Roots, 1943 ~ Frida Kahlo |
Flores da violência
E montou num querubim, e voou;
sim, voou sobre as asas do vento.
(Salmos, 18, 10)
sim, voou sobre as asas do vento.
(Salmos, 18, 10)
A luz do amanhecer era tão clara que Jacinto viu o corpo de Jacira, sua mulher, cair sobre o ninho, quebrar as pernas de uma galinha poedeira e sujar-se no endez enganador, às cinco horas, no imenso quintal enlameado no fundo da casa. Transtornado, correu sem saber fazer o quê, enlaçou-a entre braços e arrastou o peso grávido de quatro meses para o quarto. A esta hora era difícil ser atendido pelas comadres curiosas, prestativas, mas assim mesmo, acode minha mulher, saiu à rua.
O dia se acinzentou e ficou triste, desmanchando a claridade da manhã. Fazendo conjeturas de casos semelhantes, as mulheres que chegaram ante a estranheza da moléstia de Jacira somente olhavam para a imobilidade e o seu respirar compassado. Recordaram até, em voz baixa, que o demônio entra em corpos grávidos para impor os germes da maldade em incautos rebentos que estão para nascer.
A notícia de Jacira correu divulgando a doença numa rapidez que a pequena morada encheu-se, dia e noite, transformando-se em um pequeno mercado, onde somente não incutiram o livre comércio.
As batidas do coração de Jacira eram frágeis quais as teias de aranha finíssimas que sempre teimavam em brotar nos cantos das paredes caiadas de branco. A liquida, possível alimentação, descia pela garganta dela em corredeiras, sem obstáculos nesse corpo morto-vivo.
Com a inconstância na melhora, rotina no tratamento, as visitas à cata de novidades foram dispersando e, no fim de quatro semanas, Jacinto via-se quase só.
À noite os sobressaltos não o deixavam dormir. Ao seu lado, o mesmo respirar constante; acima, os olhos viam pelas frestas, durante a madrugada, as aves que pousavam no telhado ao anoitecer, para logo no madrugar levantarem voo.
No silêncio da noite, na semi-escuridão, ele vagava pensante pelos caminhos mais próximos. Viu no espaço estrelado um véu negro a cobri-lo ponta a ponta: passou a mão em concha nos olhos, pois sentiu a cegueira; acompanhou às margens do rio o percurso da lua que resplandecia em inúmeras contas de diamantes floridos, que, brilhantes, quis apalpar na água, mas fugiam-lhes por mais que os segurasse entre dedos. Sentiu no calor da noite, não acreditando nos olhos: as águas faziam retorno e, em fração de segundos, corriam ao contrário. Duvidou de si e da virtude sobrenatural de sentir as mudanças da natureza, enquanto Jacira, sua mulher, penitente, desde os primeiros momentos não pudera fazer nada. A claridade da manhã o fazia sempre esquecer das brincadeiras que o conjunto de seres que formam o universo faz quando o mundo dorme.
Embora uma vez, creia, ele tentara. Médico candidato, depois de palavras que prometiam, suando, saiu do palanque da praça rodeado de ajudantes e acompanhantes, entrou na casa de Jacinto e, diante de olhares humildes, disse que se fosse eleito a curaria. O tempo e os afazeres de candidato eleito levaram as promessas ao esquecimento.
O ventre de Jacira estancou no crescimento e minguou a vida que desabrochava. O corpo dela na quietude estagnou no tempo, escarmentado.
Em princípio de janeiro, as festas animavam a fuga anual que a realidade diária escondia entre as folhas cortantes dos canaviais. Festejavam agora os cetins que os comerciantes traziam de cidades distantes, contrabandeados em lombos de burros, através de caminhos agrestes, burlando ou propinando guardas que porventura encontrassem pela estrada.
Em Bananeiras somente a casa afastada do lado do rio perene permanecia indiferente aos regozijos da animação; sentado na calçada nua, o olhar de Jacinto perambulava pelo horizonte nas visões reais.
No terceiro mês, as diferenças na vida que não curava somente se ajustavam às peregrinações de Jacinto. Ele andou entre poções milagrosas e feiticeiros benignos que o idoso animal de montaria definhava. No retorno diário, as decepções martirizavam e embaçavam os olhos e a esperança.
Outra vez, ele tentara, pela fé. Padre, pároco de uma igreja distante, nada ajudou, a não ser, como exemplo, mostrar as imperfeições do mundo.
-- Filho, creia em Deus -- disse o padre --, procure até nos labirintos.
-- Nele creio -- disse Jacinto -- mas tem horas que duvido até de mim mesmo.
-- Há na vida tarefas -- disse o padre --com que estamos relacionados e que nem decifrá-las podemos.
-- Por mais -- disse Jacinto -- que tente, me acho... -- e suspirou.
-- Além disso... -- disse o padre, e murmurou durante certo tempo em língua latina.
-- Merda de fé -- exclamou baixinho Jacinto.
Entardecendo na estrada que separa a crença do mundo, entre a poeira que deixou atrás de si, a luz traseira do automóvel paroquial acendeu-se e desapareceu, lá longe, na curva que separa tudo.
O dia seguinte, segunda-feira, amanheceu triste e morno como todos os outros nos olhos claros de Jacinto.
-- Vou deixar o candeeiro aceso, a porta destramelada, para quando dona Maria chegar, cuidar de ti – disse Jacinto, como se Jacira escutasse ou entendesse alguma coisa.
Ainda escuro, montou. Desceu a ladeira, segurando apertado as bridas do animal, rumo à estrada. Encontrou pelo caminho pessoas sonolentas, montadas, tocando à frente animais carregados e mais sonolentos ainda.
Os primeiros meninos, que levantaram mais cedo naquela manhã de Bananeiras, pensaram que o sol se derretia no horizonte ou que nos fins de abril o brilho seria mais ofuscante. O candeeiro aceso, que fez combustão na pequena cama de Jacira, até sobrepujou o sol. O vento soprava e adiantava o fogo que consumia tudo. A ninhada e a galinha manca que dormia no interior da casa eram o começo do desastre: os corpos carbonizados.
Longe, no final da tarde, Jacinto andou pela última vez na feira. Desamarrou o animal e resolveu partir na esperançosa volta. Arvoredos marcados na cintura pelos cabrestos dos animais suspiraram aliviados por mais uma semana. Árvores mais próximas aos bares abençoaram o tempo por este apaziguar de sofrimento de sete dias.
Quando a última barraca de lona foi desmontada, ainda ouvia-se o eco rápido, senhores e senhoras, do vendedor de elixir, cura-se tudo desde o veneno de cobras a dores de cabeça, o vento trágico da tarde soprava lento.
Jacinto, dador de dias, reapertou a sela – quando Jacira melhorar compro sela nova --, subiu no cavalo e troteou.
A tarde morna se acomodava. No cascalho fino, arenoso, ele ia rápido que ultrapassava as lentas -- boa-noite, tua mulher está melhor? -- pessoas que tocavam à frente -- vai como Deus quer -- animais encaçuados, carregados do comércio que ia e vinha semanalmente.
O vozerio dos passantes -- boa-noite -- no encontro não tirava, nem o sacolejar da montaria, a precisão de pensar no tempo. Com a noite clara, o vento veio devagar, uivando penetrante na sequidão da estrada. Plantas já começavam a assustar viventes homens transformando-se em animais horrendos. Jacinto, acostumado com a noite, conhecia os caminhos e sorria das visagens imaginosas nas cabeças tontas e divorciadas daquele mundo.
Jacinto esporeou levemente o animal -- tenho fé em tudo --, verificou o volume que o vidro de elixir -- senhores e senhoras cura tudo -- fazia em seu bolso esquerdo. Agarrou-se às crinas do cavalo -- v'ambora -- e galopeou.
Aproximando, na penumbra, não tivera necessidade de entreolhar-se para perceber que havia mudanças. As paredes tombadas e enegrecidas completavam tudo. Apeou-se e continuou andando, puxando o cavalo em rédeas curtas. Atravessou a multidão cansada de esperá-lo e apreensiva em relatar pormenores. Não escutava os murmúrios. No quarto, viu, entre escombros, o corpo de Jacira que permanecia intacto, somente as roupas diluíram-se e somente a vida -- Deus! -- que pouco lhe restava tinha fugido.
-- Nem parece morta! – disse alguém.
Era verdade. Do rosto pálido, só faltava correr livremente o sangue.
Jacinto abaixou-se e beijou-a na testa. Olhou-a com adeus. Caminhou calmamente até sentir que corria. Penetrou no matagal, entre espinhos que a roupa ficava, retalhando-lhe o corpo.
Jacira desapareceu na mesma noite sem ser tocada por ninguém do lugar. Alguns incrédulos não acreditam quando se conta que seu corpo flutuou, voou sobre as asas do vento e, entre auréolas resplandecentes, desapareceu sem vestígio algum, deixando no ar uma coloração irreal que a própria natureza, pelo vento que soprou forte, fez desaparecer incontinente.
Alguns acreditam e dizem que em Bananeiras nascerão flores coloridas, sim, amarelas e vermelhas: flores da violência que engolirão a si mesmas e combaterão o medo dos canaviais.
Não faz muito tempo. Ali restam os escombros da casa incendiada. Agora, já nasce, num canto ou outro, algum vegetal daninho, mas que ainda não reproduz flores.
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