Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Em Um Quente E Cáustico Dezembro

Dezembro, fim-de-ano, a sensação de relaxamento diante do ano que estava acabando - é preciso fechar para balanço, pensar no ano que se foi - filosofava Josias Germano, em meio a um engarrafamento matinal... fora um ano de realizações, a compra do apartamento, a conclusão do mestrado, a perspectiva de uma futura ascenção profissional, o título da Copa Sul-Americana conquistado heroicamente pelo tricolor paulista... mas nem tudo eram alegrias... Pedro Venâncio seu grande amigo se fora... assim como se foram também grandes nomes das artes: Oscar Niemayer , Dave Brubeck e Décio Pignatari... ele sabia que o poeta nunca fizera algo como a maquise do Ibirapuera ou o álbum “Take Five” , mas durante a faculdade fora aluno de Pignatari, ou seja conhecera-o pessoalmente... Décio não se tornara seu amigo... mas notava que o mestre tinha mais satisfação em responder suas indagações aparentemente vindas do nada, do que aquelas perguntas previamente elaboradas, vindas de determinados alunos com intenção em demonstrar conhecimento refinado...

Como o trânsito estava definitivamente caótico, o nosso protagonista resolveu ligar o rádio e descobriu que um acidente fatal com motocicleta literalmente parara a capital paulista - o trânsito de São Paulo é igual a saúde de alguém muito idoso- refletiu - qualquer resfriadinho vira pneumonia... qualquer caminhão quebrado, acidente com moto, atropelamento gera um a lentidão monstruosa afetando a milhares de cidadões...

E então a radio toca o seu refrâo:

“Vão bora! Vão Bora!
Tá na hora! Na hora!”


Como ir embora nesta lentidão... é um absurdo - pensou Josias Germano - chega desta rádio reacionária que só exibe essa musiquinha de manhã, na hora de entrar no trabalho, nunca toca este refrão na parte da tarde... como que só tivesse hora para entrar no trabalho, nunca para sair...

Josias Germano olhou o semáforo que devido ao engarrafamento não conseguia transpor, lembrou-se então que a palavra semáforo é derivada do termo ”semeion” que em grego significa signo... a mesma raiz da palavra semiótica... recordou-se do título de seu trabalho de conclusão de curso na pós-graduação “Semiótica na Sinalização de Trânsito – paradigmas e sintagmas da sinalização viária” ... notou também que o “semi” da semiótica estava degenarado: semijóias e carros seminovos eram um indício da degeneração dos signos da comunicação moderna...

Lembrou-se então que no porta-luva do automóvel havia um exemplar de “O que é Comunicação Poética” de Décio Pignatari, livro que usara como subsídio a seu trabalho de graduação... Como o trânsito não andava e o calor começara a se tornar ensandecedor, resolveu ler trechos da obra do poeta de Jundiaí:

“Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) que a palavra ‘amor’ não é o amor - e não se conforma…

De repente então o estrondo, o motoqueiro indo embora apressado e o espelho retrovisor direito virado....

Josias Germano xingou a “raça dos motoqueiros”, como costuma a fazer com a “raça dos taxistas” - O mundo está a cada dia pior, estamos todos perdendo a noção das coisas – recordou-se então daquele poema de Torquato Neto que dizia:

“É preciso que haja algum respeito
ao menos um esboço:
ou a dignidade humana se firmará a machadadas”


Pensou então em comprar um machado... lembrou-se que no início do próximo ano iria a Assis, no interior de São Paulo, visitar seus sogros, e que nesta cidade havia uma loja chamada “Casa das Miudezas”, que vende tudo: anzóis, artigos de papelaria, veneno de barata, botinas, cedês virgens, armarinhos e até servia cerveja em um pequeno balção – com certeza deve ter machado – refletiu o nosso amigo...

Depois ficou com pena do motoqueiro que morrera na Marginal e estava causando todo este transtorno... lembrou-se então da canção de Chico Buarque que dizia

“morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego”

recordou então o arranjo que Rogério Duprat havia composto para “Construção” então, como o trânsito não andava mesmo, resolveu ler mais Pignatari:

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e re-criando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo.”

Voltou então a lembrar-se de Torquato Neto e de sua amizade com Pignatari, o poeta de Teresina homenageara o semiótico de Jundiaí no título da canção que compusera com Gilberto Gil e também da coluna que publicou no jornal Última Hora: “Geléia Geral”, retirado da frase de Pignatari:

“Alguém, na geléia geral brasileira, tem de exercer as funções de medula e osso”

... então do nada apareceu outro motoqueiro e bateu de leve no vidro do carro de Josias Germano... o nosso protagonista se assustou, porém o motoqueiro apontou para o espelho retrovisor revirado e colocou o retrovisor de volta à posição correta... o nosso protagonista fez sinal de positivo e deu um leve toque na buzina em sinal de aprovação... o segundo motoqueiro partiu amistosamente...

Josias Germano então julgou ter presenciado uma das epifanias, manifestações divinas em pequenos atos do cotidiano, tão comentadas por James Joyce... pensou então que o mundo não estava tão boçalizado, que existiam pequenas demonstrações de que nem tudo está perdido...pensou então que quando fosse a Assis não precisaria mais comprar o machado.

1 comment:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix