fui aos poucos entendendo seu jeito bem particular de encarar o mundo.
Lembro que, em todo oito de outubro, antes do clarear do dia, ele montava num cavalo e viajava em direção à nascente do rio Aipim, na Montanha Azul. Munido apenas de uma pequena provisão de comida, só voltava à noite quando a casa inteira já dormia o segundo sono. Na manhã seguinte, apontava rejuvenescido. E, melhor, parecia estar mais tolerante -- e feliz.
Está escrito nas estrelas que, um dia ou outro, a gente copia para o bem ou para o mal algum hábito paterno. Foi o que fiz tempos atrás, num 22 de julho. Com tudo premeditado, na tarde anterior havia pedido licença do trabalho e me dava de presente um dia de folga. Pego então o elétrico na Cardoso de Almeida, desço na esquina da Rego Freitas e vou em direção ao centro paulistano. Como nada na vida é sempre igual, aproveito o meu dia mágico para fazer o papel de um ser sem pressa e só no meio da multidão paulistana.
Na Praça da República, ao lado do antigo colégio Caetano de Campos, vou à procura de um tipo inesquecível. Há anos, o baiano Aristides Teodoro sobrevivia ali numa banca de livros. Ao contrário de vendedores que desconhecem seu produto, Aristides é mestre em literatura e gosta de ler e vender só o que é bom para seu gosto pessoal. Mora em Mauá, mas todas as manhãs vem de trem para o trabalho.
-- Carro é bom, mas impede o homem de ler enquanto se desloca -- confidencia. – Enquanto muitos veem o tempo passar pela janela, aproveito e devoro Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha.
Em casa, sua biblioteca tem o maior acervo particular da região do ABC. Na última contagem tinha oito mil títulos. É especialista em muitos assuntos. Tem 112 títulos só sobre o cangaço no Brasil e 500 sobre negros. Sonha um dia dividir todo o saber com mais gente. A ideia é transformar o porão em uma biblioteca pública.
Atravesso a Ipiranga e entro na 24 de Maio. Assustados com os fiscais da prefeitura, camelôs seguram nas mãos os produtos comercializados, provavelmente para facilitar na hora da fuga. Entro no Museu do Disco e compro cinco CDs recém-lançados. Evito adquirir edições piratas, pois prejudicam criadores e artistas. Volto pela mesma rua e, à frente, tenho um chope gelado no caminho: o antigo Bar e Restaurante Brahma, na Avenida São João. Bebo no balcão, enquanto tenho todo o tempo do mundo para lembrar umas das lendas do local, outrora ponto de encontro de estudantes, artistas e políticos.
Contam que, um dia, uma jovem mulher que não resistiu ao reencontro com o marido e morreu de mal de amor. Depois de ter sido abandonada em uma cidade do interior paulista, ela veio para a capital em busca do homem de sua vida. Sabia que o canalha estava hospedado em casa de amigos, na Avenida São João. Em busca da paixão, acabou por encontrá-la no Brahma. Dizem que não houve tempo sequer de implorar que ele voltasse para casa, pois o amava. De repente, teve um mal súbito e foi levado às pressas a um hospital, aonde já chegou sem vida. O ex-cantor Lodovino Borelli lembra vagamente da história, mas recorda do Brahma de um tempo em que saía de uma noitada e ia namorar num banco da Praça da República sem ser molestado.
Uma da tarde, hora do almoço. A temperatura muda depressa, chega o frio. Prédios e árvores da Praça da República nublam pela falta do sol fraco de inverno, que vai embora. Atravesso a praça e vou ao Carlino, na Vieira de Carvalho, um dos restaurantes mais antigos da região. Sento à mesa e espero a companhia da amada. Sinto pairar no ar o espírito de seus fundadores, emigrantes italianos. Faço uma extravagância nesses tempos bicudos. Peço um Chianti Ruffino, cor de sangue, e brindo ao vento mais um aniversário em plagas paulistanas.
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