Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - Cesar Cruz

Udi Peled - Drunk, Oil on Canvas

A Bebida Mata

Minha irmã Telma, que era a única que sabia o que eu vinha passando na mão dele, foi quem me deu a ideia. Não tem erro, ela falou, você faz do jeitinho que te falei e depois sai que nem louca pela rua, com o pano de louça na mão e um prato na outra, pingando detergente, e gritando desesperada, socorro, pelo amor de Deus, acudam meu marido, você vai berrar isso bem alto, enlouquecida, aí bate numa porta, numa outra, e as portas vão abrir e vai sair homem de cueca, mulher calçando chinelo, até criança, que a essa hora ainda tem muita acordada, e vai juntar gente, e você chora e treme, descabelada, e de repente solta o prato que vai estourar no chão e agravar o drama da coisa, e aponta pra porta aberta da sua casa dizendo, meu marido, meu Deus, meu marido caiu, e você soluça e chora, meu Deus, meu Deus, ele bebe muito e caiu, acho que se machucou! E uns vão te amparar e alguém vai buscar um copo dágua com açúcar, enquanto uns tantos vão correr lá conferir, que essas vizinhanças, você sabe, são sedentas por desgraça e sangue pra animar as vidinhas bestas que eles têm, gente que vai largar com prazer o jornal da noite e se aglomerar na sala da sua casa, às dezenas, e vão mexer no Orlando, virar o corpo dele pra cima, encher tudo de sujeira e digitais, pisar na poça de sangue e deixar mil marcas no local acabando com qualquer chance da polícia conseguir fazer algum tipo de perícia lá, caso cogitem isso, o que me parece bem improvável.

Gostou? Vai por mim, eu assisto aqueles documentários de medicina forense do Discovery, sou quase uma perita!

Gostei sim da ideia, mas fiquei dias pensando nos detalhes todos, se eu teria coragem, se alguém podia desconfiar. Enquanto isso ia aguentando os xingos dele, os tapas humilhantes que ele me dá na cabeça e quando me chama de vaca imprestável, fala que a comida está um bosta, que eu estou gorda que nem uma porca... Ninguém merece viver assim.

Um mês depois da conversa com a Telma, ele chegou numa certa noite do bar quase às 11h, bêbado. Apontou na porta da cozinha, se apoiando no batente, e me olhou com um sorrisinho de desprezo. Aí, gorda, ele disse, e gargalhou. Fiquei estática olhando pra cara dele, sem dizer nada. Aí que ele riu mais ainda, de jogar a cabeça pra trás, e repetiu aí gorda, rá, rá, rá! Aí gorda! Rá, rá! Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja, um copo e foi pra sala rindo da minha cara. Nem mexeu nas panelas, que já estavam com a janta pronta.

Meia hora depois terminei de lavar a louça e quando desliguei a água percebi que da sala só vinha o som da vinheta do jornal. Nesse dia ele nem pediu a janta, que ficou intocada. Eu também não comi nada, tamanha a ansiedade.

Certas coisas nunca mudam. Ele estava dormindo sentado no sofá com a cabeça jogada prá trás, o gogó do pescoço olhando pra mim, o copo de cerveja vazio na mão. Tomou uma garrafa inteira em menos de meia hora, o cachorro.

Respirei fundo duas vezes e soltei o ar devagar, olhando pra ele ali. Fui na cozinha e peguei o rolo de papel toalha e pus em cima da TV. Puxei umas folhas e com elas tirei com cuidado o copo da mão dele. Segurando com o papel, pelo fundo, bati a borda no chão. Deu uma trincada boa e ficaram duas pontas bem afiadas. Coloquei na mão dele e, com a minha segurando por cima, levei até encostar as lascas afiadas bem no gogó. Empurrei duma vez, com as duas mãos. A pele fez um estalo seco e o vidro entrou fundo. Ele deu um pulo que nem touro de rodeio e arregalou os olhos soltando um grito aguado, mas eu montei em cima dele e mantive a pressão, os olhos enormes olhando pros meus, acho que não me viam, viam através de mim, já pra outro mundo. Empurrei de novo, mais fundo, com o peso das costas, e o sangue desceu grosso, escuro pela camisa, e ele foi virando os olhos pro teto, a língua saindo pela boca aberta e uns ruídos líquidos vindo da garganta, até que parou.

Por pouco não sujei minha roupa de sangue.

Desmontei dele e me recostei na parede, meu coração saltando. No jornal o Willian Waack falava sobre as eleições nos Estados Unidos e as taxas de desemprego dos americanos.

Tirei mais um monte de folhas do rolo de papel toalha e limpei bem as mãos. Depois peguei ele pelos dois pulsos e puxei forte pra frente. Quase destronquei as costas. Ele veio até a beirada do sofá, a cabeça de lado e o copo enfiado no pescoço. Puxei de novo e ele caiu pro chão de joelhos, depois desabou de frente, que nem um saco, de cara no piso frio.

De repente me peguei pensando que ele morreu sem jantar a janta nojenta da gorda aqui. Olhei ao redor pensando no que mais tinha que ser feito. Joguei os papéis na privada e dei descarga, depois conferi o sofá, limpo de sangue, graças a Deus. Pra finalizar dei uma empurrada na mesa de centro enrugando o tapetinho que fica embaixo.

Na cozinha, lavei as mãos com detergente, peguei um prato do escorredor e saí pra rua, como a Telma ensinou, gritando socorro, pelo amor de Deus, me acudam!

Ainda bem que tenho vizinhos bons. As pessoas surgiram que nem formiga atrás de doce. Juntou uma multidão na minha sala. Fiquei lá da calçada choramingando e esperando, amparada por um monte de abraços.

Depois de quinze minutos de entra e saí, vi quando o Resgate chegou e dois paramédicos entraram correndo e expulsando as pessoas de casa. A multidão se empoleirou na porta pra espiar.

Minutos depois, o seu Clésio, marido da dona Jandira, surgiu do meio do povo com mais dois homens da vizinhança, e vieram na minha direção, avançando sérios, como sacerdotes em missão. Você vai ter que ser forte, foi o que o seu Clésio me disse, pondo a mão no meu rosto.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix